Sexta-feira, 24 de março de 2023 - 06h20
Bagé, 24.03.2023
II
Miranda. Partida
da Coluna.
Marcha de Miranda a Nioaque.
Foi a 01.01.1867 que o Coronel Carlos de
Morais Camisão ([1]),
nomeado pela presidência de Mato Grosso, assumiu o comando dos desventurados
soldados que, só mesmo profundo sentimento de disciplina, pudera até então
manter em forma. É Miranda quase inabitável, rodeada como se acha, e numa
extensão considerável, de depressões que a menor chuva, num instante, inunda,
até mesmo na melhor estação, e que os raios solares, com a mesma rapidez,
enxugam. Privada de boa água, pois a do Miranda é sempre agitada e lodosa, a
disposição do terreno não oferecia ali, aliás, nenhuma das condições militares
às quais, em rigor, poderiam ter sido sacrificadas as considerações higiênicas.
E, com efeito, ao longo de um caudal, acessível a grandes embarcações,
estendem-se margens uniformemente baixas a que tiram toda a segurança estradas
abertas.
Frequente e energicamente
pronunciara-se a Comissão de engenheiros contra maior demora neste foco de
infecção; e já, por duas vezes, em relatório, o assinalara o Chefe da junta
médica como a causa de ruína da Expedição, pois de contínuo diminuía o seu
pessoal, quer pela morte, quer pela dispensa forçada dos doentes. Continuava o
beribéri a fazer em nossas fileiras numerosas vítimas naquele lugar ainda
sujeito à influência dos grandes pantanais que a tropa acabara de atravessar,
entre o Coxim e Miranda.
Estava Miranda em ruínas quando
nossas forças ali entraram. Ao partirem haviam-na os paraguaios incendiado.
Ardera parte das construções, mas eram evidentes os sinais de decadência,
anterior ao incêndio que sucedera à primeira fase de desenvolvimento e
prosperidade. Ainda se mantinham de pé prédios cômodos e sobre o local de velha
fortificação, outrora bem construído quartel, então muito deteriorado pelo
fogo, fechava uma praça de onde saíam duas ruas que iam acabar em frente à
Igreja Paroquial, ambas ladeadas de casas erguidas a pequena distância umas das
outras.
Da Matriz apenas subsistiam as
paredes laterais, e arcabouço da torre, o galo de folha-de-flandres e uma cruz
esculpida no alto do frontão. Fora edificada graças aos esforços de virtuoso
missionário italiano, Frei Mariano de Bagnaia ([2]),
que não somente nela empregara o produto das esmolas, por ele próprio
recolhidas em toda a vizinhança, com incomparável trabalho e ardor, como ainda
ali aplicara a modesta côngrua ([3]).
Os tristes destroços desta igreja, saqueada pelos paraguaios, que até os sinos
lhe tomaram, havia algum tempo antes presenciado uma cena que nos parece
merecer menção.
A 22.02.1865, deixando Frei
Mariano as margens do Salobro, onde se refugiara, ao aproximar-se a invasão,
viera, de moto próprio, entregar-se aos paraguaios, no intuito de lhes pedir
compaixão para com a desventurada paróquia. Ao chegar à Vila, fora-lhe o
primeiro cuidado correr à matriz, objeto da sua mais viva solicitude. Desolador
espetáculo o esperava: altares derribados, as imagens santas despojadas dos
adornos, enfim todas as mostras da profanação. Ao presenciá-lo, dele se
apoderou tal sentimento de indignação e desespero, que não pôde dominar-se.
Imediatamente, e em tom retumbante, à frente do Chefe paraguaio e seus
comandados, pronunciou solene maldição contra os autores de tais atentados.
Ouviram-no todos cabisbaixos,
como se esta voz severa fora a de algum daqueles Padres que outrora lhes haviam
catequizado os antepassados, esforçando-se o Comandante em convencer o
missionário que os únicos culpados eram os Mbaias [índios]. Lavado em lágrimas,
corria o santo homem de altar em altar, como para verificar os ultrajes
praticados contra cada um dos objetos de sua veneração. Só após minuciosa
constatação de todas as indignidades cometidas se resignou a celebrar o santo
sacrifício da missa; e isto depois de tudo haver disposto para que a cerimônia
se pudesse realizar.De cento e treze dias, foi a permanência da coluna em
Miranda – de 17.09.1866 a 11.01.1867.
