Sexta-feira, 31 de março de 2023 - 06h00
Bagé, 31.03.2023
V
Reconhecimento.
Rebate Falso. Regresso de Cativos Escapos ao Inimigo.
O Guia Lopes e o Filho. Avante!
Recebeu imediatamente o 21°
Batalhão ordem de escoltar os engenheiros, numa exploração das localidades
vizinhas da Colônia; e, com efeito, a 25.03.1867, o Tenente-Coronel Juvêncio,
com os dois subordinados, avançou até o ponto chamado Retiro que, havia pouco,
fora evacuado por um Destacamento paraguaio de uma centena de homens. Feito o
reconhecimento regressou na mesma tarde a nossa Comissão ao acampamento.
Tinham percorrido os infantes que
nos acompanhavam mais de 52 km transportando capotes e armas, além de sessenta
cartuchos na cartucheira. Pudemos frequentemente constatar que as mais longas
marchas não conseguem abater a energia do soldado brasileiro. Decorreram os
dias subsequentes, na inação; e neste solene repouso do pensamento, que é
apenas prudência em vésperas de arriscadas empresas. Tanto ninguém deve
perturbar-se com a apreensão de desgraças, que talvez não ocorram, como se não
entregar à exagerada confiança no futuro, que à possível catástrofe ainda venha
trazer o rigor do imprevisto. Abril começara, fadado às nossas provações. O
serviço de comboio longe estava de se achar garantido e, no entanto, como que a
abundância reinava no acampamento.
Carretas em contínua afluência ali traziam
toda a espécie de fazendas e demais objetos de luxo que aqueles campos desertos
jamais haviam certamente visto. Assim, as mulheres dos soldados, atraídas por
este movimento comercial desciam de Nioaque em grupos cada vez mais numerosos.
Também para tal
afluxo de gente contribuía a reputação de salubridade da Colônia de Miranda.
Era para aquele ponto, com efeito, que, muito antes da invasão estrangeira, de
toda a vizinhança mandavam convalescentes e enfermos. Ali são cristalinas as
águas do Rio que as infiltrações salobras dos pântanos de jusante ainda não
contaminaram. Nada deixava a desejar o estado sanitário das tropas.
Haviam, pois,
recomeçado os exercícios diários de todos os Batalhões e nossas músicas,
rompendo afinal o longo silêncio, alegravam os espíritos. A dos Voluntários de
Minas, sobretudo, cuidadosamente recrutada, executava sinfonias cuja novidade,
para os ecos locais, ajuntava novo encanto ao prazer da audição. Recebeu logo o
17° Batalhão ordem de ir, além do ponto atingido pelo 21°, realizar um
reconhecimento, sob a direção do Guia Lopes e em companhia de um grupo de
índios Terenas e Guaicurus, que desde algum tempo se apresentara ao Coronel.
A 10.04.1867, realizou-se a
partida, bandeiras desfraldadas e música à testa, espetáculo sempre imponente
em vésperas de combate. Graças ao Comandante apresentava-se o corpo em pé de
disciplina, que em qualquer ponto o tornaria notado. Reservava-nos o dia
seguinte emoções muito diversas e quase contraditórias: a esperança de
encontrar o inimigo, que se não realizaria, e o imprevisto das mais comoventes
cenas familiares. Anunciou-nos uma mulher, vinda de Nioaque, o encontro, à margem
de um Rio próximo, de um grupo de cavaleiros, falando o espanhol.
Depois de lhe fazerem algumas
perguntas, haviam-na deixado passar tranquilamente. Deu-se logo o alarma em
toda a frente e à retaguarda, mas tivemos logo a agradável surpresa do regresso
do nosso Destacamento trazendo dez cavaleiros.
Eram brasileiros, eram irmãos!
Pertenciam a famílias estimadas e bem conhecidas de fazendeiros das vizinhanças
de Nioaque: Barbosas, Ferreiras, Lopes, e haviam conseguido escapar ao inimigo
inexorável. Com a rapidez do raio circula a notícia de sua aparição por todo o
acampamento, e até em Nioaque.
Para os ver acodem homens e
mulheres, possuídos como que de embriaguez; e a maioria até a chorar. Patrícios
nossos! Rodeados, carregados, acham-se de repente em presença do Comandante que
os interroga. Contam que, levados prisioneiros para o território paraguaio,
eles e as famílias, haviam, ao se retirar o inimigo, sido dispersos por
diversas localidades, principalmente em Vila Horcheta, a sete léguas de
Concepción.
