Sexta-feira, 11 de agosto de 2023 - 07h25
Bagé, 11.08.2023
Era então Ministro da Guerra
o Visconde de Camamu, que pouco depois faleceu [creio que em 1866]. Nem de
propósito. Estava o Imperador despachando uns papéis com o Camamu, quando meu
pai apareceu. Aproveitando a vaza, contou a que ia ao imperial amigo e, depois
de verificado com o habitual escrúpulo que tal ato não ia de encontro a lei
nenhuma positiva, foi ali mesmo assentada a minha nomeação de ajudante da
Comissão de Engenheiros junta às forças destinadas a Mato Grosso. Fiquei
contentíssimo e saí a anunciar a boa nova a Catão, que foi apresentar-me ao
Lago e em seguida ao nosso Chefe Tenente-Coronel José de Miranda da Silva Reis.
(TAUNAY, 1948)
Membros da Comissão de Engenheiros
Seis eram os membros da Comissão de
Engenheiros:
1 ‒ Antônio
Florêncio Pereira do Lago, Capitão do Corpo de Estado-Maior da 1ª Classe. ([1])
2 ‒ Catão
Augusto dos Santos Roxo, Primeiro-Tenente do Corpo de Engenheiros.
3 ‒ José
Eduardo Barbosa, Primeiro-Tenente do Corpo de Engenheiros.
4 ‒ João
da Rocha Fragoso, Segundo-Tenente do Corpo de Engenheiros.
5 ‒ Joaquim
José Pinto Chichorro da Gama, Primeiro-Tenente do Corpo de Engenheiros.
6 ‒ Alfredo
de Escragnolle Taunay, Segundo-Tenente de Artilharia.
CATÃO AUGUSTO DOS SANTOS ROXO
Filho do Rio Grande do Sul, moreno, de olhos apertados, nariz
grosso, testa toda enrugada pelo hábito de franzi-la, muito simpático na feição
e nos modos a que de contínuo procurava imprimir o cunho guasca, conforme
denominava, mas com um “quid” ([2])
um tanto grotesco, sem ser, contudo, ridículo, antes engraçado naturalmente e
malgrado seu, bambo das pernas e sempre a se queixar desta fraqueza.
Dei-lhe na escola o apelido de “gato gordo”, que pegou pela semelhança com algum roliço bichano.
Foi dos rapazes e companheiros a quem na minha vida
consagrei mais viva e real afeição. Tudo quanto fazia e dizia o Catão tinha
para mim irresistível graça. Quando, depois de mais de dez anos de íntima e
constante convivência, rompemos relações por causa do canalhíssimo Coronel A.
[e deveras não valia a pena], experimentei um dos mais fortes e penosos
sentimentos de toda a minha existência, espécie de espinho que pungiu muitos
anos, até a nossa reconciliação em 1881.
Estava, porém, quebrado o encanto. Bom caráter, egoísta, mas
capaz de rasgos de dedicação, sabe bem o que estudou e conhece administração,
tendo sido ótimo e leal auxiliar de vários Ministros da Guerra; é, porém, pouco
lido em literatura.
Padecendo de surdez, que se vai
acentuando, gosta em extremo de música. Gênio bastante melancólico,
concentrou-se cada vez mais no sistema de vida, da qual excluiu, desde o
princípio da carreira, qualquer estímulo de ambição.
Já na subida da Serra do
Cubatão, a braços com um reumatismo que o atacara violentamente, exclamava com
uns “ais” e “uffs” que me faziam torcer de riso:
Vou me reformar! Não nasci para
façanhas! Leve à breca a farda, a fama, a glória! Não sou disto; prefiro o meu
cômodo a todas essas bobagens! Ai, meu reumatismo, ai!
Quanto me ri com Catão Roxo e por causa dele! Quanto! Uma
vez atirei-me ao chão, na relva para poder rolar-me a gosto e desfazer-me em
gargalhadas – quase estourei! Estávamos a caminho para a Vila das Dores do Rio
Verde, vulgarmente chamada Abóboras, na Província de Goiás e levantamos pouso
sem o Catão, que ficara a procurar uma bestinha de montaria chamada Rosilha,
desaparecida de madrugada. À tarde, nós, há muito acampados na barranca de
grosso e límpido Córrego, quase Ribeirão, eis que apareceu o nosso
retardatário, na estrada do lado de lá, na atitude ambos do maior cansaço e
abatimento, o animal, sujo até às orelhas caídas, o cavaleiro todo derreado e
com as abas do chapéu do Chile caídas e viradas. Enorme vaia os acolheu.
Parado algum tempo na borda
oposta a procurar melhor descida, de repente fraqueou a Rosilha das mãos e o
Catão, saindo pela cabeça do animal, rolou o barranco todo e foi cair sentado
no meio do córrego com a figura mais extraordinária que dar-se pode, entre
resignação e furor. Nós não podíamos mais de tanto rir, enquanto ele nos
descompunha:
Miseráveis, canalhas, infames,
zombarem da desgraça de um companheiro!