A 28.12.1866 retirou-se um dos
Comandantes enviados da capital de Mato Grosso, ele próprio atacado pela
epidemia. A 31.12.1866 apresentava-se em Miranda o Coronel Carlos de Morais
Camisão; e no dia imediato, 01.01.1867, assumia o comando, como já o dissemos. Enviou
imediatamente a Nioaque os membros da Comissão de engenheiros, Catão Roxo e
Escragnolle Taunay, a fim de examinarem as estradas e o local e preparar ali
acampamentos, tomando ao mesmo tempo algumas disposições relativas à recepção
de enfermos e ao armazenamento das munições de guerra e de boca.
A 10.01.1867 tornou pública a
ordem de marcha. Nova organização dera ao Corpo de Exército. Anteriormente
dividia-se em duas Brigadas, cada qual composta de três Corpos. Mas tanto uma
como outra estavam tão reduzidas, que as manobras, baseadas sobre um número
certo de homens, se haviam tornado quase impraticáveis. Pela fusão de todas em
uma Brigada de mil e seiscentas praças, ficou o Estado-Maior aligeirado, e não
sem vantagens para o erário público, de pessoal supérfluo. Tal medida, desde
muito reputada útil, teve geral aprovação.
Moveu-se a força a 11.01.1867; e, pela
primeira vez, as peças de artilharia montada, puxadas por bois, acompanharam a
marcha da infantaria. Saíram os diferentes Corpos da Vila de Miranda
completamente fardados, armados e providos de munições, libertos,
pressentiam-no, das provações a que se submeteram, desvanecidos daquele
sentimento de disciplina que tudo os fizera suportar, embora exercitando-se,
cada vez mais, no manejo das armas. O que estes homens pediam era um clima
salubre que os revigorasse e os pusesse em condições de agir. E este ([4])
iam encontrá-lo em Nioaque, a 210 quilômetros a Sudeste de Miranda.
Era a estrada larga e corria ao longo de
magníficos bosques, onde predominavam os umbus balsâmicos, espalhando ao longe
o perfume das flores abertas, os piquis, carregados de frutos, e as
inesgotáveis mangabeiras. São mui belos os acidentes do terreno; os ribeirões e
riachos, a correrem volumosos por toda a parte, ofereciam excelente água. Já
não mais pousávamos os olhos sobre as tristonhas perspectivas dos pântanos.
Pelo contrário, nos comprazíamos agora em contemplar verdejantes campinas,
trechos que apresentavam os mais poéticos aspectos, à sombra de poderosos
contrastes luminosos. Até Lauiad ([5])
ruma a estrada, diretamente, para leste. A partir deste ponto toma a direção
sul-sudeste.
O panorama que então subitamente se desdobra
é realmente grandioso. Aos pés do espectador, vasta campina a que embelezam magníficos
acidentes; além, as grandes orlas da mata que acompanham as sinuosidades das
belas águas do Aquidauana; ao longe a extensa Serra de Maracaju, com os
píncaros escavados, refletindo os esplendores do Sol, e coroando toda esta
massa prodigiosa, azulada pela distância. Foi este ponto, com razão, chamado
pelos Guaicurus de Campo Belo. Parece apanágio dos povos civilizados o
sentimento admirativo; pelo menos bem raro é nos homens primitivos a sua
manifestação exterior. No entanto, as grandes linhas de um quadro majestoso da
natureza conseguem, às vezes, vencer a feição material do selvagem, unindo ao
autor da obra o rude espectador maravilhado.
O primeiro Guaicuru que sobre esta região
encantada deitou os olhos, não pôde conter a exclamação de surpresa; com a voz
gutural e cavernosa pronunciou a palavra “Lauiad”,
que para sempre a assinalou.
A quatro léguas de “Lauiad” está a Forquilha, onde o Nioaque conflui com o Miranda. São
todos estes panoramas de incomparável beleza. Uma eminência, entre outras, de onde
se dominam as margens cheias de mata do Uacogo, do Nioaque e do Miranda,
enlaçando a planície em suas curvas convergentes, oferece aspecto que sobrepuja
ainda, se possível, o panorama da “Lauiad”.
Tão brilhante, tão suave a luz que a toda
aquela paisagem cobre que, involuntariamente, vem a imaginação emprestar a sua
magia a este irresistível conjunto dos encantos da terra e do céu.
Apertadas entre altas
ribanceiras, cobertas de taquaruçus ([6]),
correm as águas frescas do Nioaque sobre um leito quase contínuo, de grés
vermelho, disposto em grandes lajes; e, em vários lugares, é a ação da
correnteza sobre a pedra tão notável, que se recomenda à atenção e ao estudo do
geólogo.
