Quarta-feira, 16 de agosto de 2023 - 06h04
Bagé, 16.08.2023
CAPITÃO COSTA PEREIRA
Oficial
reformado de cavalaria, morador em Nioaque, passara pelas mais terríveis
inclemências para salvar a família, composta de mulher, ainda moça e bonita,
distinta nos modos, e de dois filhinhos. Falador, metido a valente e, aliás,
exprimindo-se bem e não raro com calor e até eloquência, tinha particular propensão
à gabolice. A ouvi-lo, fora ele só quem pusera todos os habitantes do Distrito
de Miranda fora do alcance da espada dos paraguaios. Verdade é que, depois, na
Retirada da Laguna, mostrou, não poucas vezes, singular valentia. Em todo o
caso, nos Morros atirara-se com decidida coragem ao trabalho e abrira uma das
maiores roças de milho e arroz.
A mulher...
que pena me metia aquela senhora, visivelmente de origem, maneiras e aspirações
muito superiores ao triste meio em que se vira coagida a viver! Vestida de
farrapos, em estado de adiantada gravidez, numa barraca esburacada, de pés no
chão, no último grau da anemia, era a imagem da desolação e do desânimo. Costa
Pereira casou-se novamente, no Rio de Janeiro, com uma professora pública e
morreu, creio que em 1889, já então quase totalmente cego. Inteligente e com
algumas qualidades até distintas, este homem muito se prejudicou pela índole
vária ([1])
e a imprudência da linguagem, o que afinal o forçou a pedir reforma e abandonar
a carreira das armas, passo de que sempre se arrependeu.
Era muito
ruivo, com cabelos anelados, cílios quase brancos, rosto todo mosqueado de
grandes manchas de sarda. (TAUNAY, 1948)
JOÃO FAUSTINO DO PRADO
Tenente da
Guarda Nacional, com um pai muito idoso, João Leme do Prado, descendente dos
grandes e temerários sertanistas das Bandeiras Paulistas que, no século
passado, haviam devassado todo esse Sul de Mato Grosso. Era casado com uma
mulher indiática e feia. Esse João Faustino tomou-se de grande amizade por mim
e dele conservo a expressão angustiosa com que me interrogou, ao abraçar-me depois
da Retirada da Laguna.
– Ah!
meu Taunay.
Dizia em
lágrimas.
– Como
é que você, tão delicado, criado na Corte, pôde salvar-se? Saia quanto antes
deste Mato Grosso; são terras demais brutas para sua educação e natureza.
Deixe-as a mim e a outros que tais, nascidos aqui como gado bravio!
Morava no
Morro do Azeite, perto do Rio Miranda. (TAUNAY, 1948)
JOÃO MAMEDE CORDEIRO DE FARIA
Outro
mirandense que me dedicou muita simpatia, senão amizade. Bastante calado,
saía-se de repente com ditos agudos e engraçados. Para gracejar com ele compus
uma quadrinha em língua chané ([2]),
que ensinei aos companheiros, e até às índias, e com que acolhíamos o Mamede,
quando ele, vindo das matas do Aquidauana, onde se acoitara ([3]),
aparecia nos Morros. Também ecoavam estrondosos os aplausos e gargalhadas,
provocadas por esta saudação, a que apliquei, ó profanação! Um trecho do
minueto [sonata 49, n° 2] do grande Beethoven.
O Mamede e o
João Canuto eram filhos de uma D. Maria Domingas, que tinha fazenda de criação,
não pouco importante, do lado esquerdo e direito do Aquidauana. Nestas terras é
que deveria efetuar-se, segundo opináramos, a passagem das nossas Forças para
entrarem no Distrito de Miranda, ainda então ocupado pelos paraguaios. A
evacuação do nosso território pelo inimigo, que se concentrou todo na linha do
Apa, tornou desnecessária qualquer precaução, abrindo-nos bem franca a estrada
geral que passa pelo Porto do Sousa, fazendeiro vizinho daquela D. Maria
Domingas. Já de volta ao Rio de Janeiro troquei com Mamede de Faria algumas
saudosas cartas. Com pesar real recebi a notícia do seu falecimento. (TAUNAY,
1948)
JOÃO PACHECO DE ALMEIDA
Bem moço
ainda, pois não completara 30 anos. Muito magro, estatura média, branco, ou
antes, mestiço disfarçado, rosto sobre o comprido, com maçãs muito salientes e
faces encovadas, olhos grandes e um tanto esbugalhados, pouca barba, cabelos
agarrados ao casco, orelhas sobremaneira destacadas da cabeça, de abano, como
dizem. Ativo, simpático, bastante inteligente, amável de natureza, alegre, até
certo ponto generoso apesar de alguns hábitos interesseiros, em extremo atirado
às mulheres, como, aliás, o geral dos mato-grossenses que conheci.
