Quarta-feira, 5 de abril de 2023 - 06h20
Bagé, 05.04.2023
VII
Passagem do Apa.
Primeiro Embate. Ocupação da Machorra.
Haviam as nossas carretas
retardatárias chegado ao acampamento a 17.04.1867. No dia 18.04.1867, pelas
09h00, fez-se a rendição das guardas avançadas.
Reinava em nossas linhas a maior
tranquilidade quando, de repente, pelas 11h00, ouviu-se o grito de alarma:
‒ Cavalaria inimiga!
Armam-se os Batalhões; expede o
Comandante os engenheiros aos postos avançados; o Ajudante-General à
retaguarda; o Assistente do Quartel-General aos diversos corpos para lhes
examinar as condições e remediar ao que possa faltar. Para a vanguarda marcha
ele próprio, acompanhado pelo Batalhão de Voluntários, com as bocas de fogo do
Major Cantuária ([1])
e do Tenente Marques da Cruz ([2]),
o mesmo que havia de morrer combatendo nas Linhas de Humaitá. Por nós passou,
com a espada nua, não querendo, dizia, tornar a embainhá-la senão depois que
houvesse travado conhecimento com os paraguaios.
Estavam os inimigos, então, a
pequena distância de nós, perto da mata que beirava um Ribeirão. Avançavam
sensivelmente estendendo-se em linha de atiradores, correndo de um lado para
outro, sob as ordens de um oficial, que entre eles se destacava; e súbito
mandou se retirassem: perdemo-los de vista.
Após tão prolongada espera
ordenou o Comandante que volvêssemos às nossas posições. Pela manhã de
19.04.1867 deixamos o acampamento.
O Coronel destacou o 21° Batalhão
para a vanguarda com a recomendação de nunca perder de vista o grosso do Corpo
do Exército, durante a marcha, embora sempre a ganhar terreno. Seguia o resto
em destacamentos, próximos uns dos outros, mas, como a animação dos soldados e
a dos oficiais corressem parelhas, avançaram os Corpos sem prestar grande
atenção às ordens dadas, achando-se por vezes separados por distâncias maiores
do que a prudência aconselhava.
À passagem do Taquaruçu, cuja
ponte acabavam os paraguaios de destruir, deu-lhes a vanguarda uma descarga,
embora quase estivessem fora de alcance.
Viu-se um de seus cavaleiros cair
ferido. Tomou-o um dos camaradas à garupa, enquanto o terceiro lhe laçava a
montaria que fugia, sentindo-se solta.
Ao presenciar esta primeira cena
de guerra, queriam os nossos soldados deitar-se à água para perseguir o
inimigo, quando um toque de clarim do Quartel General os fez estacar. Toda a
coluna achou-se logo agrupada atrás deles. Nesse meio tempo os engenheiros
restabeleciam a ponte; bastou-lhes uma hora.
Efetuou-se a passagem e a marcha
recomeçou à outra margem. Mais uma razão para que logo e logo os atacássemos,
mas o Comandante manteve-nos imóveis. Só mais tarde soubemos por quê: provinha
de íntimo motivo: estávamos em Sexta-Feira Santa e a iniciativa de uma ação de
guerra, no próprio dia da morte do Salvador, repugnava a um coração religioso
como o do nosso Chefe, escravo de todos os nobres sentimentos, a ponto de
exagerá-los até a contradição, inquieto e como perturbado pelo pressentimento
do fim próximo.
Durou-lhe a hesitação bastante
para que o Destacamento paraguaio não mais receando ser atacado e, cheio de
desprezo, talvez, pela nossa pequena força de atiradores, sem cavalaria alguma,
em vastas planícies encharcadas, onde todo o homem a pé é assunto de escárnio,
se lembrasse pela atitude, de nos dar insolentes mostras de desdém que lhe
inspirava a inferioridade de nossos recursos militares e, por meio de
demonstrações ruidosas, nos fazer ver quanto considerava inúteis quaisquer
precauções contra nós.
