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Hiram Reis e Silva

Terceira Margem – Parte DCXXXVIII - A Medicina na Guerra do Paraguai Parte X


Terceira Margem – Parte DCXXXVIII - A Medicina na Guerra do Paraguai Parte X - Gente de Opinião

Bagé, 13.09.2023


A MEDICINA NA GUERRA DO PARAGUAI

(Mato Grosso)

LUIZ DE CASTRO SOUZA

Sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e Membro titular do Instituto Brasileiro de História da Medicina.

Em outro documento referente à Retirada, do co­mandante do 17° Batalhão de Voluntários da Pátria, o Ten Cel em Comissão Antônio Enéias Gustavo Galvão assevera em parte de n° 30, de 28.05.1867:

Não posso deixar em esquecimento o nome do distinto Cirurgião Doutor Manoel de Aragão Gesteira, que com a maior humanidade e ao lado sempre dos soldados feridos em número de vinte e nove, e de setenta e seis atacados da epidemia, deu provas mais exuberantes de sua dedicação no curativo dos mesmos ([1]).

Já o Major José Tomás Gonçalves, como comandante interino da Coluna, em sua parte dirigida ao presidente da província de Mato Grosso, em ofício datado de 16 de junho de 1867, no qual narra todos os acontecimentos da Retirada da Laguna, faz elogiosas referências aos médicos militares, quando afirma:

Os dois médicos juntos a esta coluna, portaram-se com a caridade e dedicação que a ciência recomenda, e que as leis militares deles exigem.

E continua:

Os dignos e inteligentes 1os Cirurgiães Drs. Cândido Manoel de Oliveira Quintana e Manoel de Aragão Gesteira curavam aos feridos nos campos de ação, desenvolvendo por ocasião do aparecimento da cólera [sic] atividade incansável, sempre solícitos pelo estado do soldado enfermo, apesar de lutarem com a falta absoluta de medicamentos (TAUNAY, 1874).

E na Ordem do Dia n° 3, de 12.06.1867, no acampa­mento junto à margem esquerda do Rio Aquidauana, o acima referido comandante interino da Coluna, ainda exalta a atuação dos médicos militares, nos seguintes termos:

Os 1os Cirurgiões Drs. Cândido Manoel de Oliveira Quintana e Manoel de Aragão Gesteira, muito se distinguiram nessas jornadas de glória no curativo dos feridos, não se enfraquecendo a sua caridade e dedicação nos funéreos dias da cólera-morbo [sic] honra a esses nobres facultativos! (TAUNAY, 1874).

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A Coluna de Mato Grosso, como anteriormente nos referimos, fazia-se acompanhar pelos familiares, do mesmo modo como procediam os nossos exércitos em ação no teatro Principal da Guerra. Era a instituição do Exército patriarcal com que fizemos a Guerra do Paraguai na afirmação do historiador General F. de Paula Cidade. Diz Taunay que na Retirada da Laguna chegara a contar cerca de setenta e uma mulheres: a maioria caminhava a pé, exceto duas, montadas em bestas.

Assevera, ainda, que quase todas carregavam crianças de peito ou pouco mais velhas. Esse grupo de mulheres e crianças de todas as idades representaram não só problemas quanto à alimentação, mas, também, no que diz respeito à segurança da tropa.

A presença da mulher na Retirada da Laguna, foi assinalada por cenas comoventes e momentos épicos, cujos episódios foram narrados pelo emérito escritor da Expedição. Afirma Taunay que no combate de Bayendê, a 8 de maio:

Uma mulher apanha a clavina do marido morto e, disparando-a por vezes, defende a vida de um filhinho de colo que depositara no chão (TAUNAY, 1878).

Outra,

Havendo-se encarniçado um paraguaio em lhe arrancar o filho, tomara ela de um salto uma espada largada no chão, e num ápice matara o assaltante. Mais infeliz vira outra o filhinho recém-nascido espostejado ([2]) por um inimigo, que pelas pernas lho arrancara do colo.

E conclui Taunay, que essas pobres mulheres:

traziam todas no rosto, os estigmas do sofrimento e da extrema miséria (TAUNAY, 1874).

