Quarta-feira, 13 de setembro de 2023 - 06h10
Bagé, 13.09.2023
A MEDICINA NA
GUERRA DO PARAGUAI
(Mato Grosso)
LUIZ DE CASTRO SOUZA
Sócio efetivo do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro e Membro titular do Instituto Brasileiro de História da
Medicina.
Em outro documento referente à Retirada, do comandante
do 17° Batalhão de Voluntários da Pátria, o Ten Cel em Comissão Antônio Enéias
Gustavo Galvão assevera em parte de n° 30, de 28.05.1867:
Não
posso deixar em esquecimento o nome do distinto Cirurgião Doutor Manoel de
Aragão Gesteira, que com a maior humanidade e ao lado sempre dos soldados
feridos em número de vinte e nove, e de setenta e seis atacados da epidemia,
deu provas mais exuberantes de sua dedicação no curativo dos mesmos ([1]).
Já o Major José Tomás Gonçalves, como comandante
interino da Coluna, em sua parte dirigida ao presidente da província de Mato
Grosso, em ofício datado de 16 de junho de 1867, no qual narra todos os
acontecimentos da Retirada da Laguna, faz elogiosas referências aos médicos
militares, quando afirma:
Os
dois médicos juntos a esta coluna, portaram-se com a caridade e dedicação que a
ciência recomenda, e que as leis militares deles exigem.
E continua:
Os
dignos e inteligentes 1os Cirurgiães Drs. Cândido Manoel de Oliveira
Quintana e Manoel de Aragão Gesteira curavam aos feridos nos campos de ação,
desenvolvendo por ocasião do aparecimento da cólera [sic] atividade incansável,
sempre solícitos pelo estado do soldado enfermo, apesar de lutarem com a falta
absoluta de medicamentos (TAUNAY, 1874).
E na Ordem do Dia n° 3, de 12.06.1867, no acampamento
junto à margem esquerda do Rio Aquidauana, o acima referido comandante interino
da Coluna, ainda exalta a atuação dos médicos militares, nos seguintes termos:
Os 1os
Cirurgiões Drs. Cândido Manoel de Oliveira Quintana e Manoel de Aragão
Gesteira, muito se distinguiram nessas jornadas de glória no curativo dos feridos,
não se enfraquecendo a sua caridade e dedicação nos funéreos dias da
cólera-morbo [sic] honra a esses nobres facultativos! (TAUNAY, 1874).
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A Coluna de Mato Grosso, como anteriormente nos
referimos, fazia-se acompanhar pelos familiares, do mesmo modo como procediam
os nossos exércitos em ação no teatro Principal da Guerra. Era a instituição do
Exército patriarcal com que fizemos a Guerra do Paraguai na afirmação do
historiador General F. de Paula Cidade. Diz Taunay que na Retirada da Laguna
chegara a contar cerca de setenta e uma mulheres: a maioria caminhava a pé, exceto
duas, montadas em bestas.
Assevera, ainda, que quase todas carregavam crianças de
peito ou pouco mais velhas. Esse grupo de mulheres e crianças de todas as
idades representaram não só problemas quanto à alimentação, mas, também, no que
diz respeito à segurança da tropa.
A presença da mulher na Retirada da Laguna,
foi assinalada por cenas comoventes e momentos épicos, cujos episódios foram
narrados pelo emérito escritor da Expedição. Afirma Taunay que no combate de
Bayendê, a 8 de maio:
Uma mulher apanha a
clavina do marido morto e, disparando-a por vezes, defende a vida de um
filhinho de colo que depositara no chão (TAUNAY, 1878).
Outra,
Havendo-se encarniçado
um paraguaio em lhe arrancar o filho, tomara ela de um salto uma espada largada
no chão, e num ápice matara o assaltante. Mais infeliz vira outra o filhinho
recém-nascido espostejado ([2])
por um inimigo, que pelas pernas lho arrancara do colo.
E conclui Taunay, que essas pobres
mulheres:
traziam todas no
rosto, os estigmas do sofrimento e da extrema miséria (TAUNAY, 1874).