Desmontaram todos os homens,
assentando-se uns à sombra das macaúbas ([3]),
ao passo que outros faziam tranquilamente pastar os cavalos. Fazia-nos ferver o
sangue aquele afetado descuido. Felizmente, afinal, até ao nosso Chefe atingiu
esta indignação.
Decidiu-se a agir. Só havia um
meio de rápido emprego e deste lançamos mão. Fez Marques da Cruz avançar a sua
peça e uma granada silvou ao meio das aclamações dos nossos soldados.
Atingiu a base de alta palmeira, que abrigava
bom número de cavaleiros e depois de ricochetear explodiu no ar. Foi, pelo
menos, para nós, um prazer vermos o efeito produzido, a surpresa, o alarma, a
confusão. Correram uns após os animais que a detonação dispersara; cavalgaram
outros, precipitadamente; e sem mais demora dispararam pelo campo, a todo o
galope. Passados poucos minutos desaparecera o Destacamento inteiro.
Lançou-se-lhe segundo projétil, e logo em seguida terceiro, que alcançou mais
de meia légua e deu a conhecer ao inimigo o poder de nossa artilharia. Toda
esta tropa fugidia só haveria de reaparecer diante da Fazenda da Machorra ([4]),
na fronteira.
Chegados esta tarde, à margem de um Ribeirão,
que os espanhóis chamam Sombrero, fomos acampar no triângulo que ele ali forma,
confluindo com o Apa. Admiramos este belo Rio, fronteira dos dois países e cujo
aspecto, com sua mata cerrada, tanto nos impressionara quando de longe o
avistáramos. Grande futuro lhe está reservado após a guerra.
Desce o Apa por três galhos, logo
confluentes, da serra dos Dourados, um pouco abaixo da Colônia Militar deste
nome, a doze léguas, Este-Sudeste da de Miranda. Corre a princípio para Oeste,
10°N até o forte de Bela Vista, que se acha no paralelo 22°, e daí, descambando
para Oeste 10°S, vai com um curso levemente sinuoso banhar Santa Margarida,
Rinconada e outros pontos fortificados até o Paraguai, em cujo leito se
despeja.
Ao chegar pediu o Coronel que lhe
dessem água do Apa, e, ou porque lhe viessem à mente vagas reminiscências
históricas, a propósito de caudais célebres, ou porque, após tanto abalo de
espírito, experimentasse como que uma agitação febril, disse sorrindo:
– Notemos a que hora provamos a água deste Rio.
Puxou o relógio, bebeu e
acrescentou a gracejar:
– Desejo que este incidente seja consignado na
história desta Expedição, se algum dia a escreverem.
Pareceu empenhado que se lhe
fizesse uma promessa em tal sentido. Foi o autor desta narrativa quem, em nome
de todos, a tanto se comprometeu, e hoje o cumpre com religioso zelo porque a morte,
de que estava o nosso Chefe tão próximo, sabe, pela própria natureza
enigmática, tudo enobrecer, tudo absolver e consagrar.
É neste ponto o Apa correntoso;
mas as grandes lajes que lhe calçam o leito como que convidam a entrar em suas
belas águas. Foi o que fizeram muitos soldados; passaram vários para a outra
margem a dizer que iam conquistar o Paraguai. À noite chegaram dois oficiais
que à hora do perigo vinham procurar-nos para conosco dele compartirem. A
marchas forçadas acudiam de Camapuã.
Adiantando-se à escolta haviam
atravessado, não sem correr o risco de algum acidente, as nossas linhas de
vanguarda. Só no dia seguinte apareceram os seus soldados ao acampamento, com
um viajante por nome Joaquim Augusto, homem corajoso, mas que ao nosso contato
só incitava o interesse pessoal. No dia 20.04.1867, às 09h00, pôs-se a
em movimento e, atravessando o Sombrero, avançou sobre a margem direita do
Apa, tendo à vanguarda o Batalhão de Voluntários.
