Terça-feira, 15 de agosto de 2023 - 07h20
Bagé, 14.08.2023
Tal amor de exatidão a
cenários e espetáculos naturais estende-o Taunay aos personagens da novela,
que, todos, existiram – alguns tais e quais, outros reconstituídos em pequenos
mosaicos de fragmentos pessoais, diretamente escolhidos entre a gente que
conheceu por aqueles sertões. (PINHO)
Taunay transformou-se progressivamente, durante a terrível jornada, seu
olhar tornou-se, evidentemente, mais universal, sem perder, porém, a irreverência
e minudente capacidade que possuía de retratar seus parceiros de marcha e tipos
populares que conheceu, com uma franqueza, riqueza de detalhes e invulgar
peculiaridade que só seu espírito extremamente diligente e observador era capaz
de captar e reproduzir. Vejamos detalhes da narrativa de Taunay:
CARDOSO GUAPORÉ
Negro velho, muito feio, filho da
cidade de Mato Grosso e de quem falo um tanto detidamente em meu livro “A Cidade de Mato Grosso, o Rio Guaporé e a
sua mais ilustre vítima” ‒ Laemmert, 1890.
(TAUNAY, 1948)
Entre os
fugitivos, havia um homem de cor, um preto, velho, muito velho, de mais de 80
anos e de nome Cardoso Guaporé, antigo coletor da Vila de Miranda e que ali
gozara de certa importância, pois acumulava às suas funções de exator da
fazenda pública o exercício de advogado provisionado, ou antes de rábula.
Filho da
cidade de Mato Grosso, ao ouvir pela primeira vez pronunciar o meu nome,
mostrou-se sobremaneira admirado e sem vacilar, mas com visível sofreguidão,
logo me perguntou:
– Será por ventura o senhor parente de um
Adriano que se afogou no Rio Guaporé e foi enterrado na igreja de Santo
Antônio, isto pelos anos de 1827 ou 1828?
– Sou seu sobrinho. Era irmão de meu pai.
Respondi-lhe
em extremo surpreso de encontrar naqueles ínvios recôncavos um conhecido da
família, que se remontava à ocorrência já tão antiga.
– “Ah! que homem aquele!” Exclamou o velho.
E, sem mais
se ocupar com o momento presente, que lhe trazia contudo tantas surpresas na
sua vida de refugiado e de oculto nas matas, começou o mais ardente e exaltado
panegírico ([1])
do ilustre mancebo, das suas qualidades proeminentes, sua coragem indomável,
sua alegria incessante, sua atividade estupenda, sua generosidade ilimitada,
suas aptidões inexcedíveis de músico, desenhista e poeta, sua habilidade em
nadar, caçar e jogar armas, sem esquecer a notável e impressiva beleza,
atraente e máscula, que lhe fazia correr mil aventuras de amor e lhe valia
tantas e tão espontâneas dedicações, até daqueles que poderiam pretender
rivalidade.
– Onde chegava, disse-me ele, eram festas e
dançados, que não acabavam mais; partia e só deixava tristezas e saudades, que
nem o tempo podia mitigar. Uma feita, duas mulheres de boa sociedade
acutilaram-se de ciúmes com facas de mesa e, ao apartá-las com uma força de
gigante, feriu-se nos dedos, dirigindo toda a noite o baile com a mão amarrada
em um lenço. Sua morte tomou vulto de verdadeira desgraça pública. Assisti ao
enterro, que levou a cidade inteira atrás de si. Parecia algum Capitão-General,
como aconteceu com o funeral do Cáceres, de que me lembro ainda hoje, pois já
era molecote.
Quantas vezes
não indaguei do Cardoso Guaporé a respeito desse tio? Então, rememorando as
conversas e descrições de meu pai, também o levava a recordar as grandezas de
Vila Bela. E aí o velho preto, na dorida expansão do seu bairrismo e a endireitar
tremulo de comoção os grandes óculos de prata que lhe escorregavam das orelhas
e do nariz, tornava-se quase eloquente.
– Cuiabá, dizia-me ele todo abespinhado e
exagerando naturalmente, tem e pôde ter muita coisa boa; mas nunca, nunca lá vi
palácios tão ricos e casas tão bem acabadas com lavores [pinturas] pelas paredes
e quadrarias [painéis] nas salas, como na minha cidade natal. Era coisa de pôr
pasmos até os que vinham das “Europas”. E a igreja de Santo Antônio, toda cheia
de riquíssimas alfaias e de imagens cobertas de ouro e prata? Dizem que S.
Antônio, o orago, levantou o braço, quando se falou na mudança da capital,
excomungando quem disso se lembrara!
– Nem se calcula o valor das riquezas que contém
ainda, embora já lhe tenham sonegado não poucas preciosidades para enriquecer
Cuiabá, que tudo nos tirou! E a casa da Câmara, com grandes retratos de El-Rei
D. João VI e da senhora D. Carlota? E o sobrado, que metia inveja ao mesmo
palácio? E o cais?
