Quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023 - 07h10
Bagé, 22.02.2023
O General João Pereira de Oliveira,
pertenceu à Academia de Letras do Rio Grande do Sul e ao Instituto Histórico e
Geográfico do Rio Grande do Sul e de Santa Maria (RS). Em 1942, foi eleito
Presidente da Academia de Letras do Rio Grande do Sul (hoje Academia
Rio-Grandense de Letras). É de sua lavra a biografia do Guia Lopes publicada na
“Revista Militar Brasileira” de julho
a dezembro de 1952, que a seguir reproduzimos.
O Guia Lopes
Entre as figuras que mais se singularizaram
no largo período de inenarráveis provações porque passaram as nossas minguadas
e desaparelhadas Forças, na longínqua Província de Mato Grosso, ao tempo em que
por lá andaram, quais feros ([1])
hunos, talando ([2])
campos e ladroando ([3])
gado, as hordas flagiciosas ([4])
de Solano López, creio que nenhuma faz mais jus a simpatia, ao respeito e a
admiração dos compatriotas do que a do Guia José Francisco Lopes. O velho Guia
Lopes foi exemplo vivo de constância, de lealdade e de desinteresse, que talvez
não encontre símile ([5])
na história dos outros povos.
Nascido na Vila de Pium-í ([6]),
em Minas Gerais, ali passou Lopes a sua trabalhosa infância. Assim, porém, que
se fez moço, deixou a terra de seu berço, rumo a Oeste, em demanda de Mato
Grosso, o feracíssimo trato de território brasileiro, que havia de ser, mais
tarde, teatro de seus grandes e celebrados feitos. Durante muito tempo, não se
fixou Lopes em ponto algum daquela região vastíssima.
Dando largas ao seu pendor ingênito ([7])
pela vida nômade, perlongou ([8])
e vadeou Rios, transpôs montanhas, devassou florestas, pôs nome a lugares até
aí virgens de pé humano. Só depois de casado, ao que parece, é que assentou de
abandonar um pouco a sua vida errática.
Residiu, então, no Paraguai, por espaço de um setênio ([9]),
e, depois, veio habitar a margem do Miranda, em uma estância sua, a que dera o
nome de Jardim.
Nessa propriedade, segundo a história, é que costumava dar agasalho aos
que o acaso ou os negócios fizessem transitar por aqueles recantos do Brasil,
tendo para o secundar, em suas solicitudes de hospedeiro generoso, sua dedicada
esposa, D. Senhorinha, cuja bondade era, também, proverbial naquelas bandas. D.
Senhorinha fora casada, em primeiras núpcias, com um irmão do nosso Guia, de
nome José Gabriel Lopes, falecido em 1849.
Dela, contam que, quando viúva, fora presa e
levada, com os filhos, por uma caterva ([10])
de paraguaios, só sendo liberta em 1850, e, assim mesmo, mercê de reclamação
apresentada pela legação brasileira em Assunção. Era, pois, em Jardim que
residia Lopes, com a família, quando irromperam os paraguaios em território
brasileiro.
Tanto que soube da invasão, tratou Lopes de
se escapar, com os seus. Foi ele, porém, o único que o alcançou. Toda a
família caiu prisioneira do adversário, que a conduziu, como os antigos
bárbaros os troféus do saque, para o povoado paraguaio de Horcheta, distante
sete léguas de Concepción.
Desde aquele dia, nunca mais voltara ao coração do velho lutador das
matas a doce paz dos despreocupados. A toda hora, parecia-lhe que aqueles para
quem eram todos os seus carinhos, clamavam de longe, desesperadamente, cheios
de dor e de saudade, para que ele, o patriarca, lhes fosse distender, por
sobre a cabeça, repleta de pensamentos mestos ([11]),
o pálio ([12])
da liberdade.