Se naquelas mulheres o sentimento materno se ma­nifestou eloquentemente diante do perigo e da pró­pria morte, uma, entre todas, além desse espírito d’alma comum, deixou marcada sua bravura, deste­mor, bondade. Deu-se o fato por ocasião do combate do dia 11 de maio, quando a totalidade das mulheres escondia-se sob as carretas, ali disputando um lugar com horrível tumulto e alarido. Aquela, entretanto, colocada durante a peleja, no meio do quadrado formado pelo 17° Batalhão de Voluntários da Pátria, indiferente às balas, às lanças e aos ataques do inimigo, desvelara-se por todos e, antecipando os primeiros socorros dos médicos, rasgava as próprias roupas para tratar as feridas gloriosas dos nossos soldados (TAUNAY, 1874).

Foi uma autêntica heroína essa mulher de um soldado que se chamava Ana e cognominada Ana Mamuda, cujo gesto digno e humano, se fixou na admiração e na gratidão de todos. Era uma humilde negra de coração branco, mas, antes de tudo, mulher. Sublime mulher, cuja glória a história tem o dever de registrar e consagrar.

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As ocorrências médico-cirúrgicas da Retirada da Laguna foram narradas pelo Capitão 1° Cirurgião, Dr. Cândido Manoel de Oliveira Quintana, responsável pelo Serviço de Saúde da Expedição, pois era oficial médico mais antigo do que seu colega Capitão 1° Cirurgião, Dr. Manoel de Aragão Gesteira. Em sua parte oficial, apresentada em 15.06.1867, no acampamento à margem esquerda do Rio Aquidauana, dirigida ao Major José Tomás Gonçalves, comandante interino das Forças, relata o Dr. Quintana:

Ilm° Sr. – Havendo V. Sª, exigido de mim uma parte sobre a epidemia e ferimentos havidos na Expedição de Mato Grosso, passo muito perfunctoriamente ([3]) a expender o seguinte: Que no dia dez de maio, na Bela Vista, foi-me trazido à consulta um índio que sofria de diarreia abundante e que no dia seguinte faleceu. Este doente, por causa da longa marcha e dos muitos outros que tínhamos a tratar, faleceu, sem que tivéssemos bem observado sua enfermidade.

No dia 17, às 23h00, pouco mais ou menos, entraram mais dois enfermos para a enfermaria, os quais atraí­ram a atenção pelos grandes gritos que davam em consequência de cãibras e pela semelhança dos sinto­mas de ambos, que eram: grande sede, supressão de urinas, vômitos, evacuações alvinas abundantíssimas, resfriamento das extremidades. e no dia seguinte, os em que morreram, estavam desfigurados pela magreza do rosto; então julgamos que tínhamos em presença a horrenda epidemia de cholera-morbus, que no dia subsequente tornou-se evidente, pela entrada de muitos atacados com os sintomas seguintes: vômitos, evacuações alvinas abundantes de uma matéria seme­lhante à água de arroz, grande sede, dispneia, pulso pequeno, frequente, supressão de urinas, mudança extrema no metal da voz e mesmo afonia, pele fria, cianose, magreza e desfiguramento rápido do rosto etc.

A falta de víveres, de barracas e roupa suficiente na estação do inverno, muito deveria concorrer para aumentar o número de atacados, os quais, entrando nas enfermarias, também, aí não acharam abrigo contra as intempéries. Os medicamentos no fim de poucos dias estavam acabados. As marchas muitas vezes durante o dia inteiro, algumas vezes de noite, a péssima condução de carros puxados a bois, em que os doentes comprimiam-se mutuamente, pela exiguidade de espaço, deveriam ter grande parte do acréscimo da mortalidade, que era de quase todos os atacados.

