Segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023 - 07h05
Bagé, 27.02.2023
No dia 24, como já estivesse aberta, até a
margem do Prata, a picada de que se incumbira o bravo rio-grandense Capitão
Pisaflores, por ela atravessou Lopes, e foi ter à sua propriedade, aquela
estância amada, da qual sempre falava demoradamente, com um misto de saudade e
de entusiasmo.
No dia seguinte, as nossas Forças
atravessaram o Prata. O pior é que o número de coléricos se multiplicava
assustadoramente. Já se não achava como os conduzir. Por isso mesmo, forçoso
foi abandonar os cento e trinta que, então, havia. Que fez o Comandante das
Forças Expedicionárias?
Mandou abrir na mata uma clareira extensa, ordenou que para ela se
transportassem, na noite de 25 para 26, aqueles cento e trinta mártires, e lá
os deixou, com a alma amargurada, sob a proteção platônica deste cartaz,
escrito em letras grandes, e que ficou pregado no tronco de uma daquelas
árvores, testemunhas silenciosas de tantos gemidos, de tantas lágrimas e de
tantas imprecações:
‒ Compaixão
para os coléricos!
No momento, exatamente, em que, com o raiar
do dia, acabavam de abandonar na mata aquelas pobres vítimas de um destino
injusto, apareceu Lopes, que, desde a véspera, tinha regressado de sua
propriedade.
Trazia a desoladora nova da morte de seu
filho, pela cólera. Tremia-lhe a voz, mas estava aparentemente calma.
‒ Meu filho morreu,
Disse ele ao Coronel, segundo o testemunho do
Visconde de Taunay,
‒ Desejo sepultá-lo em terra minha. É um pequeno
favor que, por ele, e por mim, solicito; a sua vida, como a minha, pertencia a
Expedição. Deus, que tudo determina, salvou-o muitas vezes das mãos dos homens,
para levá-lo hoje.
Conduziram-no, então, em um reparo de peça, e
ao atingirem a margem direita de volumoso Ribeirão, que corria pelas terras do
velho Lopes, ai o sepultaram. Enquanto se abria a sepultura, Lopes conservou-se
a distância, silenciosamente, sob o peso de sua grande dor. Só quando lhe
comunicaram que o solo estava úmido, e até encharcado, é que ele descerrou os
lábios, para dizer, com a resignação de um Santo:
‒ Agora, que importa? Entreguem a terra o que lhe
pertence.
Depois, continuou, com a coluna, pela sua
estância a dentro. O novo ponto de estacionamento de nossas Forças já estava
determinado: era o meio da mangueira do nosso guia. Estava por se findar a
missão do velho Lopes. Combalido, arcado para a frente, com a cabeça sobre o
arção ([1])
da sela, seguia ele, sem proferir palavra. Súbito, saltaram-lhe os estribos, e
ele caiu, pesadamente, ao solo. Acabava de o assaltar, impiedosamente, a
cólera.
Colocaram-no sobre um reparo, e, como ele,
uma vez ai, se reanimasse um pouco, continuou a dirigir a marcha. Assim é que,
mal percebeu a tentativa de seu genro Gabriel para atravessar um capão, com o
fim de atalhar caminho, recomendou, embora com voz sumida:
‒ Contornem o mato, que é muito sujo.
Ao cair da noite, alcançaram as nossas Forças
o local do antigo rodeio de gado da estância do velho Lopes, e nele
estacionaram, ficando o nosso Guia, com o Coronel Camisão e o Tenente-coronel
Juvêncio, estes, também, coléricos, instalado num galpão em ruína.
Na manhã de 27, iam as nossas Forças
continuando a marcha, quando os paraguaios tentaram, mais uma vez, cortar-lhes
a retirada.
Foram, porém, contidos pelo 17° de
Voluntários, que fazia a retaguarda. Após meia légua de marcha, chegaram as
nossas Forças, finalmente, a uma das margens do Miranda. Na margem oposta,
estava a casa do velho Lopes, aquela mesma casa sob cujo teto nunca faltou
pousada, e pousada régia, para os que algum dia lhe bateram à porta.
Desgraçadamente, em ali chegando, entregou
Lopes a sua alma generosa a Deus. Sepultaram-no, então, no meio do acampamento,
em terra que ele havia regado com o suor de seu trabalho honesto, e, sobre a
sepultura, colocaram os seus bravos e leais amigos, piedosamente, uma cruz, que
fizeram de madeira tosca. Era a única homenagem que lhe podiam prestar naquele
momento. Outras, não lhe podiam ser prestadas senão depois.
E, realmente, o foram. Hoje, ele tem o nome sobalçado ([2]) pela nossa história, e a figura perpetuada no bronze do monumento que se levanta, solene, na capital da República, sob as bênçãos desta doce Pátria, a que tanto serviu, e pela qual morreu, entre os soluços dos que foram testemunhas de sua “Constância e de seu Valor”. (OLIVEIRA, 1952)
Bibliografia
OLIVEIRA, General João
Pereira de. O Guia Lopes – Brasil –
Rio de Janeiro, RJ – Imprensa Militar – Revista Militar Brasileira, 1952.
(*)
Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas,
Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira
(SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
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