Quarta-feira, 22 de março de 2023 - 06h10
Bagé, 22.03.2023
À Sua Majestade o Senhor Dom
Pedro II, Imperador do Brasil
Senhor,
Ao se render Uruguaiana,
inaugurou Vossa Majestade, na América do Sul, a guerra humanitária, a que aos
prisioneiros poupa e salva, trata feridos inimigos com os desvelos dispensados
aos compatriotas, a que, considerando a efusão de sangue humano deplorável
contingência, aos povos apenas impõe os sacrifícios indispensáveis ao sólido
estabelecimento da paz. E, principalmente sob este ponto de vista, que ouso
achar-me autorizado a colocar sob o augusto patrocínio imperial a singela
narrativa da Retirada da Laguna, obra de constância e da disciplina, em que os
oficiais de Vossa Majestade, devendo defender, por entre obstáculos os mais
diversos, as bandeiras e os canhões a eles confiados, jamais cessaram, quanto
lhes foi possível, de conter o legítimo desforço de bizarros soldados,
exasperados pelo furores do inimigo, e obstar à crueldade tradicional de
auxiliares índios, vingativos como soem ser. É este reflexo de um grande ato de
iniciativa soberana, a mais bela recordação que jamais poderemos entre
camaradas invocar; cabe-nos a honra de a Vossa Majestade dedicá-la.
De Vossa Majestade Imperial
Súdito e servidor, muito humilde
e obediente,
Alfredo d’Escragnolle Taunay
Prólogo
É o assunto deste volume a série
de provações por que passou a Expedição brasileira, em operações ao Sul de Mato
Grosso, no recuo efetuado desde a Laguna, a três e meia léguas do Rio Apa,
fronteira do Paraguai, até o Rio Aquidauana, em território brasileiro, trinta e
nove léguas, ao todo, percorridas em trinta e cinco dias de dolorosa
recordação.
Devo esta narrativa a todos os
meus irmãos de sofrimento, aos mortos ainda mais do que aos vivos. Em todas as
épocas largo interesse se ligou às Retiradas, não só por constituírem operações
de guerra difíceis e perigosas, como nenhuma outra, mas ainda porque os que as
executam, já sem entusiasmo nem esperanças, frequentemente entregues ao
desânimo, ao arrependimento de erros ou das consequências de erros, precisam arrancar
ao espírito, assim preocupado, os meios de enfrentar a fortuna adversa, que a
cada passo os ameaça, com todos os seus rigores.
Em tais contingências requer-se o
verdadeiro cabo de guerra: ali há de se lhe revelar o característico essencial:
a inabalável constância. Vive a Retirada dos Dez Mil em todas as memórias.
Colocou Xenofante na plana dos primeiros capitães.
Nos tempos modernos vários ocorreram não
menos notáveis: a de Altenheim, pelo Marechal de Lorge, após a morte de
Turenne, seu tio, e que ao grande Condé fez declarar que lha invejava; a de
Praga, enaltecedora da nomeada do Conde de Belle Isle: a de Plaffenhofen, por
Moreau, tida como um dos mais belos jeitos d’armas, efetuados por Turenne; já
em nossos dias: a de Talavera, que levou Lorde Wellington, triunfante, a
Lisboa; a que honrou o funesto regresso de Moscou e em que o Príncipe Eugênio e
o Marechal Ney rivalizaram, em heroísmo; a de Constantina pelo Marechal Clausel
e outras menos célebres; mas que, no entanto, pela variedade dos perigos e das
misérias, chamam a atenção da história.
Resta-nos solicitar a maior indulgência para
esta narrativa cujo único mérito pretende ser o dos fatos expostos.
Tiramo-los de um diário escrito em campanha.
Assim nela hão de abundar as incorreções, demasias
e repetições; cremos dever deixá-las; são indícios da presença da verdade.
Alfredo D’Escragnolle Taunay.
Rio de Janeiro, outubro de 1868.
I
Formação de um Corpo de Exército Destinado a Atuar, Pelo Norte, Sobre o
Alto Paraguai. Distâncias e Dificuldades de Organização.
Para dar uma ideia, um tanto
exata, dos lugares onde, em 1867, ocorreram os acontecimentos cuja narrativa se
vai ler, convém lembrar que, ao finalizar de 1864, havendo o Paraguai atacado e
invadido, simultaneamente, o Império do Brasil e a República Argentina,
achavam-se, decorridos dois anos, após tal investida, reduzido a defender o
próprio território, invadido do lado do Sul, pelas forças conjuntas das duas
potências aliadas, a quem coadjuvava pequeno contingente de tropas da República
do Uruguai.
Ao Sul oferecia o caudaloso
Paraguai mais vantagens à expugnação da Fortaleza de Humaitá, que, pela posição
especial, se convertera na chave estratégica do país, assumindo, nesta porfia
encarniçada, a importância de Sebastopol, na Campanha da Crimeia. Ao Norte, do
lado de Mato Grosso, eram as operações infinitamente mais difíceis, não só
porque ocorriam a milhares de quilômetros do litoral atlântico, onde se
concentram todos os recursos do Brasil, como ainda por causa das inundações do
Rio Paraguai, que cortando na parte superior do curso terras baixas e planas,
transborda anualmente, a submergir então regiões extensíssimas.