Afinal todos os carros foram queimados por necessidade; os doentes eram conduzidos em padiolas por soldados enfraquecidos pela fome, estropiados, que se recusavam a carregá-los, e que os deixavam atirados no caminho, sempre que o podiam fazer. Os sãos já mal eram suficientes para conduzir os doentes, sendo preciso caminhar com presteza, pois já nenhum alimento tínhamos, além das poucas reses que puxavam a artilharia. À vista disto, foram os doentes de cholera-morbus deixados no pouso por ordem superior, no dia 26 de maio. Até o dia 1 de junho a epidemia ainda não tinha cessado. Nesse dia, tendo as Forças começado a marcha, quase à noite, debaixo de chuva fortíssima, caminhou-se seis léguas. Durante este trajeto, que terminou no dia 2 de tarde, morreram alguns coléricos, e no dia 3 o último doente grave dessa enfermidade que ainda restava. Nesse dia, a epidemia cessou.

Quanto aos feridos em combate, também tivemos de sofrer as mesmas faltas. Nenhuma operação de alta cirurgia foi necessário praticar. Deram-se pontos de sutura, fizeram-se compressões nas artérias para suprimir hemorragias, cauterização com nitrato de prata etc. Os médicos que se achavam nas Forças éramos eu e o 1° Cirurgião Dr. Manoel de Aragão Gesteira. O número de feridos foi de 41; 37 praças e 4 oficiais; o dos coléricos que faleceram foi de 173: 10 oficiais e 163 praças. Os que ficaram em caminho todos moribundos, foram 122, incluindo tanto os que ficaram por ordens superior, como os que eram deixados pelos soldados que os conduziam.

É o que tenho a participar a V. Sª, a quem Deus Guarde ([4]).

Devemos dizer que a distribuição dos víveres entre os soldados, realizada no dia 13, para desatravancar algumas carretas, resultou em seu rápido consumo, sem a previsão necessária, quando, então, começou a fome a atingir os nossos expedicionários. O cansaço com as marchas contínuas, os sobressaltos e a tensão reinantes, tiveram consequências as mais terríveis para o organismo das praças.

Agravava, ainda mais, as mudanças bruscas da temperatura com as chuvas torrenciais e os campos encharcados, para no dia seguinte surgirem o calor abrasador e o incêndio das macegas. Os acampa­mentos eram insalubres, em condições defeituosas de higiene individual e coletiva; os nossos expedicionários dormiam ao relento, sem barracas e em terreno úmido, e as vezes trocavam o sono pela vigília. Os bois dos carros tinham que ser sacrificados para o sustento das praças. Os recursos alimentares eram procurados no mato, tirando-se palmitos, frutos verdes e podres, e caçando. O gado de corte que se abatia, habitualmente, 21 reses, passou a ser 4 ou 8 reses, aproveitadas do gado utilizado como animal de carga. Diz o comandante interino, em sua parte oficial sobre os acontecimentos da Retirada da Laguna, que foram 22 dias de cruel fome!

Afirma Taunay, na página 103, que na parada do dia 18 de maio, quando já imperavam a fome e o frio, após copiosa chuva, que encharcara as vestes dos nossos expedicionários, a muito custo puderam ter fogo, empilhando

Muita lenha verde que ardia quase sem labaredas.

E acrescenta:

Nauseante espetáculo revelou-nos, nesse lugar, quando entre os nossos soldados era a fome tremenda. Ia matar-se um boi estafado, quase agonizante. Formara-se um círculo em torno do animal, cada qual mais ansioso esperando o jato do sangue, uns para o receberem num vaso e o levarem, outros para o beberem ali mesmo. Chegado o momento, atiraram-se todos a ele, os mais afastados e os mais próximos. E assim era diariamente. Mal tinha o açougueiro tempo de cortar a rês; era quase necessário arrancar às mãos dos soldados os nacos, a fim de os levar ao local da distribuição. Os resíduos, as vísceras, até o couro, tudo se despedaçava ali mesmo e era logo devorado mal assado ou cozido; repulsivo pasto de que não podia deixar de originar-se alguma epidemia (TAUNAY, 1874).