Se naquelas mulheres o
sentimento materno se manifestou eloquentemente diante do perigo e da própria
morte, uma, entre todas, além desse espírito d’alma comum, deixou marcada sua
bravura, destemor, bondade. Deu-se o fato por ocasião do combate do dia 11 de
maio, quando a totalidade das mulheres escondia-se sob as carretas, ali
disputando um lugar com horrível tumulto e alarido. Aquela, entretanto,
colocada durante a peleja, no meio do quadrado formado pelo 17° Batalhão de
Voluntários da Pátria, indiferente às balas, às lanças e aos ataques do
inimigo, desvelara-se por todos e, antecipando os primeiros socorros dos
médicos, rasgava as próprias roupas para tratar as feridas gloriosas dos nossos
soldados (TAUNAY, 1874).
Foi uma autêntica heroína essa mulher de um soldado que
se chamava Ana e cognominada Ana Mamuda, cujo gesto digno e humano, se fixou na
admiração e na gratidão de todos. Era uma humilde negra de coração branco, mas,
antes de tudo, mulher. Sublime mulher, cuja glória a história tem o dever de
registrar e consagrar.
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As ocorrências médico-cirúrgicas da Retirada da Laguna
foram narradas pelo Capitão 1° Cirurgião, Dr. Cândido Manoel de Oliveira
Quintana, responsável pelo Serviço de Saúde da Expedição, pois era oficial
médico mais antigo do que seu colega Capitão 1° Cirurgião, Dr. Manoel de Aragão
Gesteira. Em sua parte oficial, apresentada em 15.06.1867, no acampamento à
margem esquerda do Rio Aquidauana, dirigida ao Major José Tomás Gonçalves,
comandante interino das Forças, relata o Dr. Quintana:
Ilm°
Sr. – Havendo V. Sª, exigido de mim uma parte sobre a epidemia e ferimentos
havidos na Expedição de Mato Grosso, passo muito perfunctoriamente ([3])
a expender o seguinte: Que no dia dez de maio, na Bela Vista, foi-me trazido à
consulta um índio que sofria de diarreia abundante e que no dia seguinte
faleceu. Este doente, por causa da longa marcha e dos muitos outros que
tínhamos a tratar, faleceu, sem que tivéssemos bem observado sua enfermidade.
No
dia 17, às 23h00, pouco mais ou menos, entraram mais dois enfermos para a enfermaria,
os quais atraíram a atenção pelos grandes gritos que davam em consequência de
cãibras e pela semelhança dos sintomas de ambos, que eram: grande sede,
supressão de urinas, vômitos, evacuações alvinas abundantíssimas, resfriamento
das extremidades. e no dia seguinte, os em que morreram, estavam desfigurados
pela magreza do rosto; então julgamos que tínhamos em presença a horrenda
epidemia de cholera-morbus, que no dia subsequente tornou-se evidente, pela
entrada de muitos atacados com os sintomas seguintes: vômitos, evacuações
alvinas abundantes de uma matéria semelhante à água de arroz, grande sede,
dispneia, pulso pequeno, frequente, supressão de urinas, mudança extrema no
metal da voz e mesmo afonia, pele fria, cianose, magreza e desfiguramento rápido
do rosto etc.
A
falta de víveres, de barracas e roupa suficiente na estação do inverno, muito
deveria concorrer para aumentar o número de atacados, os quais, entrando nas
enfermarias, também, aí não acharam abrigo contra as intempéries. Os medicamentos
no fim de poucos dias estavam acabados. As marchas muitas vezes durante o dia
inteiro, algumas vezes de noite, a péssima condução de carros puxados a bois,
em que os doentes comprimiam-se mutuamente, pela exiguidade de espaço, deveriam
ter grande parte do acréscimo da mortalidade, que era de quase todos os
atacados.
Afinal
todos os carros foram queimados por necessidade; os doentes eram conduzidos em
padiolas por soldados enfraquecidos pela fome, estropiados, que se recusavam a
carregá-los, e que os deixavam atirados no caminho, sempre que o podiam fazer.