Dois anos, porém, já se tinham escoado nessa provação de mágoas infindas,
sem que o bravo sertanejo, cuja alma era um relicário de sentimentos nobres,
pudesse ir arrancar as garras impiedosas dos inimigos de sua Pátria, no lugar
de reclusão, aqueles entes a que tanto amava, senão quando, aos 24.01.1867,
chegaram a Nioaque, sob o comando do Coronel Carlos de Morais Camisão, as
Forças Expedicionárias que deviam expulsar o inimigo, e invadir, pela fronteira
Setentrional, o Paraguai. Não teve dúvidas: ofereceu-se para as acompanhar,
como Guia.
Aos 25 de fevereiro, as nossas Forças se
abalaram de Nioaque, e, em 4 de março, ocuparam a Colônia de Miranda. Ali, na
Colônia, e que se deu, em 11 de abril, o tocante episódio, consagrado pela
história daqueles dias, do encontro do velho Lopes com o filho, que, em
companhia de outros compatrícios nossos, havia fugido do cativeiro, e, na
véspera, se apresentara ao Coronel Camisão. A grata nova dessa apresentação do
filho, recebeu-a Lopes, justamente, quando atravessava os postos avançados, de
volta de um reconhecimento em que tomara parte, com o 17° Batalhão de
Voluntários, não muito longe da Colônia.
A comoção que experimentou foi imensa, foi
indescritível. Quando se aproximou do filho, estava extremamente pálido e dos
seus olhos borbulhavam lágrimas. O filho já o esperava, respeitosamente,
descoberto. Lopes não descavalgou ([13]),
do alto mesmo da montada, estendeu-lhe a mão, tremente, que o filho beijou com
extraordinário afeto. Depois, continuou o seu caminho, sem abrir a boca,
silenciosamente, mais do que nunca esmagado pela lembrança dos restantes
membros da família ausentes, ontem ditosos, e, então, escravos de um adversário
mau, em um País infelicitado pelos desmandos neronianos ([14])
de um megalômano.
No dia 21 de abril, as nossas Forças
transpuseram o “Apa”, em frente a
Bela Vista, e entraram em território inimigo. Lopes, montando bonito cavalo
baio, estava cheio de satisfação. Só se lhe ensombrou a fisionomia, quando viu
que, de Bela Vista, se erguia tênue fumo, sinal seguro de que os paraguaios lhe
haviam posto fogo. Pouco, porém, durou a tristeza do velho sertanejo.
Mal percebeu que, quase na totalidade, os
paraguaios que ocupavam Bela Vista dali se retiravam, desordenadamente, entrou
Lopes a provocá-los com assobios e com apóstrofes de desprezo, que despertaram
o riso em todos os presentes.
No dia 30 de abril, as Forças Expedicionárias
partiram de Bela Vista, e acamparam às margens do Apa-mí, dali a uma légua; e,
em 1° de maio, chegaram a Laguna, fazenda pertencente ao ditador paraguaio e
destinada a criação de gado. Infelizmente, já o inimigo a havia reduzido a
cinzas, ficando, assim, desfeita a miragem de que ali encontrariam os nossos
com que, ao menos, minorar a fome, e com a agravante de estar a Expedição num
terreno ignorado e áspero, além de cercada por um inimigo, do mesmo passo,
solerte e audacioso. A conselho do Guia, avançaram, ainda, as nossas Forças,
mais meia légua, até a invernada da Laguna; mas debalde o fizeram, em virtude
de haver o inimigo levado consigo cavalhada e gado. Vendo frustrados todos os planos,
que imaginara, para esmagar o adversário desleal, e tendo em conta a
impossibilidade em que se via de prover a Expedição de víveres e de munições,
resolveu o Coronel Camisão voltar a fronteira, com o fim de reorganizar as
Forças. Ia, pois, ter início a Retirada. Ao amanhecer do dia 8 de maio, conta o
Visconde de Taunay, em seu famoso livro “A
Retirada da Laguna”:
Estávamos já em Ordem de Marcha, mulas carregadas,
bois de carro nas cangas, e o gado que restava apoiado ao flanco dos
Batalhões, de modo a acompanhar todos as movimentos da coluna. Às 07h00, o
Corpo de Caçadores, que estava na vanguarda, rompeu a marcha, indo atrás dele
as bagagens e as carretas que deram bastante trabalho na passagem de um riacho
que as chuvas dos dias antecedentes tinham avolumado.
