Segunda-feira, 27 de março de 2023 - 06h05
Bagé, 27.03.2023
III
Nioaque. O Coronel
Carlos de Morais Camisão. O Guia José Francisco Lopes.
Fora a Vila de Nioaque abandonada
pelo inimigo a 02.08.1866. Por toda a parte ali se viam vestígios do incêndio.
Poupadas, apenas, 2 casas e uma pequena igreja de pitoresca aparência. À
primeira vista agrada o aspecto geral do lugar.
De um lado, o povoado e um
Ribeirão chamado Orumbeva; do outro, o Rio Nioaque, cujas águas confluem cerca
de 900 m, para trás da igreja, deixando livre, em torno desta, à direita e à
esquerda, um espaço duas vezes maior. Pequena colina fica-lhe em frente, a
pouca distância.
Ali chegamos, às 11h00 de 24.01.1867, acampando,
em ordem de batalha, com a direita encostada à margem direita de Nioaque; e a
esquerda à mata do Orumbeva. Instalaram-se o Quartel-General e o trem à
retaguarda, no local da Vila, ocupando o hospital as pequenas casas salvas do
fogo e um grande galpão que às pressas se construiu. Serviu a nave da igreja ‒
de onde se retirara tudo quanto ainda havia de símbolos do culto ‒ de depósito
ao cartuchame e a todas as munições. Ergueram-se, de todos os lados, ranchos de
palha, “gurbis” como lhes chamam na
Argélia, e, dentro em pouco, oficiais e soldados ali se acharam tão bem
instalados quanto as circunstancias o permitiam.
Um bem-estar, desde vários meses ausente, o
renovamento da existência um sentimento de plenitude de vida a todos nós
exaltava, e em todos se transmutava na ânsia de sobressair, graças a algum
brilhante feito d’armas que chamasse a atenção do país para uma Expedição desde
muito inativa.
Reinavam no acampamento a
esperança e a alegria. Perigo havia, contudo, neste entusiasmo; e os que
conheciam o Chefe, de si para si, indagavam, com secreto desassossego, qual lhe
seria a demonstração da iniciativa. Ia-lhe no peito amarga lembrança que não conseguia
remover da mente.
Ao abandonar o Cel Oliveira,
Comandante das armas da Província, a Praça de Corumbá ([1]),
embora estranho às primeiras deliberações motivadoras desta precipitada
retirada, figurara neste triste episódio o Cel Camisão na qualidade de
Comandante do 2° Batalhão de Artilharia; e, por tal motivo, vira-se acusado
de solidariedade com este ato de fraqueza. Contra ele servira-se a malevolência
destas vozes cruéis, circulando, em tal época, um soneto impresso, acerbo
estigmatizador dos defensores de Mato
Grosso. Dentre os nomes nele apontados, lera o próprio... Subsistia a dor da
afronta, profundamente magoado como se lhe achava o pundonor militar.
Com verdadeira paixão aceitara o comando da
Expedição. Seria, a seu ver, o modo de se reabilitar perante a opinião pública
e, desde tal momento, concebera o projeto não de se manter na defensiva, como o
critério o indicava, dada a exiguidade dos recursos de que podia dispor, e sim
de levar a guerra ao território inimigo, fossem quais fossem as consequências.
Dia a dia, cada vez mais, tal ideia o
empolgara. Sob, a influência de legítimo ressentimento, tomou a feição da
fixidez, apesar da inata indecisão do caráter. Sinistro fadário o impelia ao
infortúnio. Encontrava-se no arquivo da coluna um ofício do Ministro da Guerra
recomendado a marcha sobre o Apa logo que as conjunturas a tanto se prestassem.
Ali enxergou, não o que
exatamente havia, uma indicação facultativa, mas a ordem de avançar, forma
peremptória. Por mais que se lhe fizessem observações: cego, graças a doentia
suscetibilidade, levava a mal que de menos contestável se lhe objetasse. Uma
frase depreciativa ao seu respeito pronunciada, imprudentemente repetida,
ainda lhe acirrou a inflexibilidade, tornando-o surdo a quanto parecesse
desviá-lo do projeto de invasão.