Mas quem, sábio ou artista, não acharia farta safra nestes campos admiráveis. Na extensão das dez léguas que separam a Forquilha de Nioaque têm os terrenos nível inferior aos que precedem Lauiad, muito embora jamais possam, em tempo algum, ser invadidos pela inundação. São, pelo contrário, secos e cobertos de pedregulho, como de macadame natural.
Nos cerrados surgem os piquis, frequentes; há
também uma grande árvore que se cobre de bagas açucaradas e agradáveis, a que
chamam fruta de veado. Não se mostram os jacarandás, também, aí raros.
Realizou-se a marcha para Nioaque com muita
ordem e regularidade. Eram alguns doentes transportados em redes, outros em
cangalhas ([7])
semelhantes aos cacolets ([8])
usados pelo exército francês na Argélia e da invenção de Larrey, no Egito. Grandes
serviços nos prestou este excelente modo de transporte. Suavizou, até, os
últimos momentos do Capitão Lomba, do 21° Batalhão, que morreu ao chegar,
supremo sacrifício, oferecido ao mau fado da nossa longa permanência em
Miranda.
A benigna influência do planalto
que atingíramos fez desaparecer completamente a epidemia. Restabeleceram-se de
pronto os doentes: não tornamos a ver aquelas terríveis dormências, sinais
precursores do mal que tantas vítimas causara. (TAUNAY, 1874)
(Continua...)
Bibliografia
TAUNAY, Alfredo de Escragnolle. A Retirada da Laguna:
Episódio da Guerra do Paraguai – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Tipografia
Americana, 1874.
(*)
Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas,
Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira
(SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
[1] Taunay, no seu livro “Memórias
do Visconde de Taunay”, faz uma crítica mordaz e contundente à capacidade
de liderança de Camisão: “As prevenções,
contudo, semeadas e aumentadas pelo gênio frio e displicente do Camisão, sempre
irresoluto e a vacilar se devia ou não marchar para a frente, não eram de
natureza a lhe conciliar popularidade e prestígio. A tanto, porém, não
chegavam as suas aspirações, contentando-se que lhe obedecessem e o
respeitassem; mas, coisa curiosa! A cada momento ficava como que surpreso que
assim acontecesse. Não tinha fibra de Chefe e só uma vez o vi assumir francamente
esta posição”. (TAUNAY, 1948)
[2] Frei Mariano:
batizado com o nome de Saturnino, na localidade de Bagnaia, Província de
Viterbo, Itália, entrou para a Ordem dos Capuchinhos, aos 15 anos de idade,
adotando o nome religioso de Mariano de Bagnaia. Chegou ao Brasil, em 1847,
dedicando-se à catequização indígena, na região de Cuiabá e Diamantino, antes
de partir para a região do Baixo Paraguai. Os soldados de Solano Lopez, durante
a Guerra do Paraguai, invadiram Miranda onde o Frei era vigário, e o conduziram
para o presídio de Niasc, no Paraguai. Quando estava prestes a ser executado,
os soldados brasileiros surpreenderam os carrascos paraguaios e Frei Mariano
aproveitou a oportunidade para fugir lançando-se às águas do Rio Apa de onde
foi salvo por um soldado brasileiro já que o religioso não sabia nadar. Frei
Mariano retornou à Corumbá como um verdadeiro herói e foi nomeado, pela Carta
Imperial de 08.10.1873, Major do Exército Brasileiro e Pregador Imperial. (Hiram Reis)
[3] Côngrua:
dízimo. (Hiram
Reis)
[4] Este: este clima. (Hiram Reis)
[5] Entre fins dos
setecentos e inícios dos oitocentos, a região de Miranda era ocupada por
populações Guaikuru, como os Cotoguéu, e Guaná, sobretudo Laiana e Terena.
Talvez essas tenham sido as primeiras populações a se estabelecer na região
depois do abandono Guarani, a qual deixou de ser referenciada como Itatim e
passou e ser denomina de Lauiad, que em Mbayá quer dizer “Campo Belo”
(TAUNAY)
[6] Taquaruçus: Chusquea gaudichaudii. (Hiram Reis)
[7] Cangalhas: armação que permite aos equinos levar carga de ambos
os lados do seu corpo. (Hiram Reis)
[8] Cacolets: sistema de transporte de feridos utilizado pelas Forças
Armadas Francesas e Inglesas no século XIX. O cacolet, que pesava em torno de
19 kg, constituía-se de um par de cadeiras adaptadas ao lombo dos equinos e
carregava até dois homens. (Hiram Reis)
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H