Os sãos já mal eram suficientes para conduzir os doentes, sendo preciso
caminhar com presteza, pois já nenhum alimento tínhamos, além das poucas reses
que puxavam a artilharia. À vista disto, foram os doentes de cholera-morbus
deixados no pouso por ordem superior, no dia 26 de maio. Até o dia 1 de junho a
epidemia ainda não tinha cessado. Nesse dia, tendo as Forças começado a marcha,
quase à noite, debaixo de chuva fortíssima, caminhou-se seis léguas. Durante
este trajeto, que terminou no dia 2 de tarde, morreram alguns coléricos, e no
dia 3 o último doente grave dessa enfermidade que ainda restava. Nesse dia, a
epidemia cessou.
Quanto
aos feridos em combate, também tivemos de sofrer as mesmas faltas. Nenhuma
operação de alta cirurgia foi necessário praticar. Deram-se pontos de sutura,
fizeram-se compressões nas artérias para suprimir hemorragias, cauterização com
nitrato de prata etc. Os médicos que se achavam nas Forças éramos eu e o 1°
Cirurgião Dr. Manoel de Aragão Gesteira. O número de feridos foi de 41; 37
praças e 4 oficiais; o dos coléricos que faleceram foi de 173: 10 oficiais e
163 praças. Os que ficaram em caminho todos moribundos, foram 122, incluindo
tanto os que ficaram por ordens superior, como os que eram deixados pelos
soldados que os conduziam.
É
o que tenho a participar a V. Sª, a quem Deus Guarde ([4]).
Devemos dizer que a distribuição dos víveres entre os
soldados, realizada no dia 13, para desatravancar algumas carretas, resultou em
seu rápido consumo, sem a previsão necessária, quando, então, começou a fome a
atingir os nossos expedicionários. O cansaço com as marchas contínuas, os
sobressaltos e a tensão reinantes, tiveram consequências as mais terríveis para
o organismo das praças.
Agravava, ainda mais, as mudanças bruscas da
temperatura com as chuvas torrenciais e os campos encharcados, para no dia
seguinte surgirem o calor abrasador e o incêndio das macegas. Os acampamentos
eram insalubres, em condições defeituosas de higiene individual e coletiva; os
nossos expedicionários dormiam ao relento, sem barracas e em terreno úmido, e
as vezes trocavam o sono pela vigília. Os bois dos carros tinham que ser
sacrificados para o sustento das praças. Os recursos alimentares eram
procurados no mato, tirando-se palmitos, frutos verdes e podres, e caçando. O
gado de corte que se abatia, habitualmente, 21 reses, passou a ser 4 ou 8
reses, aproveitadas do gado utilizado como animal de carga. Diz o comandante
interino, em sua parte oficial sobre os acontecimentos da Retirada da Laguna,
que foram 22 dias de cruel fome!
Afirma Taunay, na página 103, que na parada do dia 18
de maio, quando já imperavam a fome e o frio, após copiosa chuva, que
encharcara as vestes dos nossos expedicionários, a muito custo puderam ter
fogo, empilhando
Muita
lenha verde que ardia quase sem labaredas.
E acrescenta:
Nauseante espetáculo
revelou-nos, nesse lugar, quando entre os nossos soldados era a fome tremenda.
Ia matar-se um boi estafado, quase agonizante. Formara-se um círculo em torno
do animal, cada qual mais ansioso esperando o jato do sangue, uns para o
receberem num vaso e o levarem, outros para o beberem ali mesmo. Chegado o
momento, atiraram-se todos a ele, os mais afastados e os mais próximos. E assim
era diariamente. Mal tinha o açougueiro tempo de cortar a rês; era quase
necessário arrancar às mãos dos soldados os nacos, a fim de os levar ao local
da distribuição. Os resíduos, as vísceras, até o couro, tudo se despedaçava ali
mesmo e era logo devorado mal assado ou cozido; repulsivo pasto de que não
podia deixar de originar-se alguma epidemia (TAUNAY, 1874).