Não era que lhe não sopesasse as
dificuldades; via, porém, os soldados cheios de entusiasmo e já aguerridos;
embalava-se na esperança de, à sua testa, praticar grandes feitos; adestrava-os
às manobras, por meio de frequentes exercícios, levava-os a empenhar combates
simulados, em que a artilharia representava ruidoso papel; e desta agitação
geral resultava uma animação de que ele próprio compartia.
Entretanto, algumas vezes também,
percebia nitidamente que apenas dispunha de uma vanguarda de exército em
campanha; e era obrigado a reconhecê-lo.
As hesitações lhe voltavam então,
e, chegado o dia por ele próprio fixado para a arrancada das Forças, achava
sempre motivo para o adiamento, embora precisasse invocar as razões na véspera
repelidas.
Ora oficiava ao Ministro que nada
podia empreender sem cavalaria, e ora pretendia poder dispensá-la; dolorosos
embates entre a autoridade da razão clara e as inspirações do orgulho magoado.
Era-lhe a atitude, aliás, sempre digna e firme;
em todas as questões administrativas trazia, sobretudo, o cunho de nobre
integridade. Não admitia uma diminuição ao prestígio de Chefe e sabia mantê-lo
tanto mais quanto lhe assistia real singeleza e amenidade.
Homem de quarenta e sete anos de idade, baixo
e aparentemente robusto, feições regulares, tez moreno-escura, olhos negros e
vivos, tinha larga testa e belo crânio, completamente calvo, que dos paraguaios
lhe valeu injuriosa alcunha. Sempre sério e preocupado, era visto solitário, ou
a conferenciar com o velho sertanista que nos servia de Guia, José Francisco
Lopes.
Merece este ser apresentado ao leitor antes
que o veja agir. Dentre nós, os que tinham presentes os romances de Fenimore
Cooper, não podiam, à vista do sertanejo brasileiro, o homem das solidões,
deixar de evocar a grande e singela figura de “Olho de Falcão” no “Último
dos Moicanos” ([2]).
Tivera, desde a infância, o
pendor pelas entradas nos sertões brutos. Contava-se também que um ato violento,
da primeira mocidade, lhe impusera, durante algum tempo, este modo de vida.
Viera depois a idade desenvolver-lhe todas as
aptidões. Prodigiosamente sóbrio, viajava dias inteiros sem beber, trazendo à
garupa da cavalgadura pequeno saco de farinha de mandioca, amarrado ao pelego
macio, que lhe forrava o selim. Jamais deixava o machado destinado a cortar
palmitos.
Nascido na Vila de Pinmi, em Minas Gerais,
dali, ao léu das aventuras, havia atingido todos os pontos da área que se
estende das margens do Paraná às do Paraguai. A fundo conhecia as planícies que
entestam com o Apa, divisa do Brasil e do Paraguai.
Numerosas localidades até então virgens do pé
humano, até mesmo selvagem, percorrera e a várias batizara [Pedra de Cal, entre
outras]. Tomara, em nome do Brasil, posse, ele só, de imensa floresta, no meio
da qual fincara uma cruz, grosseiramente falquejada, onde esculpira a
inscrição “P II” [Pedro Segundo],
imponente madeiro, perdido no recesso dos desertos. Criava a iniciativa do
sertanista domínios ao soberano.
Numa viagem para estudar a navegação do Rio
Dourado, afluente do Paraná, gravemente ferira a planta do pé, acidente de que
jamais pudera curar-se. Um dia, como lhe víssemos a chaga, semicicatrizada,
sempre a sangrar, disse-nos:
Prometeu-me o governo
dar-me, a título de recompensa, trezentos mil-réis, mas nunca os pagou.
Perdoei-lhe a dívida; o que se me devia era uma condecoração; já a tenho e nada
mais quero.
Durante sete anos, com a família, residira no
Paraguai; mas no momento da invasão já estava de volta ao solo brasileiro, habitando,
à margem do Rio Miranda, uma propriedade sua, que batizara Jardim, fertilizada
por seu trabalho e o dos filhos já crescidos. Ele e a mulher, D. Senhorinha,
generosamente hospedavam quantos ali fossem ter.