 

Esse “nauseante espetáculo” transcrito pelo Taunay, o qual se repetia “diariamente” na marcha da Coluna, faz-nos pensar, sem dúvida, que depois daqueles banquetes macabros, o mal que atingiu os nossos expedicionários, só poderia ter sido uma toxi-infecção alimentar com gastroenterite aguda e não a cólera. A sintomatologia das gastroenterites por intoxicação podem manifestar-se em poucas horas a 2, 3 ou 4 dias. E a coincidência flagrante é quanto ao exato dia daquela cena triste; 17 de maio para o Dr. Quintana ou 18 para Taunay por um lapso de memória, pois, entravam às 23h00 na enfermaria ambulante, dois doentes com sinais do mal.

A infecção ou intoxicação fora agravada pela diminuição das resistências orgânicas dos nossos soldados e como anotou o Dr. Irsag Amaral da Cunha (CUNHA, 1954) que “nas toxinfecções a fadiga está sempre presente”, estado esse já dominante entre os expedicionários e assim o terreno propício para agravar a situação. Outro dado que desejamos acrescentar e lembrar, é quanto ao

Consumo da carne dos animais desnutridos e fatigados que acarreta frequentemente intoxicações alimentares [Brouardel] (CAMPOS, 1927)

A dúvida do diagnóstico clínico e da propagação da cólera na Coluna Expedicionária de Mato Grosso, foram suscitadas, desde aquela época, pois o Dr. José Pereira Rego [Barão de Lavradio em 25.09.1872 e com honras de grandeza em 19.09.1877], em seu Relatório da Junta de Higiene Pública, de 26 de março de 1868, na parte referente à cholera-morbus na Força Expedicionária ao sul de Mato Grosso, depois de transcrever a parte oficial escrita pelo Dr. QUINTANA, afirma:

O aparecimento desta epidemia em uma expedição que nenhum contato teve nem com homens, nem com objetos procedentes das povoações atacadas de cólera-morbo desperta o interesse da resolução de duas questões: 1ª, se foi uma verdadeira epidemia de cólera ou de outra moléstia simulando-a; 2ª, como se desen­volveu ela? Por transmissão ou espontaneamente?

A Primeira, presumo resolvida pelo complexo de sintomas acima expostos, os quais não podem deixar a menor dúvida no espírito acerca da existência da cólera. Quanto à 2ª, é por ora arriscado qualquer juízo que se possa enunciar a este respeito, cumprindo adiar a sua solução para quando se apresentarem dados mais positivos e melhores esclarecimentos. Competindo de preferên­cia a resolução deste difícil problema às testemunhas oculares dos fatos, limitar-me-ei a aventurar um juízo, e vem a ser que me parece acreditável a transmissão da moléstia à expedição de Mato Grosso pela atmosfera infectada do Paraguai; porquanto, como se sabe, a enfermidade, depois dos estragos feitos na República Argentina, e no nosso Exército, em operações contra a República do Paraguai, saltou às fileiras de Exército deste e dizimou não pequeno número de soldados.

Muito fácil era, portanto, que o elemento gerador da moléstia fosse levado aos diferentes pontos do interior do país, quer pelas comunicações fluviais, quer pelas terrestres, comunicações inevitáveis em uma época de guerra e que o estado de fadiga e outras circunstâncias desfavoráveis da Expedição ao pisar a terra paraguaia facilitasse o seu acometi­mento pela moléstia, ainda mesmo quando já pouca influência exercesse seu elemento gerador sobre os habitantes do país. Em conclusão direi: que a cólera, que grassou em Mato Grosso, diferenciou-se sensivelmente daquela que reinou nesta Corte, aproximando-se de algum modo do caráter das epidemias primitivas que se manifestaram depois de sua transmissão do lugar donde é originária, como se deduz dos sintomas acima expostos [os grifos são nossos] (REGO FILHO, 1908).

Mais tarde, o Dr. Alexandre José Soeiro de Faria Guarany, em seu “Esboço histórico das epidemias de cholera-morbus”, que reinaram no Brasil desde 1855 até 1867 (GUARANY), quando menciona a epidemia da Coluna, diz entre outras coisas:

A que causa atribuir-se a invasão dessa epidemia? – Com efeito a moléstia fatal, que dizimou a nossa Expedição e que teve por epílogo o que acabamos de descrever, foi a enfermidade denominada cólera, nascida nas Índias Orientais? Ou seria a que é separada pela especificidade de causa, conhecida desde as mais remotas épocas por cholera-nostra?

