Sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023 - 07h00
Bagé, 24.02.2023
Assim, no dia 11 de maio, pela manhã, as
nossas Forças transpuseram novamente o “Apa”,
e continuaram a Retirada. Quando foi por volta do meio-dia, os paraguaios
desencadearam o maior e mais violento ataque que a Expedição sofreu. A esse
ataque, resistiram os nossos com galhardia, e saíram vitoriosos; mas, por
infelicidade, perderam o gado.
Que seria da Expedição, sem víveres? Só um
homem poderia encontrar, na sua grande experiência, solução para aquela
situação tristíssima: era o velho Lopes. O nosso Guia, que, no combate, era de
intrepidez sem igual, e até terrível, mostrava-se sempre, na hora calma das
deliberações, mais que qualquer outro, o homem dos bons conselhos. Para ele,
pois, é que apelou o Comandante da Expedição.
Não ficou, aliás, somente nesse, o serviço de
Lopes, no dia 11. Lopes era a alma das Forças Expedicionárias, naquele
doloroso transe. Quando o Coronel Camisão se determinou a mudar de itinerário,
em razão do conhecimento que tinha o inimigo do que era seguido pelas Forças
Expedicionárias, pois era o mesmo pelo qual avançaram sobre o Paraguai, ainda
na sagacidade e na boa vontade do velho Guia e que ele foi achar solução
razoável para a conjuntura. Às 13h00, continuavam as nossas Forças a Retirada,
senão quando, sem que ninguém o esperasse, os paraguaios abriram, contra elas,
de colina próxima, fuzilaria intensa.
Mas Lopes, que se achava sempre na vanguarda, mais uma vez salvou a
situação, sem que lhe fosse dada ordem, e valendo-se do conhecimento que tinha
do terreno, abandonou, inesperadamente, a estrada seguida, infletiu para a
esquerda, e, contramarchando, subitamente, por esse lado, levou as nossas
Forças ao pé de um morro, onde, se preciso, se poderia localizar uma bateria.
Estabeleceu-se, por essa forma, certa
desorientação entre os paraguaios, da qual se aproveitaram as nossas Forças,
para a prossecução ([1])
da marcha, por dentro do macegal. De repente, percebeu Lopes que os paraguaios
haviam posto fogo a Este. Que fez, então, para lográ-los? Caminhou direito para
Miranda, e, depois, descambou para a sua estância.
Ao romper da manhã do dia 12 de maio, as
nossas Forças levantaram acampamento, e, ainda, nesse dia, graças ao velho
Lopes é que os paraguaios não lhes puderam ganhar a dianteira, para lhes
perturbar a marcha. Ao entardecer ‒ um triste entardecer de retirada ‒ mal se
instalaram as Forças Expedicionárias sobre um pequeno cerro, começaram fortes
lufadas de vento Sul a trazer-lhes o calor do fogo que lhes vinha ao encalço,
pelo campo.
O velho Lopes não perdeu tempo: ordenou que o
pessoal, de que podia dispor, cortasse, a toda a pressa, a macega que
circundava o local do estacionamento, e que, uma vez cortada, fosse
imediatamente conduzida para longe, coberta de terra e, depois, calcada. E não
ordenou apenas: deu ordens e executou, também. A sua atuação foi, sobretudo, de
valor inapreciável, quando o incêndio se aproximou, em crepitações diabólicas.
Por toda a parte, estava ele, então, grande, sublime, incomparável,
estimulando os outros, e lutando como leão indômito por apagar aquele mar de
chamas, com que o inimigo, desumano e astuto, procurava aniquilar, de vez,
aqueles homens sofridos e destemerosos, que uma agressão insólita a honra de
nossa Pátria havia levado àquelas regiões impérvias ([2]).
Ai de nossas Forças se não fora ele, naquela hora amarga, em que a fumarada e
as labaredas daquele incêndio imenso ameaçavam queimá-las e asfixiá-las! Ai
delas se não fora aquele sertanejo resignado e impávido, naquele instante de
angústias e de sofrimentos, em que as enormes línguas de fogo, lançadas aos
ares por aquele pavoroso incêndio, faziam lembrar o inferno em que Dante
Alighieri mergulhava os réprobos ([3])!
Naquele dia, o velho Lopes foi bem maior que muitos dos heróis que
Homero, em seus poemas épicos, celebrou em estrofes harmoniosas e imperecíveis.
Ao alvorecer do dia 14 de maio, após uma noite de desassossego, passada em
claro, debaixo de aguaceiros desapoderados ([4]),
as Forças Expedicionárias, sempre guiadas pelo velho e abnegado Lopes,
reencetaram a marcha por densa mata a dentro, isso para evitar a passagem por
um desfiladeiro que já se achava ocupado pelos paraguaios. No dia seguinte,
viram-se, novamente, as nossas Forças cercadas de enormes chamas
terrificadoras. Mas o estoico Lopes não perdeu a calma: mandou que se
encostasse, imediatamente, a coluna, a dois capões, que por ali havia, a fim de
a resguardar das labaredas laterais, e, a seguir, fez que se cortasse a macega,
numa extensão ainda maior que da primeira vez.