Quando, em 1865, irromperam os
paraguaios em território brasileiro, conseguira escapar-lhes, mas único da
família, que caíra toda em poder do inimigo e fora transportada para a aldeia
paraguaia de Horcheta, a sete léguas da cidade de Concepción. Com ela vivia o
coração do velho Guia. Por todas estas razões, nele encontrou o Coronel Camisão
apaixonado adepto. Desde que, dando-lhe a conhecer os seus projetos, acenou a
José Francisco Lopes com o ensejo de, como Guia da Expedição, ir ter com a
família e vingar-lhe os agravos, empolgou o espírito do sertanista brasileiro,
que, apesar de todo o ardor, jamais perdeu, contudo, a perfeita intuição das
conveniências. Assim, nunca esquecendo a modéstia da posição, frequentemente
dizia:
‒ Nada sei, sou sertanejo; os senhores que estudaram
nos livros é que sabem.
Era-lhe o orgulho num único ponto
irredutível, no que tocava ao conhecimento do terreno, legítima ambição, além
do mais, pois dela nos proveio a salvação. Exclamava:
‒ Desafio todos os engenheiros com as suas
agulhas [bússolas] e plantas. Nos campos da Pedra de Cal e Margarida sou Rei.
Só eu e os índios Cadiueus conhecemos tudo isto.
Resolveu-se a partida de Nioaque, embora já
com grandes dificuldades tivéssemos que lutar, sobretudo quanto ao
abastecimento de gado. Comunicou-se a ordem às tropas sem que se soubesse para
onde se ia marchar. Pensava a maioria que se tratava somente de alguma incursão
a fazer em território inimigo. Levava a coluna apenas o material indispensável
para um mês de ausência. Ficavam no acampamento as mulheres dos soldados,
exceto duas ou três. (TAUNAY, 1874)
(Continua)
Bibliografia
TAUNAY, Alfredo de Escragnolle. A Retirada da Laguna:
Episódio da Guerra do Paraguai – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Tipografia
Americana, 1874.
(*)
Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas,
Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia
Brasileira (SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
[1] Corumbá: em fins de dezembro de 1864, Corumbá tomada e devastada
pelos paraguaios. Era a principal praça comerciante de Mato Grosso: e o inimigo
ali realizou mui considerável presa. Haviam-se os habitantes refugiado nas
matas vizinhas, mas Barrios os perseguiu. Saqueadas as casas, vários objetos
roubados, e dos mais valiosos, remeteram-se a Lopez que não hesitou em os
guardar, sobressaindo-se Barrios entre todos os que assim procederam. A um
brasileiro rico, e sua filha, levaram a bordo do seu navio: e quando o pai
recusou deixar a menina a sós com o Chefe paraguaio, arrastaram-no à força,
ficando a infeliz criança no navio. Pôs Barrios em tratos todos os que lhe
caíram nas mãos, quando queriam ou não podiam dar-lhe as informações pedidas,
ordenando que os espancassem: foram vários lanceados como espiões. (TAUNAY)
[2] “O Último dos Moicanos”:
romance histórico de James Fenimore Cooper, lançado em 1826, baseado nos
eventos relacionados com a Guerra Franco-Indígena [1754-1763]. Nataniel Bumppo
era um espião a serviço dos britânicos, mais conhecido como “Olho de Falcão” [em referência à sua
precisão no tiro com armas].
“Olho de Falcão” era um homem que tinha aprendido a viver em
harmonia com a natureza e estava desvinculado das modernizações e da cobiça da
época. Embora fosse inculto, representava a perfeição moral e a sabedoria
superior natural. Esse é um dos tipos centrais da mitologia do Oeste que
continua a exercer influência na cultura norte-americana: o homem solitário e
armado, sem grandes recursos, mas com sentimentos nobres e princípios morais,
que vive em meio à natureza, sem os confortos da civilização (JUNQUEIRA)
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