Ao concluir pela cólera verdadeira, isto é, determi­nada pelo vibrião colérico, afirma também que a transmissão do germe epidêmico fora dos próprios reforços militares que López mandara para engrossar as suas colunas em Mato Grosso. O Dr. Luiz Brandão Filho (BRANDÃO FILHO), em 1941, publicou um belo trabalho interpretativo acerca da epidemia reinante na Retirada da Laguna, levantando a dúvida sobre a cólera que havia dizima­do os nossos patrícios e concluiu que aquele mal súbito e terrível, não passava de uma profunda intoxicação alimentar à que se associava uma grande carência de vitaminas. Este médico baseou-se para essa conclusão, apenas no texto do livro do Visconde de Taunay sobre a Expedição, sem conhecer os documentos agora apresentados, o que faz ressaltar, ainda mais, o seu valioso trabalho. A disseminação da cólera na Coluna de Mato Grosso é apontada por vários autores como de responsabilidade dos reforços enviados por López, pois, na frente principal da guerra, no Paraguai, o mal havia feito devastação nos combatentes.

As nossas Forças, naquele Teatro de Operações, sofreram as consequências do morbo nos fins do mês de março até maio de 1867, quando depois atingiria os combatentes paraguaios. Não sabemos exatamen­te donde haviam partido os citados reforços; se foram de zonas já contaminadas pelo mal, porém nesse caso os responsáveis pelo contágio só pode­riam ser os bacilíferos, os portadores de germes, que são pessoas, que abrigam germes patogênicos sem serem atingidos pela infecção. Estes portadores em contato com pessoas receptíveis, provocam a contaminação. É a causa da propagação a grandes distâncias, comprovada também na epidemiologia da cólera, hoje devidamente esclarecida e naquela épo­ca tendo como responsável a “atmosfera infectada” ... defendida pelos grandes mestres daquele tempo. A realidade é que nos referidos reforços paraguaios – se haviam portadores de germes e outros receptíveis – não houve incidência da cólera e até mesmo depois daquela cena horripilante narrada por Taunay, quando os inimigos

Abriram as covas, delas exumando os cadáveres para os despojar dos miseráveis andrajos, que depois, vio­lentamente, entre si disputavam (TAUNAY, 1874).

Este fato vem ainda comprovar que aquela entidade patológica não era a cólera, por continuar imune às Forças paraguaias que nos atacaram, após o contágio pelo uso dos objetos de nossos soldados falecidos. E para deixar ainda mais arraigada a ideia de ter sido a intoxicação alimentar responsável por aquele quadro epidêmico, vamos transcrever, na íntegra, um trecho do Taunay, publicado em suas Memórias [nas páginas 244 e 245] sobre a enfermidade do comandante Carlos de Moraes Camisão e seu imediato, Tenente-Coronel Juvêncio Cabral de Meneses, falecidos a 29.05.1867 e relacionados como vítimas da suposta epidemia de cólera-morbo da Expedição:

Escapei da cólera por modo bem singular e graças à boa inspiração de momento, expediente que me acudiu de súbito à ideia e executei sem mais vacilação. Boa inspiração? Decerto. A vida ainda tinha que me proporcionar bem bons trechos, que deveras compensaram largamente não pequenas contrariedades e até grandes aborrecimentos, con­forme irei contando com mais método, à medida que as datas se forem tornando mais frescas e recentes. Havíamos já abandonado os coléricos. Exatamente na véspera. Indo falar com o Coronel Camisão, encontrei-o em companhia de Juvêncio, sentados num cocho, a comerem tristemente uma carne viciada mas com muita pimenta do reino. O aspecto era mau, entretanto, o cheiro acre não deixava de agradar ao olfato, explicou-me o Coronel:

O meu camarada achou não sei que temperos no fundo de uma bruaca e preparou-nos isto. O Sr. quer provar?