Muito tempo nos custou vencer uma légua,
apenas. Sucedia a cada momento algum acidente às carretas das munições. Delas
não nos podíamos afastar, próximos como nos achávamos do inimigo. Atingíramos
quase, segundo a opinião dos refugiados, a primeira guarda paraguaia, a saber,
o Forte e Fazenda da Machorra, situada em território brasileiro, a uma légua e
quarto para cá do Forte de Bela Vista, que está construído na margem paraguaia.
Esperávamos, a cada passo,
encontrar resistência. No entanto marchava sempre o nosso Batalhão da Vanguarda
sem perceber ou sem medir a distância que as paradas contínuas dos demais
Corpos punham entre ele e as outras unidades. Em vão soavam os clarins; já se
afastara demais para que os pudesse ouvir. Deixá-lo assim isolado não era prudente;
tornava-se indispensável mandar um mensageiro chamá-lo.
Ofereceu-se o Ten Cel Juvêncio e
partiu logo com seus dois Ajudantes-de-Campo e Gabriel Francisco, o genro do
Guia, que conosco quis ir. Felizmente, tínhamos bons cavalos, dos que haviam
resistido à epizootia; safaram-se de perigoso atoleiro, que pela ânsia de
chegar não quiséramos contornar. Perdemos logo de vista o Corpo de Exército,
mas não percebíamos, ainda, nossa tropa já empenhada em combate, ao que
supúnhamos, pelas descargas e disparos isolados dos atiradores.
Víamos perfeitamente, por vezes,
tremular a bandeira nacional, a que depois encobriam elevadas moitas.
Parecia-nos, aliás, que não avançava. Em poucos instantes a rapidez da
carreira dela nos aproximou e, como eletrizados pela sua vizinhança, atiramos
os cavalos às águas do volumoso ribeirão, que nos barrava o passo, o José
Carlos, e afinal nos achamos reunidos aos nossos que, em lugar fechado, combatiam
à entrada da Machorra.
Uma linha de paraguaios, assaz
extensa, fazia frente ao ataque, ao passo que grande número dos seus se
encarniçava, com uma espécie de furor, em destruir a fazenda, incendiando
quanto parecia poder arder. Ocupava-se o nosso Comandante da vanguarda em
examinar uma ponte que cumpria atravessássemos para envolver o inimigo. Foi
então que o Ten Cel Juvêncio lhe comunicou a ordem de estacar.
Não permitiam as circunstâncias,
porém, que a ela atendêssemos. Concordaram os oficiais na imprescindível
necessidade de se ocupar a posição, custasse o que custasse. Imediatamente a
nossa linha de atiradores atirou-se a correr para a frente oposta, e pela própria
ponte, porfiando todos em ardor.
Recuaram os paraguaios, mas em
boa ordem. Tinham ordens, certamente, para não empenhar combate, mas somente
reunir e tanger à retaguarda cavalos e bois que não queriam deixar-nos; e
deviam ser numerosos, tanto quanto nos permitia avaliar a poeira que sua marcha
ocasionava.
Foi o recinto ocupado. O Ten Cel
Enéias Galvão ([5]),
ali, deu imediatamente nova formatura ao seu Batalhão e o manteve numa série de
posições que lhe valeu, posteriormente, não só a aprovação do Coronel como
gerais parabéns. Foram os nossos os primeiros recebidos.
Todos aplaudiram o espírito de
disciplina dos seus subordinados e o afã com que, logo à primeira voz,
começaram a desentulhar o terreiro de objetos que o atravancavam, sem coisa
alguma subtrair, assim como de quanto estava no interior das casas.
Neste ínterim apareceu o próprio Comandante.
Não vendo voltar nenhum daqueles que à vanguarda mandara, às pressas partira
para constatar o que havia. O entusiástico acolhimento que neste momento lhe
fizeram, e as aclamações dos soldados lhe causaram uma satisfação cuja
expressão, malgrado a reserva habitual, a todos se patenteou.
