Quarta-feira, 29 de março de 2023 - 06h35
Bagé, 29.03.2023
IV
Marcha
Sobre a Fronteira Paraguaia. Conselho de Guerra.
Arrancou a coluna a 25.02.1867,
indo acampar a uma légua da Vila, à margem do Rio Nioaque. Logo que pudemos,
visitamos o Comandante. Tinha a barraca sobre um montículo pedregoso, a meio
abrigado por palmeiras que tornavam aprazível aquele local. Estava agitado: já
para o rancho da tarde faltava gado.
A 26.02.1867 estávamos no
Canindé; a 27.02.1867 no Desbarrancado.
Dois dias demorou a coluna neste
lugar, 28.02.1867 a 01.03.1867. A 02.03.1867 marchava até o Feio, Rio da
vizinhança, onde, devido ao mau tempo, passou o dia 3. Nesse mesmo dia voltou
José Francisco Lopes de sua estância do Jardim trazendo-nos, mais ou menos,
duzentos e cinquenta cabeças de gado, circunstância que naturalmente veio
aumentar a grande confiança que nele e em sua palavra já depositávamos.
A 04.03.1867, à uma hora da
tarde, ocupamos o lugar onde fora a colônia de Miranda, distante 80 km S.S.O.
de Nioaque. Apenas ali restavam alguns vestígios de construções incendiadas.
Principiou o Coronel Camisão por
fazer explorar os diversos pontos que se ligavam à nossa posição e ordenou que,
em todas as direções, se abrissem picadas através das matas, mandando ocupar as
estradas do Apa e da colônia por piquetes.
Ao mesmo tempo eram as trincheiras da frente
e da retaguarda resguardados por destacamentos consideráveis.
O que teria convindo seria
investir com as fortificações paraguaias e tomá-las. Na primeira confusão
desta surpresa, poderíamos devastar o Norte da República antes que o governo
de Assunção soubesse de nossa marcha. Deu-se inteiramente o contrário: teve o
inimigo tempo de perceber a diretriz e o alcance da empresa.
Continuava sempre iminente a
fome. Segundo rebanho de duzentas cabeças, que Lopes ainda trouxera de suas
terras, estava a acabar. Nenhuma remessa nova se anunciava e a Intendência em
ofício, datado de Nioaque, declarava achar-se incapaz de prover, daí em diante,
ao abastecimento de gado.
Nesta contingência acentuaram-se
as hesitações do Coronel com maior frequência. Deixou mesmo pressentir a
necessidade que talvez o compelisse a recuar até Nioaque e abandonar
provisoriamente os projetos de ofensiva. Como fazia praça em observar, tal
ideia, aliás, jamais fora favoravelmente acolhida. Quis em todo o caso pôr a
salvo a responsabilidade, por meio de documento oficial com que, oportunamente,
pudesse justificar-se, quer perante o governo, quer perante o público.
Assim, pois, a 23.03.1867,
oficiou ao presidente da Comissão de engenheiros, determinando-lhe que
convocasse os colegas para deliberarem sobre a possibilidade de um movimento
ofensivo e os meios de o executarmos.
A tarde desse mesmo dia, graças a
um contraste, cuja recordação nos ficará inapagável à mente, reuniu-se este
Conselho carregado de tantas desgraças, quando a luz crepuscular enchia os
espaços de paz e alegria. A princípio solene, acabou por violências nascidas da
exaltação conscienciosa.
Por diversas vezes
esforçaram-se três dos membros da Comissão em pintar a posição do Corpo do Exército
tal qual realmente era; a insuficiência de víveres; a penúria absoluta dos
meios de transporte; a ausência da cavalaria e a escassez das munições; a
impossibilidade de angariar reforços ou socorros para um punhado de homens
internados em terra inimiga.
Daí a eventualidade
infalivelmente próxima de uma retirada a executar-se, sem dados de antemão estudados,
e sob condições em que as tentativas só podiam conduzir a um desastre, e isto
com a deplorável consequência de atrair novamente para o território brasileiro,
a ocupação paraguaia, acompanhada de todos os horrores.
Razão, mais que sobeja, assistia
incontestavelmente aos que assim pensavam. Dois dos colegas, porém, encarando a
questão sob um ponto de vista diverso, e buscando argumentos em mais elevada
esfera, pretenderam que ao Corpo de Exército assistia uma missão que, a todo o
transe, devia cumprir.
Tornara-se-lhe a marcha para o
Norte do Paraguai absolutamente indispensável no plano de conjunto da guerra.
Era sem dúvida a coluna mais fraca e talvez sucumbisse, mas útil e
gloriosamente. Dir-se-ia, pelo menos, que se compunha de valentes brasileiros.
Éramos todos moços; tais
pensamentos, tais modos de sentir invocados a propósito de opiniões
contrárias, trouxeram troca de palavras ásperas e afinal recriminações
pessoais.
Até então mantivera-se calado o
Tenente-Coronel Juvêncio ([1]),
Chefe da Comissão de engenheiros, sem contudo conseguir dominar a comoção que
de vez em quando o agitava. De seu voto, preponderante, devia depender, o desfecho
do debate. Resumiu o parecer, colocando-se exclusivamente no terreno prático: “Não podia a coluna avançar sem víveres e já
não dispunha de mais gado”. Exatamente em tal momento ocorreu um destes
incidentes que nas combinações das coisas humanas surgem para lhes encaminhar
o curso.
Um rebanho que o infatigável
Lopes, a instâncias do nosso Comandante, juntara nos campos de sua estância do
Jardim e tangera para o acampamento, ali entrava tumultuosamente, respondendo
os mugidos dos animais aos clamores dos vaqueiros e peões.
Desde então tudo se decidiu, como outrora em
Roma expedições militares se detiveram ou precipitaram-se segundo os gemidos
das vítimas ou os gritos dos frangos sagrados. Levantou-se o Presidente do Conselho
e, voltando-se para o secretário encarregado de redigir a ata da sessão, o
próprio autor desta narrativa, encarregou-o de comunicar ao Comandante que a
Comissão unânime reconhecia a possibilidade da marcha para a frente, sobre a
fronteira inimiga, apressando-se em oferecer toda a sua boa vontade para a
execução deste plano. Em seguida, exclamou:
‒ Deixo
viúva e seis órfãos. Terão como única herança um nome honrado.
Assim se encerrou este conselho sobre o qual
se fixara a atenção de toda a oficialidade e cujo resultado; todos
surpreendeu; a ninguém tanto, contudo, quanto ao Comandante, por se ver
arrastado pelo obstáculo que acreditara anteceder à sua pessoa e os riscos do
primitivo projeto.
O sentimento do decoro pessoal, nele poderoso
desde o despertar, preservou-o, contudo, de outros testemunhos da impressão,
além de alguns gestos, inopinados e involuntários. Esforçou-se desde então em
bem realizar o que fatalmente se tornara impossível deixar de empreender. (TAUNAY, 1874) (Continua...)
Bibliografia
TAUNAY, Alfredo de Escragnolle. A Retirada da Laguna: Episódio da Guerra do Paraguai – Brasil – Rio
de Janeiro, RJ – Tipografia Americana, 1874.
(*)
Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas,
Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia
Brasileira (SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
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