Consistia o plano de ataque mais natural em
subir as águas do Paraguai, do lado da Argentina, até o coração da república
inimiga e, do Brasil, descê-las a partir de Cuiabá, a capital mato-grossense
que os paraguaios não haviam ocupado.
Teria impedido à guerra arrastar-se durante
cinco anos consecutivos esta conjugação de esforços simultâneos. Mas era-lhe a
realização extraordinariamente difícil, devido às enormes distâncias a
transpor. Basta lançar os olhos sobre um mapa da América do Sul e examinar o
interior do Brasil, em grande parte desabitado, para que qualquer observador de
tal se convença logo.
No momento em que se enceta esta narrativa,
estava, pois, a atenção geral das potências aliadas quase exclusivamente
voltada para o Sul, para as operações de guerra, travadas em torno de Curupaiti
e Humaitá.
Quanto ao plano primitivo fora ele mais ou
menos abandonado; quando muito ia servir de pretexto a que se infligissem as
mais terríveis provações a uma pequena coluna expedicionária, quase perdida nos
imensos e desertos sertões brasileiros.
Em 1865, ao arrebentar a guerra que Francisco
Solano Lopes, o Presidente do Paraguai, na América do Sul suscitara sem maior
motivo do que os ditames da ambição pessoal; quando muito a invocar o vão
pretexto da manutenção do equilíbrio internacional – o Brasil, obrigado a
defender honra e direitos, dispôs-se, denodadamente, para a luta. A fim de
reagir contra o inimigo, em todos os pontos onde podia enfrentá-lo, o plano da
invasão do Paraguai Setentrional acudiu naturalmente a todos os espíritos;
preparou-se uma Expedição para este fim. Não foi infelizmente este projeto de
diversão ([1])
realizado nas proporções que sua importância exigia; e, mais infelizmente
ainda, os contingentes acessórios sobre os quais contávamos, para avolumar o
Corpo de Exército Expedicionário, durante a longa jornada através de São Paulo
e Minas Gerais, falharam em grande parte ou desapareceram devido a cruel
epidemia de varíola e as deserções que esta provocou.
Marchou-se lentamente: provinha a
demora de muitas causas, sobretudo da dificuldade do abastecimento de víveres.
Foi somente em julho [partira do Rio de Janeiro em abril] que a coluna pôde
organizar-se em Uberaba, chegando-lhe os quadros a atingir cerca de três mil
homens. Reforçavam-na vários Batalhões que, de Ouro Preto, trouxera o Coronel
José Antônio da Fonseca Galvão. Não sendo esta força ainda suficiente para uma
ofensiva, seu Comandante, Manuel Pedro Drago, encaminhou-a para a capital de
Mato Grosso, a fim de avolumá-la. Assim se adiantou em direção ao Noroeste, até
as margens do Paranaíba, quando ali recebeu peremptórias ordens do governo, levando-lhe
instruções formais de marchar para o Distrito de Miranda, então ocupado pelo
inimigo.
Tal injunção, no ponto a que
chegávamos, impunha como forçado corolário obrigar-nos a descer em direção ao
Rio Coxim e a contornar em seguida a Serra de Maracaju, por sua base Ocidental,
anualmente invadida pelas águas do Paraguai. Assim, pois, estava a Expedição
condenada a atravessar extensíssima região infestada pelas febres palustres.
A 20 de dezembro, atingiu o Coxim, ainda sob
o comando do Coronel Galvão, recentemente investido da chefia e, pouco depois,
graduado em Brigadeiro. Embora sem valor algum estratégico, tinha pelo menos o
acampamento do Coxim uma altitude que lhe garantia a salubridade.
Não tardou, porém, que a enchente havendo-o
ilhado e isolado, ali passasse a força pelas mais cruéis privações, sofrendo
até fome.
Após longas hesitações, forçoso se tornou
romper ao acaso, através do pestilento pantanal, onde a coluna foi, desde o
princípio, provada pelas febres.
Uma das primeiras vítimas veio a ser o
próprio e infeliz Chefe, falecido à margem do Rio Negro.
Afinal, arrastando-se penosamente, conseguiu
atingir a povoação de Miranda a 396 quilômetros para o Sul.
Aí uma epidemia climática de novo gênero, a
paralisia reflexa, ou beribéri, afligiu-a, dizimando-a ainda mais.
Dois anos quase haviam decorrido, desde a
nossa partida do Rio de Janeiro. Lentamente descrevêramos imenso circuito de
dois mil cento e doze quilômetros.
E já um terço de nossa gente
perecera. (TAUNAY, 1874) (Continua...)
Bibliografia
TAUNAY, Alfredo de Escragnolle. A Retirada da Laguna:
Episódio da Guerra do Paraguai – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Tipografia
Americana, 1874.
(*)
Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas,
Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia
Brasileira (SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
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