Esse “nauseante espetáculo” transcrito pelo
Taunay, o qual se repetia “diariamente” na marcha da Coluna, faz-nos
pensar, sem dúvida, que depois daqueles banquetes macabros, o mal que atingiu
os nossos expedicionários, só poderia ter sido uma toxi-infecção alimentar com
gastroenterite aguda e não a cólera. A sintomatologia das gastroenterites por
intoxicação podem manifestar-se em poucas horas a 2, 3 ou 4 dias. E a
coincidência flagrante é quanto ao exato dia daquela cena triste; 17 de maio
para o Dr. Quintana ou 18 para Taunay por um lapso de memória, pois, entravam
às 23h00 na enfermaria ambulante, dois doentes com sinais do mal.
A infecção ou intoxicação fora agravada pela diminuição
das resistências orgânicas dos nossos soldados e como anotou o Dr. Irsag Amaral
da Cunha (CUNHA, 1954) que “nas toxinfecções a fadiga está sempre presente”,
estado esse já dominante entre os expedicionários e assim o terreno propício
para agravar a situação. Outro dado que desejamos acrescentar e lembrar, é
quanto ao
Consumo
da carne dos animais desnutridos e fatigados que acarreta frequentemente
intoxicações alimentares [Brouardel] (CAMPOS, 1927)
A dúvida do diagnóstico clínico e da propagação da
cólera na Coluna Expedicionária de Mato Grosso, foram suscitadas, desde aquela
época, pois o Dr. José Pereira Rego [Barão de Lavradio em 25.09.1872 e com
honras de grandeza em 19.09.1877], em seu Relatório da Junta de Higiene
Pública, de 26 de março de 1868, na parte referente à cholera-morbus na Força
Expedicionária ao sul de Mato Grosso, depois de transcrever a parte oficial
escrita pelo Dr. QUINTANA, afirma:
O aparecimento desta
epidemia em uma expedição que nenhum contato teve nem com homens, nem com
objetos procedentes das povoações atacadas de cólera-morbo desperta o interesse
da resolução de duas questões: 1ª, se foi uma verdadeira epidemia de cólera ou
de outra moléstia simulando-a; 2ª, como se desenvolveu ela? Por transmissão ou
espontaneamente?
A
Primeira, presumo resolvida pelo complexo de sintomas acima expostos, os quais
não podem deixar a menor dúvida no espírito acerca da existência da cólera.
Quanto à 2ª, é por ora arriscado qualquer juízo que se possa enunciar a este
respeito, cumprindo adiar a sua solução para quando se apresentarem dados mais
positivos e melhores esclarecimentos. Competindo de preferência a resolução
deste difícil problema às testemunhas oculares dos fatos, limitar-me-ei a
aventurar um juízo, e vem a ser que me parece acreditável a transmissão da
moléstia à expedição de Mato Grosso pela atmosfera infectada do Paraguai;
porquanto, como se sabe, a enfermidade, depois dos estragos feitos na República
Argentina, e no nosso Exército, em operações contra a República do Paraguai,
saltou às fileiras de Exército deste e dizimou não pequeno número de soldados.
Muito
fácil era, portanto, que o elemento gerador da moléstia fosse levado aos
diferentes pontos do interior do país, quer pelas comunicações fluviais, quer
pelas terrestres, comunicações inevitáveis em uma época de guerra e que o
estado de fadiga e outras circunstâncias desfavoráveis da Expedição ao pisar a
terra paraguaia facilitasse o seu acometimento pela moléstia, ainda mesmo
quando já pouca influência exercesse seu elemento gerador sobre os habitantes
do país. Em conclusão direi: que a
cólera, que grassou em Mato Grosso, diferenciou-se sensivelmente daquela que
reinou nesta Corte, aproximando-se de algum modo do caráter das epidemias
primitivas que se manifestaram depois de sua transmissão do lugar donde é
originária, como se deduz dos sintomas acima expostos [os grifos são
nossos] (REGO FILHO, 1908).