Ali lhes haviam dado terras de
cultura sob a condição de pagarem aos coletores o quinto da colheita. Nunca os
incomodaram muito até então, mas sabendo, ultimamente, que o ditador López, já
falto de gente para o exército, projetara recrutar todos os estrangeiros, e
até mesmo os prisioneiros, e que, ao mesmo tempo, se aproximava uma coluna
brasileira, tudo tinham arriscado para reunir-se aos patrícios, escapando ao perigo
de ter de os combater. As próprias famílias os haviam incitado a assim
proceder.
A 25.03.1867, exatamente no dia
dos nossos primeiros reconhecimentos diante da Colônia, conseguiram apossar-se
de bons cavalos paraguaios, e, como se não iludissem acerca do destino que os
aguardava caso fossem novamente capturados, tinham se arriscado a caminhar à
noite, e de mata em mata, fazendo contínuos rodeios, em direção à fronteira.
Atingindo-a felizmente,
atravessaram o Apa e depois, deixando à direita a estrada da Colônia, subiram
ao Norte, em direção à estância do Jardim, de onde desceram ao nosso encontro.
A um deles, o filho do Guia
Lopes, chamou o Coronel à sua barraca e a sós. Era moço simpático, cuja
inteligência e discrição pareciam provir da herança paterna. Versou a conversa,
naturalmente, sobre as informações que ele e o cunhado, Barbosa, podiam dar
relativamente à situação do Paraguai, à sua força apreciável, meios de
resistência, e sobretudo quanto à fronteira vizinha.
Responderam os refugiados que as
fortificações do Apa não passavam de simples estacadas de madeira comum,
guarnecidas, em Bela Vista, por uma centena de homens, sob o comando do Major
Martim Urbieta.
Estavam os outros fortes em
piores condições defensivas; mas o governo paraguaio, à vista dos avisos
recebidos, comprometera-se a providenciar dentro em pouco e a enviar reforços,
determinando que até a chegada destes, se fizesse uma retirada ante a investida
brasileira, destruindo-se tudo o que não fosse possível carregar. Acrescentaram
que, no interior do Paraguai, era geral o desânimo; dia a dia menos se
acreditava num feliz desfecho da guerra. Entretanto a resolução da defesa, a
todo o transe, não parecia esmorecida.
Quanto ao respeito pelo
presidente, El Supremo, cujo nome todos pronunciavam descobrindo-se, era sempre
o mesmo. Apenas pelo acampamento se espalharam tais notícias, só houve um
grito: Ao Apa! Ao Apa! Atingiu o entusiasmo ao auge, deixando-se os mais
prudentes arrastar pela excitação apaixonada dos grupos que de todos os lados
se formavam.
Anunciou-se neste momento a volta do 17°
Batalhão que acompanhara o velho Lopes. Era geral o desejo de assistir ao
primeiro encontro do pai e do primogênito que lhe voltava aos braços. Passando
pelos postos avançados soubera o nosso Guia da grande notícia.
Vinha pálido, lacrimejante, em
direção ao filho que, respeitosamente, o esperava, descoberto. Não desmontou;
estendeu a destra trêmula ao filho, que a beijou; depois o velho Guia deu-lhe a
bênção e passou sem proferir palavra.
Foi uma cena patriarcal, e como
seja o coração humano sempre sensível aos grandes lances, atônitos, olhávamos
uns para os outros, como a indagar se não seria fraqueza entre soldados nem
sempre poder conter as lágrimas.
Que emoção devia sentir o velho
vendo o filho escapo ao inimigo! E quanta dor, ao pensar que os outros membros
da família, ainda cativos, haviam perdido o mais valente defensor! Quando em
tal lhe falamos tomou longa pitada e disse: “Deus tudo faz. Deus assim o quis. Fui outrora feliz, tive casa e família.
Hoje durmo ao relento; estou só, e como do que a caridade dá”.
‒ Vamos encontrar casa em Bela
Vista, lhe respondemos. Tem o senhor a seu lado filho e genro. Come em
companhia de amigos e até ainda é quem lhes dá a comer de seu gado.
Com melancólico sorriso meneou a
cabeça, dizendo:
‒ Nunca mais será minha a estância
do Jardim!
Entrementes, depois de haver combinado com
Barbosa os meios de ainda ter gado do sogro, ordenou o Coronel que se
avançasse. (TAUNAY, 1874) (Continua...)
Bibliografia
TAUNAY, Alfredo de Escragnolle. A Retirada da Laguna: Episódio da Guerra do Paraguai – Brasil – Rio
de Janeiro, RJ – Tipografia Americana, 1874.
(*)
Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas,
Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira
(SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
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