Assim que passou o perigo, a coluna continuou
a marcha. A frente dela, estava Lopes. Via-se, porém, que estava dominado de
grande tristeza e de indisfarçável inquietação. Tinha perdido o rumo. Felizmente,
no dia 16, retornara ao caminho certo, não obstante achar-se, ainda, algo um
tanto desorientado. Quem já não podia recalcar a sua grande contrariedade com
os atrasos provenientes da incerteza do caminho, era o Comandante das Forças
Expedicionárias. Tanto assim que, no dia 17, exprobrou ([5])
duramente o nosso velho Guia.
E se maior, ainda, não foi a sua desesperação, é porque, com ser homem
dotado de coração bondoso, logo se deixou acalmar pelo silêncio respeitoso com
que lhe ouviu Lopes as exprobações ([6]).
No dia 19, dissipou-se, afinal, para Lopes, qualquer dúvida que ainda lhe
pudesse restar sobre o caminho, graças a uma elevação que se avistava ao longe.
Mal deu com os olhos nela, o velho Guia não hesitou em afiançar que, com dois
dias mais de marcha, estariam as nossas Forças em sua estância. Como era de
esperar, a todos reanimou e letificou ([7])
a informação de Lopes, pois ela significava a aproximação do termo de tantos
sofrimentos físicos e de tantas provações morais. Não durou muito, porém, essa
satisfação, porque, de repente, circulou a triste nova de que a cólera-morbo
havia feito o seu aparecimento entre as Forças Expedicionárias.
No dia 20, os paraguaios tornaram a pôr fogo ao macegal; mas Lopes,
sempre diligente, meteu as nossas Forças em um mato de pindaíbas, provido de
água, e, assim, salvou-as de se queimarem, embora as não salvasse dos vapores
ardentes e da fumarada.
Nesse dia, mais violenta, ainda, foi a ação
da cólera. De nove, foi o número de vítimas que nele tiveram as Forças
Expedicionárias. E, para mais entenebrecer ([8])
o doloroso quadro dos que deixavam a vida, a noite longa noite de trevas e de
sobressaltos os coléricos, tornados de agitação terrível, contorciam-se com
câimbras, vociferavam, gemiam, rolavam uns sobre os outros, sem que nada,
entretanto, pudessem fazer os médicos para lhes mitigar os padecimentos, pois
já não tinham recursos de qualquer espécie.
Apesar de tudo, continuou-se a marcha em 21.
Era um desfile fúnebre. Das carretas, pendiam pernas, braços e até cabeças de
pobres vítimas do terrível mal. Para maior desgraça, ainda, daquela procissão
impressionante de heróis e mártires, assim que, com o calor do Sol, a macega
perdeu o orvalho que colhera a noite, os paraguaios lhe puseram fogo.
Ao atingirem as Forças Expedicionárias a uma
chapada extensa, avistaram, a distância, o morro da Margarida. Foi uma
satisfação geral. Lopes, muito especialmente, rejuvenesceu de júbilo. Era, para
ele, a certeza de que continuavam no bom caminho, e de que se aproximava cada
vez mais, com o fim daquela caminhada tétrica, o termo da sua patriótica
missão.
Esta, porém, não podia acabar sem novo
incêndio, ateado pelos paraguaios. E foi o que aconteceu. Ali estava ele. Por
felicidade, ali, também, estava, atento, Lopes. Quando este o viu levantar-se
crepitante e ardente, varou correndo, para lhe dar combate, por entre
cavaleiros inimigos, que se achavam esparsos por aqueles campos, e, mais esta
vez, da luta contra o fogo, a vitória foi integralmente sua.
Essa passagem
do velho Guia através de adversários reconhecidamente sagazes e audaciosos, foi
de grande temeridade. Mas Lopes estava por tudo.
Quando lhe
advertiam de que se devia poupar, respondia que de nada valia isso, pois
ninguém podia contrariar os desígnios da Providência. Dizia ele que as Forças
Expedicionárias se estavam aproximando do fim de suas terríveis provações, e
acrescentava:
‒ Saibamos
morrer; os sobreviventes dirão o que fizemos.
Do dia 22 até ao dia 24 de maio, a marcha
continuou com o mesmo aspecto de verdadeira procissão da morte. (OLIVEIRA,
1957) (Continua...)
Bibliografia
OLIVEIRA, General João
Pereira de. O Guia Lopes – Brasil –
Rio de Janeiro, RJ – Imprensa Militar – Revista Militar Brasileira, 1952.
(*)
Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas,
Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia
Brasileira (SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
[1] Prossecução:
prosseguimento. (Hiram Reis)
[2] Impérvias:
intransitáveis. (Hiram Reis)
[3] Réprobos:
condenados. (Hiram Reis)
[4] Desapoderados:
furiosos. (Hiram Reis)
[5] Exprobrou:
repreendeu. (Hiram Reis)
[6] As exprobações: a bronca. (Hiram
Reis)
[7] Letificou:
alegrou. (Hiram Reis)
[8] Entenebrecer:
enlutar. (Hiram Reis)
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