Mais tarde, o Dr. Alexandre José Soeiro de Faria
Guarany, em seu “Esboço histórico das epidemias de cholera-morbus”, que
reinaram no Brasil desde 1855 até 1867 (GUARANY), quando menciona a epidemia da
Coluna, diz entre outras coisas:
A
que causa atribuir-se a invasão dessa epidemia? – Com efeito a moléstia fatal,
que dizimou a nossa Expedição e que teve por epílogo o que acabamos de
descrever, foi a enfermidade denominada cólera, nascida nas Índias Orientais?
Ou seria a que é separada pela especificidade de causa, conhecida desde as mais
remotas épocas por cholera-nostra?
Ao concluir pela cólera verdadeira, isto é, determinada
pelo vibrião colérico, afirma também que a transmissão do germe epidêmico fora
dos próprios reforços militares que López mandara para engrossar as suas
colunas em Mato Grosso. O Dr. Luiz Brandão Filho (BRANDÃO FILHO), em 1941,
publicou um belo trabalho interpretativo acerca da epidemia reinante na
Retirada da Laguna, levantando a dúvida sobre a cólera que havia dizimado os
nossos patrícios e concluiu que aquele mal súbito e terrível, não passava de
uma profunda intoxicação alimentar à que se associava uma grande carência de
vitaminas. Este médico baseou-se para essa conclusão, apenas no texto do livro
do Visconde de Taunay sobre a Expedição, sem conhecer os documentos agora
apresentados, o que faz ressaltar, ainda mais, o seu valioso trabalho. A
disseminação da cólera na Coluna de Mato Grosso é apontada por vários autores
como de responsabilidade dos reforços enviados por López, pois, na frente
principal da guerra, no Paraguai, o mal havia feito devastação nos combatentes.
As nossas Forças, naquele Teatro de
Operações, sofreram as consequências do morbo nos fins do mês de março até maio
de 1867, quando depois atingiria os combatentes paraguaios. Não sabemos
exatamente donde haviam partido os citados reforços; se foram de zonas já
contaminadas pelo mal, porém nesse caso os responsáveis pelo contágio só poderiam
ser os bacilíferos, os portadores de germes, que são pessoas, que abrigam
germes patogênicos sem serem atingidos pela infecção. Estes portadores em
contato com pessoas receptíveis, provocam a contaminação. É a causa da
propagação a grandes distâncias, comprovada também na epidemiologia da cólera,
hoje devidamente esclarecida e naquela época tendo como responsável a “atmosfera
infectada” ... defendida pelos grandes mestres daquele tempo. A realidade é
que nos referidos reforços paraguaios – se haviam portadores de germes e outros
receptíveis – não houve incidência da cólera e até mesmo depois daquela cena
horripilante narrada por Taunay, quando os inimigos
Abriram as covas,
delas exumando os cadáveres para os despojar dos miseráveis andrajos, que
depois, violentamente, entre si disputavam (TAUNAY, 1874).
Este fato vem ainda comprovar que aquela entidade
patológica não era a cólera, por continuar imune às Forças paraguaias que nos
atacaram, após o contágio pelo uso dos objetos de nossos soldados falecidos. E
para deixar ainda mais arraigada a ideia de ter sido a intoxicação alimentar
responsável por aquele quadro epidêmico, vamos transcrever, na íntegra, um
trecho do Taunay, publicado em suas Memórias [nas páginas 244 e 245] sobre a
enfermidade do comandante Carlos de Moraes Camisão e seu imediato,
Tenente-Coronel Juvêncio Cabral de Meneses, falecidos a 29.05.1867 e
relacionados como vítimas da suposta epidemia de cólera-morbo da Expedição:
Escapei da cólera por
modo bem singular e graças à boa inspiração de momento, expediente que me
acudiu de súbito à ideia e executei sem mais vacilação. Boa inspiração?
Decerto. A vida ainda tinha que me proporcionar bem bons trechos, que deveras
compensaram largamente não pequenas contrariedades e até grandes
aborrecimentos, conforme irei contando com mais método, à medida que as datas
se forem tornando mais frescas e recentes. Havíamos já abandonado os coléricos.
