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Hiram Reis e Silva

Terceira Margem – Parte DLIII -Jornada Pantaneira O Guia Lopes – Parte III


Túmulo do Guia Lopes (OLIVEIRA, 1952) - Gente de Opinião
Túmulo do Guia Lopes (OLIVEIRA, 1952)

Bagé, 27.02.2023

 

No dia 24, como já estivesse aberta, até a margem do Prata, a picada de que se incumbira o bravo rio-grandense Capitão Pisaflores, por ela atravessou Lopes, e foi ter à sua propriedade, aquela estância amada, da qual sempre falava demoradamente, com um misto de saudade e de entusiasmo.

No dia seguinte, as nossas Forças atravessaram o Prata. O pior é que o número de coléricos se multiplicava assustadoramente. Já se não achava como os conduzir. Por isso mesmo, forçoso foi abandonar os cento e trinta que, então, havia. Que fez o Comandante das Forças Expedicionárias?

Mandou abrir na mata uma clareira extensa, ordenou que para ela se transportassem, na noite de 25 para 26, aqueles cento e trinta mártires, e lá os deixou, com a alma amargurada, sob a proteção platônica deste cartaz, escrito em letras grandes, e que ficou pregado no tronco de uma daquelas árvores, testemunhas silenciosas de tantos gemidos, de tantas lágrimas e de tantas imprecações:

Compaixão para os coléricos!

No momento, exatamente, em que, com o raiar do dia, acabavam de abandonar na mata aquelas pobres vítimas de um destino injusto, apareceu Lopes, que, desde a véspera, tinha regressado de sua propriedade.

Trazia a desoladora nova da morte de seu filho, pela cólera. Tremia-lhe a voz, mas estava aparentemente calma.

Meu filho morreu,

Disse ele ao Coronel, segundo o testemunho do Visconde de Taunay,

Desejo sepultá-lo em terra minha. É um pequeno favor que, por ele, e por mim, solicito; a sua vida, como a minha, pertencia a Expedição. Deus, que tudo determina, salvou-o muitas vezes das mãos dos homens, para levá-lo hoje.

Conduziram-no, então, em um reparo de peça, e ao atingirem a margem direita de volumoso Ribeirão, que corria pelas terras do velho Lopes, ai o sepultaram. Enquanto se abria a sepultura, Lopes conservou-se a distância, silenciosamente, sob o peso de sua grande dor. Só quando lhe comunicaram que o solo estava úmido, e até encharcado, é que ele descerrou os lábios, para dizer, com a resignação de um Santo:

Agora, que importa? Entreguem a terra o que lhe pertence.

Depois, continuou, com a coluna, pela sua estância a dentro. O novo ponto de estacionamento de nossas Forças já estava determinado: era o meio da mangueira do nosso guia. Estava por se findar a missão do velho Lopes. Combalido, arcado para a frente, com a cabeça sobre o arção ([1]) da sela, seguia ele, sem proferir palavra. Súbito, saltaram-lhe os estribos, e ele caiu, pesadamente, ao solo. Acabava de o assaltar, impiedosamente, a cólera.

Colocaram-no sobre um reparo, e, como ele, uma vez ai, se reanimasse um pouco, continuou a dirigir a marcha. Assim é que, mal percebeu a tentativa de seu genro Gabriel para atravessar um capão, com o fim de atalhar caminho, recomendou, embora com voz sumida:

Contornem o mato, que é muito sujo.

Ao cair da noite, alcançaram as nossas Forças o local do antigo rodeio de gado da estância do velho Lopes, e nele estacionaram, ficando o nosso Guia, com o Coronel Camisão e o Tenente-coronel Juvêncio, estes, também, coléricos, instalado num galpão em ruína.

Na manhã de 27, iam as nossas Forças continuando a marcha, quando os paraguaios tentaram, mais uma vez, cortar-lhes a retirada.

Foram, porém, contidos pelo 17° de Voluntários, que fazia a retaguarda. Após meia légua de marcha, chegaram as nossas Forças, finalmente, a uma das margens do Miranda. Na margem oposta, estava a casa do velho Lopes, aquela mesma casa sob cujo teto nunca faltou pousada, e pousada régia, para os que algum dia lhe bateram à porta.

Desgraçadamente, em ali chegando, entregou Lopes a sua alma generosa a Deus. Sepultaram-no, então, no meio do acampamento, em terra que ele havia regado com o suor de seu trabalho honesto, e, sobre a sepultura, colocaram os seus bravos e leais amigos, piedosamente, uma cruz, que fizeram de madeira tosca. Era a única homenagem que lhe podiam prestar naquele momento. Outras, não lhe podiam ser prestadas senão depois.

E, realmente, o foram. Hoje, ele tem o nome sobalçado ([2]) pela nossa história, e a figura perpetuada no bronze do monumento que se levanta, solene, na capital da República, sob as bênçãos desta doce Pátria, a que tanto serviu, e pela qual morreu, entre os soluços dos que foram testemunhas de sua “Constância e de seu Valor”. (OLIVEIRA, 1952) 

 

Bibliografia

 

OLIVEIRA, General João Pereira de. O Guia Lopes – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Imprensa Militar – Revista Militar Brasileira, 1952.


 

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

 

Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)

Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);

Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);

Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);

Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)

Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);

Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);

Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);

Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)

Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);

Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)

Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).

Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).

E-mail: hiramrsilva@gmail.com.



[1]    Arção: parte dianteira da sela. (Hiram Reis)

[2]    Sobalçado: exaltado. (Hiram Reis)

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