– Parece que era a obra de mais vulto, feita por
portugueses no Brasil; coisa muito bem planejada e que costeava o Rio todo,
dando um passeio como ainda não e fez igual, todo ombreado de frondosas
gameleiras e indo acabar em um laranjal imenso, plantado por ordem dos senhores
Governadores Gerais, em que estava metida a capela de S. Antônio, laranjal
limpo todas as semana pelos apenados e em que se reuniam nuvens de graúnas e
todos os pássaros possíveis. De manhã e à tarde cantavam tanto, que ainda tenho
na cabeça o barulho que faziam!
– E os passeios em torno da cidade? Que lugares
lindos e que arraiais magníficos, pontos de fonçonatas [festas] e consoadas
[Festas e refeições, depois de jejuns], em que se davam desafios de poetas e
cururus [batuques], a que acudiam as pessoas de mais consideração da terra.
– Casalvasco, com o seu Rio Barbados, era uma
delícia, com umas ruas muito direitinhas e seu palácio e igreja de boa
cantaria, com um lampadário, como não há outro em toda a Província e talvez em
todo o Brasil. E o Passo do Rio Alegre? Que ponto de bons regabofes ([2]) e que sítio tão
formoso! Ah! Havia em Vila Bela muita alegria.
– Cuiabá tudo levou, tudo tomou! Nunca se fiem
em cuiabanos! São todos imbicioneiros [ambiciosos] e trabucadores [que
trabalham de má fé]. Falam muito na sua Serra de Guimarães ([3]), onde cai geada e
há uma pedreira que parece encantada; mas ela não se compara com a serra da
Vila que se avista da cidade, com o seu Chapéu de Sol.
– Acusavam aqueles lugares todos de muito
doentios, sezonáticos e empestados. De certo, quando o Guaporé enchia demais,
havia suas maleitas; mas muitos e muitos anos se passavam sem febre alguma e
não faltavam velhos e velhas que contavam histórias dos primeiros
governadores, de Rolim de Moura, depois Conde de Azambuja, Pedro da Câmara e
dos dois Cáceres, tanto tempo já haviam vivido.
– Se há por aí povoação caluniada, é a minha
pobre cidade natal, que mataram de uma vez e mataram por simples inveja. Quanta
exageração! Quando falavam então no forte do Príncipe da Beira, parece que era
lugar excomungado. Meu filho entretanto lá está, há muito tempo!
No meio de
todos esses queixumes e encarecimento, em que transparecia a rivalidade ainda
hoje persistente entre as cidades de Mato Grosso e Cuiabá, rivalidade repassada
de compaixão por parte desta na sua vitória para sempre indiscutível, e por
parte daquela que entranhado desespero e quase ódio, via eu, na confirmação de
muitos sentimentos de meu pai em relação ao irmão Adriano, reaparecer aquelas
pinturas a fresco e manifestações artísticas, que no fundo dos sertões haviam
merecido lisonjeiro reparo crítico de quem percorrera o mundo inteiro à
pesquisa e na contemplação do belo. Era uma espécie de orangotango.
Rábula, não
pouco inteligente e sagaz, exercia na Vila de Miranda o cargo de coletor das
rendas gerais e provinciais e fugiu para os Morros com a velha mulher, ambos
chegados a mais de oitenta anos. Dotado de não pequeno bócio, ostentava Guaporé
os sinais característicos dos grandes antropoformos, prognatismo ([4])
pronunciadíssimo, dentes valentes e saídos para fora da boca, exageradamente
enormes, nariz chato com enormes ventas em cujo topo mal podiam aguentar-se uns
óculos de grossos aros de prata, olhinhos piscos, protegidos por sobrancelhas
em matagal e fronte minúscula e fugidia. Entretanto, contra tantos e tão claros
prenúncios de absoluta estupidez, dispunha de bastante agudeza de espírito e
passava até por capacidade na Vila, em que chegou a gozar de não pouca
influência, já pelos recursos intelectuais de que dispunha e empregava
ativamente no mexerico e na intriga, já pela amizade que o ligava ao
Tenente-Coronel Albuquerque.
Era um dos
nossos vizinhos mais chegados nos Morros e não pouca graça e interesse achava
eu em sua conversa, pois se referia, com um sem número de historietas e
anedotas, à vida da antiga capital da Capitania do Cuiabá e Mato Grosso e à
popularidade, ao prestígio e às façanhas do meu tio, Amadeu Adriano Taunay, que
ali estivera em fins de 1827 e de lá nunca mais saiu, afogando-se no Rio
Guaporé a 05.01.1828. Metia-se a falar corretamente e dava boas gafes, de que
nos ríamos a valer depois em conciliábulo íntimo, eu, Lago e Pacheco. Quando já
saíramos dos Morros, morreu-lhe a velha e simiesca esposa de modo bem singular.
Em noite de forte ventania, possante árvore, ao cair, rachou a meio o rancho de
palha e literalmente esborrachou a pobre que dormia ao lado do importante
esposo.