Não me fiz de rogado com a fome que me torturava o estômago e aceitei um pedacinho de carne com arroz, cujo gosto a princípio me soube bem ([5]). Depois, porém, ao retirar-me, senti-me enjoado e logo me acudiu sinistro pensamento: “Estou com a cólera!” E com alguma ansiedade pus-me a caminhar depressa. Foi quando, ao avistar uma flor de capim que pendia de comprida haste, puxei-a e com ela esfreguei violentamente a garganta até provocar grande vômito, que logo me aliviou. Bebi um caneco d’água fresca, que ainda me fez lançar; mas então já experimentava como que a posse da vida nova e segura, a consciência de ter escapado de iminente perigo. Horas depois, Camisão, Juvêncio, o camara­da daquele e o desasado ([6]) cozinheiro, todos quantos haviam comido da tal carne tão picantemente adubada, estavam mortalmente atacados de cholera-morbus! O nosso Chefe Juvêncio Manuel Cabral de Meneses foi salteado pela enfermidade de modo sensivelmente fraco, mas não houve como tratá-lo por falta de medicamentos e cuidados de regime. Bem me recordo da noite em que sentiu a invasão do mal. Dormíamos juntos num couro estendido. De repente, acordou-me, sacudindo-me com violência, e disse:

Taunay estou com a cólera, não há dúvida!

Deixe-se de medos, respondi-lhe, aborrecido por ser interrompido no meu repouso de chumbo. E tornei a pegar no sono enquanto o pobre desgraçado repetia:

Taunay, veja se me arranja algum remediozinho com o Gesteira!

E não foi senão a muito custo que me pode despertar

Deveras o Sr. está doente ou é cisma?

E ele respondeu:

Grandes vômitos ([7]).

Levantei-me e, ao sair da barraca, por noite fria e úmida, ouvi ao lado um tiro de espingarda. Era o camarada do Coronel Camisão que acabara de suicidar-se para não suportar mais as dores que lhe torciam pernas e braços. Ao voltar do Gesteira, com uns papeizinhos de subnitrato de bismuto, achei já o Juvêncio também com cãibras e a vomitar e eva­cuar. (TAUNAY, 1948) (CONTINUA...)

Bibliografia

 

SOUZA, Luiz de Castro. A Medicina na Guerra do Paraguai (I a V) – Brasil – São Paulo, SP – USP, Revista de História, 1968, 1969 e 1970.

 

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

 

Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)

Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);

Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);

Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);

Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)

Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);

Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);

Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);

Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)

Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);

Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)

Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).

Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).

E-mail: hiramrsilva@gmail.com.



[1]    Arquivo Nacional. IG 1 – 242, doc. 413. (SOUZA)

[2]    Espostejado: esquartejado. (Hiram Reis)

[3]    Perfunctoriamente: de relance, ligeiramente. (Hiram Reis)

[4]    Este documento médico militar mereceu ser transcrito na “Gazeta Médica da Bahia”, Ano II, n° 27 [pg. 36], 15.08.1867, possivelmente enviado pelo Dr. Quintana, na época, e é idêntica à cópia que encontramos no Arquivo Nacional, IG 1 – 242, doc. 383. A revista “O Arquivo de Cuiabá”, o publicou, em 1901, como, também, em Anexos à obra “Epopeia da Laguna”, do General Lobo Vianna, 1920. Posterior­mente, o encontramos transcrito na 14ª Edição da “Retirada da Laguna”, Ed. Melhoramentos. Nessas últimas publicações, há omissões quanto aos dados de óbitos. (SOUZA)

[5]    Me soube bem: me caiu bem. (Hiram Reis)

[6]    Desasado: desastrado. (Hiram Reis)

[7]    Geralmente nos casos de intoxicações com gastroenterite, os vômitos precedem às dejeções líquidas, enquanto na cólera é o contrário que se observa. É o exemplo narrado. (SOUZA)

Gazeta Médica da Bahia n° 2, 1868 - Gente de Opinião
Gazeta Médica da Bahia n° 2, 1868
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