Este,
entretanto, era terrível, realizando o tipo do famoso cavalheiro de Pierre de
Brantôme nas “Damas Galantes”, apesar
da amásia, extremamente ciumenta, de nome Augusta. Era esta mulher quem nos
fazia a cozinha, mas como vivia muito retraída nunca a vi bem, trocando com ela
bem poucas palavras. Ouvi-a, entretanto, queixar-se várias vezes, e com amargura,
das façanhas do amante.
– Parece,
dizia ela, que valho menos do que quanta índia suja e
sarnenta há por aí.
E, com
efeito, grassava o “acarus scabiei” ([4])
de modo pavoroso entre os índios, por vestirem quantas roupas conseguiam roubar
aos paraguaios, muito afeitos a este mal. Nós mesmos não escapamos do terrível
parasita e por causa dele não pouco sofremos, com grandes acúmulos nas
articulações, sobretudo cotovelos. Pacheco de Almeida portou-se sempre bem e
simpaticamente conosco. Embora ganancioso, jamais quis receber coisa alguma, a
menor retribuição, pela hospedagem que nos dava e que durou nada menos de
meses. Não pouca gratidão devemos à sua memória, pois era de rosto aberto e
jovial que sempre nos falava e respondia quando queríamos discutir essa
delicada questão de pagamento. Tinha, entretanto, nos livros de notas e
escrituração coisas impagáveis e que denotavam modos de proceder bem diverso em
relação a outros. Emprestava dinheiro e adiantava aos índios roupas e gêneros. O
capital empregado não podia deixar de ser limitadíssimo, dois mil réis a um,
cinco mil réis a outro e quando muito dez mil réis aos que lhe mereciam mais
confiança; mas as cobranças, capital e juros se faziam rigorosamente, sendo
tudo especificado nos cadernos do “Deve e
Haver”.
Com semelhantes teorias e processos, mais de louvar se tornou o desapego
de João Pacheco de Almeida para conosco. Depois de certo período de convivência
consagrou-nos verdadeira amizade, achando graça em tudo quanto eu dizia e
admirando no Pereira do Lago a decisão e o bom senso.
‒ É a
cabeça e o braço ‒ costumava dizer.
Por nossa
causa, tão identificados em breve tempo ficamos, inimizou-se com o “Tutu” de Miranda, Tenente-Coronel da
Guarda Nacional, estabelecido à base da Serra de Maracaju num ponto chamado
Buriti a que pomposamente intitulara “Acampamento
três léguas e meia em frente ao inimigo”, por se achar, com efeito, àquela
distância do Rio Aquidauana. Nem por isso, porém, deixava de ser cauteloso e
seguro esconderijo, encerrado em pedregosa brenha de bem difícil acesso.
Qual o
destino de João Pacheco de Almeida? Acompanhou, descendo dos Morros, as Forças
Expedicionárias quando a elas nós, eu e Lago, nos juntamos; fez a marcha de
Nioaque para a Colônia de Miranda e daí para a fronteira do Apa e Forte de Bela
Vista. Tomou parte na Retirada da Laguna e, nos elogios oficiais lavrados,
todos, por minha pena exclusiva, pus todo o empenho em lhe fazer valer os
serviços de guerra, já então Tenente em Comissão. Também mereceu o Hábito da Rosa.