Exatamente na véspera. Indo falar com o Coronel Camisão, encontrei-o em
companhia de Juvêncio, sentados num cocho, a comerem tristemente uma carne
viciada mas com muita pimenta do reino. O aspecto era mau, entretanto, o cheiro
acre não deixava de agradar ao olfato, explicou-me o Coronel:
O meu camarada achou não sei que temperos no fundo de uma bruaca e
preparou-nos isto. O Sr. quer provar?
Não me fiz de rogado
com a fome que me torturava o estômago e aceitei um pedacinho de carne com
arroz, cujo gosto a princípio me soube bem ([5]).
Depois, porém, ao retirar-me, senti-me enjoado e logo me acudiu sinistro
pensamento: “Estou com a cólera!”
E com alguma ansiedade pus-me a caminhar depressa. Foi quando, ao avistar uma
flor de capim que pendia de comprida haste, puxei-a e com ela esfreguei
violentamente a garganta até provocar grande vômito, que logo me aliviou. Bebi
um caneco d’água fresca, que ainda me fez lançar; mas então já experimentava
como que a posse da vida nova e segura, a consciência de ter escapado de
iminente perigo. Horas depois, Camisão, Juvêncio, o camarada daquele e o
desasado ([6])
cozinheiro, todos quantos haviam comido da tal carne tão picantemente adubada,
estavam mortalmente atacados de cholera-morbus! O nosso Chefe Juvêncio Manuel
Cabral de Meneses foi salteado pela enfermidade de modo sensivelmente fraco,
mas não houve como tratá-lo por falta de medicamentos e cuidados de regime. Bem
me recordo da noite em que sentiu a invasão do mal. Dormíamos juntos num couro
estendido. De repente, acordou-me, sacudindo-me com violência, e disse:
Taunay estou com a cólera, não há dúvida!
Deixe-se de medos,
respondi-lhe, aborrecido por ser interrompido no meu repouso de chumbo. E
tornei a pegar no sono enquanto o pobre desgraçado repetia:
Taunay, veja se me arranja algum remediozinho com o Gesteira!
E não foi senão a
muito custo que me pode despertar
Deveras o Sr. está doente ou é
cisma?
E ele respondeu:
Grandes vômitos ([7]).
Levantei-me e, ao sair
da barraca, por noite fria e úmida, ouvi ao lado um tiro de espingarda. Era o
camarada do Coronel Camisão que acabara de suicidar-se para não suportar mais
as dores que lhe torciam pernas e braços. Ao voltar do Gesteira, com uns papeizinhos
de subnitrato de bismuto, achei já o Juvêncio também com cãibras e a vomitar e
evacuar. (TAUNAY, 1948) (CONTINUA...)
Bibliografia
SOUZA, Luiz de Castro. A
Medicina na Guerra do Paraguai (I a V) – Brasil – São Paulo, SP – USP,
Revista de História, 1968, 1969 e 1970.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia
Brasileira (SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
[1] Arquivo
Nacional. IG 1 – 242, doc. 413. (SOUZA)
[2] Espostejado:
esquartejado. (Hiram Reis)
[3] Perfunctoriamente:
de relance, ligeiramente. (Hiram Reis)
[4] Este documento
médico militar mereceu ser transcrito na “Gazeta Médica da Bahia”, Ano
II, n° 27 [pg. 36], 15.08.1867, possivelmente enviado pelo Dr. Quintana, na
época, e é idêntica à cópia que encontramos no Arquivo Nacional, IG 1 – 242,
doc. 383. A revista “O Arquivo de Cuiabá”, o publicou, em 1901, como,
também, em Anexos à obra “Epopeia da Laguna”, do General Lobo Vianna,
1920. Posteriormente, o encontramos transcrito na 14ª Edição da “Retirada
da Laguna”, Ed. Melhoramentos. Nessas últimas publicações, há omissões
quanto aos dados de óbitos. (SOUZA)
[5] Me soube bem:
me caiu bem. (Hiram Reis)
[6] Desasado:
desastrado. (Hiram Reis)
[7] Geralmente nos
casos de intoxicações com gastroenterite, os vômitos precedem às dejeções
líquidas, enquanto na cólera é o contrário que se observa. É o exemplo narrado.
(SOUZA)
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H