E todo pingando, a custo subiu a margem de cá com as botas
cheias d’água e a espada, por cima, a se lhe meter pelas pernas, o que o
ameaçava a cada tropicão de focinhar novamente. Desses episódios, um mundo.
(TAUNAY, 1948)
JOSÉ EDUARDO BARBOSA
Louro, de olhos azuis, amigo de mistérios e retraimentos,
primava pelo egoísmo, sem, contudo, ter qualidades que impedissem certa
intimidade de relações. Tinha o cacoete de torcer a cabeça, ora para o lado
direito ora esquerdo, sestro nervoso que lhe valem a engraçada alcunha de
engole sardinhas. Às vezes, parecia que a tal imaginária presa recalcitrava ao
entrar na garganta, de maneira que os esforços se amiudavam, até que voltava a
serenidade. Então um de nós gritava: “Passou!”,
o que era acolhido com grandes brados: “Passou,
passou, mais uma!” E o Barbosa ria-se com os demais. (TAUNAY, 1948)
JOÃO DA
ROCHA FRAGOSO
Muito alto, magro, dispéptico ([3]).
Quase sempre ingênuo, às vezes arrogante, aturava, segundo a disposição do dia,
com paciência, ou não, os nossos contínuos gracejos, em que o fazíamos figurar
com uma ladainha de cognomes: João Prosa, João Macieza, João Beleza, João
Bússola, conforme a ocasião e a gabolice que apregoara mais particularmente. Os
índios de Mato Grosso lhe aplicavam a alcunha muito característica de cabeça de
nuvem por causa da cabeleira toda solta e arrepiada. Foi-lhe desastroso o fim,
depois de grande dúvida com o Ministro Afonso Celso, em 1880, morrendo no
Hospício de D. Pedro II.
Casara com uma artista de Ópera,
a contralto Leopoldina Iweskowska, mãe dedicadíssima e exemplar de três
filhinhos órfãos, com quem ficou após a desgraça do marido. (TAUNAY, 1948)
JOAQUIM JOSÉ
PINTO CHICHORRO DA GAMA
Era de todos nós o mais velho.
Esguio, muito chupado, quase esquelético com barbas esquálidas, de um louro
sujo, já passando para branco, testa larga que abria em funda calva, maneiras
esquisitas de alquimista ou descuidado sábio, nos lhe chamávamos o vovô. Possuía
instrução variada e sólida, sobretudo em matemática; conhecia botânica e
geologia e vivia agarrado aos livros. Inspirava-nos, senão respeito, pelo menos
tal ou qual acatamento, não só pela erudição sincera, modesta e nunca
encarecida, como também por ter na vida certos lados misteriosos que não penetrávamos
e que ele zelosamente encobria.
Era homem já afeito ao
sofrimento e aos reveses. Um deles conhecíamos desde a Escola. Apaixonara-se
loucamente por uma filha de um Coronel de Artilharia e vira-se preterido por um
colega de ano, não só na pretensão à mão da disputada moça, como na candidatura
a uma das cadeiras da Praia Vermelha. Parece que por tudo isto ficara algum
tempo transtornado do juízo [valeria a pena?].
Em relação ao Chichorro falavam
também em desavenças e desgostos muito sérios com os pais na Bahia, berço de
toda aquela família, conceituada pelos princípios intransigentes de honra e
dignidade, de que o nosso colega era, decerto, digno e nobre tipo. De
constituição muito débil, sempre adoentado, pilhou fortíssima bronquite ao
chegar a São Paulo naqueles frigidíssimos dias de um abril excepcionalmente
áspero.
Tão mal nos pareceu o seu estado, que o nosso Chefe, Miranda
Reis, propôs-lhe a volta ao Rio, o que recusou com a máxima energia.
O primeiro dever do militar é saber morrer. Ou de bala ou de moléstia,
a distinção pouco importa.
Entretanto, apesar da debilidade, eu o pirraçava quanto
podia.
“Culpa não tem você”, exclamava furioso, “culpa tem o governo que
nomeia para Comissões de Engenheiros beldroegas ([4])
[expressão que lhe era favorita] da sua idade, meninozinhos, Segundos-Tenentes
de artilharia!”
E tais palavras mereciam os aplausos do Barbosa e do Fragoso, muito ciosos ambos das funções de Engenheiros Militares e da gola de veludo que lhes ornava a farda. Pobre Chichorro! Para diante muito me hei de referir a este bom e infeliz companheiro, cuja morte foi horrível. (TAUNAY, 1948)
Bibliografia
TAUNAY, Afonso
d’Escragnolle. Memórias do V. de Taunay
‒ Brasil ‒ São Paulo, SP ‒ Instituto Progresso Editorial, 1948.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia
Brasileira (SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
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