O mísero,
porém, nem sequer soube dessa distinção que o teria enchido de justo
desvanecimento, arrebatado à vida, em junho ou julho de 1867, nesse mesmo
lugar dos Morros, por um tiro homicida, mandado dar, dizem, por ordem de um
inimigo de longa data. O assassino achara-o dormindo encostado na parede de um
rancho de palha; entreabrira simplesmente a delgada separação e encostando-lhe
a boca da garrucha ao corpo, fê-lo instantaneamente passar do sono à morte, na
bela frase da Bíblia. A cruenta e fácil proeza não ficou, porém, impune. Perseguido
pelos amigos e companheiros de Pacheco, foi o miserável capanga morto no mesmo
dia.
Não é
singular, tantos anos depois, estar eu a evocar a lembrança desse bom e obscuro
camarada de passadas eras e para ele pedir, se possível for, um olhar de
benevolência da posteridade? Muito não se podia exigir do mais que modesto
filho de Mato Grosso na apertada esfera em que nascera, fora criado e finou-se.
Não me é lícito, entretanto, esquecer a boa e franca hospitalidade que me
dispensou por tantos meses, sempre risonho, amável e a seu modo generoso e
largo. (TAUNAY, 1948)
VALÉRIO DE ARRUDA BOTELHO
Já meio
idoso, mas muito alegre e cheio de atividade e iniciativa, morava com a mulher
e duas filhas, quase moças, longe do nosso acampamento, num sítio formosíssimo,
junto ao Ribeirão das Piraputangas. Ali nos hospedamos, Pereira do Lago e eu,
quando fomos explorar a margem direita do Aquidauana, como complemento da
Comissão trazida do Coxim.
Que dia
agradável e quanta anedota divertida, quanto episódio grotesco nos narrou da
invasão paraguaia! Não se poupou a si mesmo, descrevendo os medos tremendos que
curtira, apavorando-se de tudo, de um matagal, de uma vaca parada, de um tronco
de árvore! Difícil era ter mais verve ([5]),
mais espírito natural, do que este bom homem, extremoso e ciumento da sua,
aliás, bem organizada família.
Na madrugada seguinte acompanhou-nos e por um raiar esplêndido de
incomparável aurora, cantou em dueto com o João Pacheco, ambos bem afinados de
voz, melodiosa modinha que sobremaneira me agradou e cuja música ainda hoje
reproduzo ao piano.
Como vem
linda surgindo
A serena madrugada!
Que saudades
agora, neste momento, sinto, ao lembrar-me daquele estupendo cenário, do cantar
incipiente de mil pássaros, do ruído longínquo do Aquidauana, encachoeirado
naquele trecho, e do colorido purpúreo e áureo do céu em que víamos subir, leve
e adelgaçadamente, novelos de fumaça, a mais e mais densa. Eram os paraguaios
que, na margem de lá do Rio, começavam a lançar fogo à macega dos campos a fim
de prepararem pastagens para o gado... E como nos agradava sentir uma pontinha
de frio no calidíssímo Mato Grosso! É que também estávamos em não pequena
altitude, naqueles contrafortes da serra.
Recordo-me
bem, a este respeito, que no dia 24.06.1866, dia de São João Batista, curti
tanto, tanto frio no meu rancho de folhas de palmeira, que mandei fazer fogo no
chão e peguei no sono meio asfixiado pelo fumo. Também essa temperatura baixa
só dura uns seis a oito dias; depois volta o calor violento, sobretudo em
Cuiabá.
Valério de
Arruda Botelho sempre nos mostrou muita dedicação e amizade. Ainda vive,
estabelecido em Nioaque, onde perdeu a mulher e casou as duas estremecidas ([6])
filhas. Deve estar bem adiantado em anos, talvez para cima dos oitenta.
(TAUNAY, 1948)
Bibliografia
TAUNAY, Afonso
d’Escragnolle. Memórias do V. de Taunay
‒ Brasil ‒ São Paulo, SP ‒ Instituto Progresso Editorial, 1948.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira
(SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
[1] Vária: inconstante. (Hiram Reis)
[2] Chané: língua do grupo Chané formado pelas etnias Terenas,
Laianos, Guanás e Quiniquinaus. (Hiram Reis)
[3] Acoitara: homiziara. (Hiram
Reis)
[4] Acarus scabiei: ácaro que produz a escabiose ou sarna. (Hiram
Reis)
[5] Verve: maginação. (Hiram Reis)
[6] Estremecidas: queridas. (Hiram
Reis)
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