Pois nesse momento, precisamente, é que a obra mirífica ([15])
do velho Guia Lopes começou a fazer-se ainda maior, ainda mais extraordinária,
ainda mais divina, se assim me é lícito dizer.
No dia 8, as nossas Forças não puderam percorrer mais de duas léguas e
meia. Não o permitiu o fogo contínuo e cansativo, muito embora pouco mortífero,
do adversário.
Aos primeiros albores ([16])
da manhã de 9, após uma noite cheia de indizíveis inquietações, as Forças Expedicionárias
continuaram a marcha, e, ainda nessa manhã, se estabeleceram em um cerro, o
último, que dominava a Bela Vista e ao “Apa”.
Estavam elas, por conseguinte, a pique de deixar o Paraguai. O pesar, por
isso, era geral. O velho Lopes, sobretudo, trazia bem impressa na fronte
veneranda a dor profunda que lhe ia na alma. Para ele, nada justificava o
abandono do território inimigo.
Ao revés, o que a todos impedia como dever sagrado de patriotismo e de
humanidade, ainda que lhes custasse a vida, era novo avanço por ele a dentro.
Se, com a falta de recursos para a alimentação da tropa, é que se pretendia
justificar a volta ao território nacional, bem frágil era a justificativa,
pois fácil lhe seria, ainda, ir buscá-los em sua estância. Pouco se lhe dava de
sacrificar o que ainda tinha de seu, contanto que se não abandonasse o
território paraguaio.
De nada, porém, valeram, nem podiam valer, as
ponderações do velho guia. Acima de suas ilusões, estava a realidade
ilacrimável ([17]):
era preciso voltar a Mato Grosso. (OLIVEIRA, 1952) (Continua...)
Bibliografia
OLIVEIRA, General João
Pereira de. O Guia Lopes – Brasil –
Rio de Janeiro, RJ – Imprensa Militar – Revista Militar Brasileira, 1952.
(*)
Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas,
Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia
Brasileira (SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
[1] Feros:
ferozes. (Hiram Reis)
[2] Talando: destruindo. (Hiram Reis)
[3] Ladroando: roubando. (Hiram Reis)
[4] Flagiciosas: facinorosas,
bandidas, maldosas. (Hiram Reis)
[5] Símile:
paralelo. (Hiram Reis)
[6] Pium-í: na
transição do século XVII para o XIX as terras da serra da Canastra, em roda da
nascente do São Francisco, tinham realmente como cabeça administrativa a então
Vila de Pium-í, estando fora de dúvida que José Francisco Lopes nasceu em local
sob a administração imediata da Vila de Pium-í, na margem esquerda do Rio.
(VÁRZEA)
[7] Ingênito:
inato. (Hiram Reis)
[8] Perlongou: percorreu.
(Hiram Reis)
[9] Setênio:
período de sete anos. (Hiram Reis)
[10] Caterva: corja. (Hiram Reis)
[11] Mestos: lúgubres, tristes. (Hiram Reis)
[12] Pálio: manto. (Hiram Reis)
[13] Descavalgou:
desmontou. (Hiram Reis)
[14] Neronianos:
relativo a Nero, imperador romano. (Hiram
Reis)
[15] Mirífica:
admirável. (Hiram Reis)
[16] Aos primeiros
albores: Ao alvorecer. (Hiram Reis)
[17] Ilacrimável:
insensível às lágrimas. (Hiram Reis)
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