Coisa curiosa
e que aqui menciono como engraçado assinalamento histórico, nos anais do
casamento civil, Cardoso Guaporé quis estabelecer naquele lugar de refúgio, em
que não havia Padres, essa útil instituição por cuja promulgação tanto
trabalhei nas Câmaras e na Imprensa, incorrendo em muitos ódios e insultos, e
que o Governo Provisório, nos primeiros dias da República, a 24.01.1890,
decretou, sem protesto nem relutância de ninguém, como lei do país.
A ideia de
Cardoso Guaporé veio do seguinte modo: um médico, cirurgião do Exército e
notável pelas excentricidades e reconhecida ignorância, que fora ter também aos
Morros, enamorou-se, embora idoso, de certa moça, filha de pobre velho chamado
Cadete, morador no acampamento do Chico Dias. A este propôs tomar por conta, e
em casa, o objeto da paixão, até aparecer por ali sacerdote que regularizasse a
sumária união.
Teve o pai
escrúpulos e foi consultar o oráculo do lugar – o nosso Cardoso Guaporé, ainda
que a mãe se mostrasse muito mais fácil e condescendente:
– Ora, Sr. Cadete...
Dizia
filosoficamente.
– Pois não comecei a vida amasiada e por muito
favor? Quanto não rolei por aí, até me casar com o Sr.?”
O marido
porém não concordava e a tudo resistia. Achou o rábula o caso muito sério e
pediu logo 2 mil réis, ou então meio alqueire de feijão, para pensar na
dificuldade e buscar resolvê-la. No dia seguinte, apresentou o desenlace: era
proceder-se a uma cerimônia civil, presidida por ele, de que se lavraria auto,
dizia com muita gravidade, segundo as formas do Direito e assinado por três
testemunhas, comprometendo-se o médico, em nome de Deus, do Filho e do
Espírito Santo a casar-se perante os altares no primeiro ensejo possível. A
princípio concordou o esculápio ([5]),
mas depois se desdisse ([6]),
de modo flagrante e afinal rompeu qualquer acordo, tudo isto no meio de muita
agitação das famílias e de toda a gente dos Morros. Não se falava noutra coisa
e não havia quem desse razão ao velho doutor. “Não passa de rufião”, berrava o Cadete, enquanto a mãe da
pretendida observava com e bom senso especial de uma Madame Cardinal [o
grotesco tipo literário criado por Ludovic Halevy]:
‒ Vocês o que fazem é espantar a caça. O tal
méco ([7]) é muito burro,
mas convinha bem à Antônia. A menina já está com os seus dezoito anos e precisa
estabelecer-se.
Tive ocasião
de ver o original do documento redigido pelo Cardoso Guaporé e apresentado à
assinatura recalcitrante do pretendente e dei bem boas gargalhadas.
O mais
desapontado de todos foi o autor do expediente, que viu fenecer ao nascedouro
uma fonte de possíveis reditos. Também sabia vingar-se, “metendo as botas” no desconfiado médico. “Não”, afirmava, enrugando de modo muito cerrado e compungido o
feiíssimo rosto de octogenário macacão, “não
era homem sério!” E acrescentava com lisonjeira gravidade: “Dos nossos!”
Parece,
aliás, que o Sr. Cardoso Guaporé não podia pretender foros de modelo, apontado
como useiro e vezeiro em muitas e muitas irregularidades e até falcatruas no
exercício do cargo de coletor.
Pacheco
acusava-o, quase cara a cara, de ter trazido da coletoria, como seu, grande
saco de moedas de cobre, o que parecia pouco provável pelo peso da incomodativa
moeda. Certo é que pagava tudo quanto comprava – e tornara-se um dos melhores
fregueses dos índios – com vinténs.
Pobre Cardoso
Guaporé! Para que sermos rigorosos para com ele? Em extremo bajulador,
frequentemente descia ao acampamento dos Buritis para intrigar-nos com o
Comandante, levando-lhe um sem-número de bisbilhotices e mexericos.
A cada
momento estranhava que os dois engenheiros, um Capitão e outro, simples
Alferes, não prestassem mais obediência a tão elevada patente da Guarda
Nacional. E tanto insistia nisto que o velho mandão da roça, ainda que
astucioso e prático na vida, afinal se impressionara com a pretendida falta de
disciplina e conosco armou aberto conflito.
Cardoso
Guaporé faleceu uns dez ou doze anos depois da nossa estada nos Morros, em 1876
ou 1878. Voltara à Vila de Miranda, onde fora reintegrado nas funções de
coletor. (TAUNAY, 1948) (Continua...)
Bibliografia
TAUNAY, Afonso d’Escragnolle. Memórias do V. de Taunay ‒ Brasil ‒ São Paulo, SP ‒ Instituto Progresso Editorial, 1948.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia
Brasileira (SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
[1] Panegírico:
elogio. (Hiram Reis)
[2] Regabofes:
festa em que se bebe e come à farta. (Hiram Reis)
[3] Guimarães:
Chapada dos Guimarães. (Hiram Reis)
[4] Prognatismo: crescimento excessivo da
mandíbula. (Hiram Reis)
[5] Esculápio: médico. (Hiram Reis)
[6] Desdisse: negou. (Hiram Reis)
[7] Méco: médico. (Hiram Reis)
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
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Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H