Os auxiliares índios, Guaicurus e Terenas,
não foram os últimos a se apresentar para o saque. Tão pequena disposição para
o combate haviam mostrado que, na nossa carreira, ao lhe tomarmos a frente,
lhes bradáramos: Vamos! Avante! Valentes camaradas! Agora se lhes transmutara a
indolência num ardor sem limites para o saque. Já se haviam disseminado pelas
roças de mandioca e de cana, de lá trazendo, imediatamente, cargas sob as quais
vergavam, sem, contudo, encurtar o passo.
Vislumbrava-se um resto de
crepúsculo, ainda quando o grosso da coluna chegou. Foi este o momento do
atropelo e da balbúrdia: tantos objetos se avistavam sem dono, misturados e
fadados à destruição. Cada qual tomou o seu quinhão, sendo exatamente os menos
beneficiados aqueles que à presa tinham mais direito, pois o haviam conquistado
sob o fogo inimigo e guardado, como propriedade pública, até o momento da
depredação geral.
Era este saque, aliás, legitimo,
e não se teria podido, sem manifesta injustiça, recusar tal prazer aos
soldados, que o haviam comprado e adiantado por uma série de meses de privações
e fome. Das oito ou dez casas da Machorra, duas estavam reduzidas a cinzas pelo
fogo que os próprios paraguaios lhes haviam posto. Foram as outras preservadas
pelos nossos soldados. Alguns pedaços do madeiramento, alguns mourões abrasados
serviam para cozinhar as batatas, a mandioca e as aves do inimigo.
A Machorra, denominada Fazenda do
Marechal López, não passava realmente de terra usurpada, cultivada por ordem
sua, além da fronteira. O trabalho dos invasores, frutuoso como fora, vinha
acrescer ao banquete a satisfação de um sentimento de reivindicação nacional.
Autorizou-o o Coronel com um ar prazenteiro que jamais até então lhe percebêramos. (TAUNAY, 1874) (Continua...)
Bibliografia
TAUNAY, Alfredo de Escragnolle. A Retirada da Laguna: Episódio da Guerra do Paraguai – Brasil – Rio
de Janeiro, RJ – Tipografia Americana, 1874.
(*)
Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas,
Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia
Brasileira (SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
[1] João Tomás de Cantuária: viera acompanhado de mais dois oficiais
destinados a reforçarem a Comissão de Engenheiros; os Ten de Artilharia João
Tomas de Cantuária, bom companheiro, embora de gênio sombrio, um tanto
fantástico, sobretudo desigual [...] (TAUNAY, 1948)
[2] João Batista Marques da Cruz: Quando Marques da Cruz chegou de
Mato Grosso e, prestes a partir para a guerra, no Paraguai, levei-lhe o
manuscrito da Retirada da Laguna, leu-o com muita atenção e observou: “Como é, Taunay, que você se lembrou tão
exatamente de tanta coisa, de tão numerosos incidentes?” Perguntei-lhe se
havia achado exageração no que contara, receoso como me sentira de ser
hiperbólico na narração dos nossos sofrimentos. ‒ Não há tal ‒ replicou-me com
vivacidade ‒, em muitos pontos pareceu-me até que você diluiu demais as cores.
E acrescentou: “Enfim, não foi debalde
que tanto padecemos; aí fica o que está escrito para atestá-lo, talvez para
sempre!” (TAUNAY, 1948)
[3] Macaúba (Acrocomia aculeata): palmeira mais conhecida como bocaiuva,
atinge até 25 m de altura e na região dos nós de seu caule apresenta uma
fileira de espinhos longos e pontiagudos. (Hiram Reis)
[4] Fazenda da Machorra: pequena aldeia fronteiriça paraguaia, com
uma dezena de casas. As mulheres que não podiam gerar filhos eram, antigamente,
chamadas de Machorras. (Hiram Reis)
[5] Mal Antônio Eneias Gustavo Galvão (Barão de Rio Apa): na Retirada
da Laguna comandou o 17° Batalhão de Voluntários da Pátria. Foi Ministro da
Guerra e Ministro do Superior Tribunal Militar. (Hiram Reis)
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H