Quinta-feira, 6 de abril de 2023 - 16h56
Bagé, 07.04.2023
VIII
Ocupação de Bela
Vista. Devastações dos Paraguaios em Torno da Coluna. Tentativa de Negociações.
Seu Malogro. Tornam-se os Víveres Escassos. Marcha Sobre Laguna.
Dia seguinte, 21.04.1867, às 08h00, deram os
clarins do Quartel-General o toque de marcha. Nada menos significava do que
transpormos a fronteira, entrar em território paraguaio e atacar o forte de
Bela Vista, que, deste lado, é a chave de toda aquela região. Não havia quem
não compreendesse o alcance da operação, redobrando por este motivo a animação
geral. Cada qual envergara o mais luzido uniforme; e como às nossas antigas
bandeiras não prestigiasse ainda feito notável algum, foram substituídas por
outras, cujas cores vivas se destacavam no céu formoso das campinas paraguaias.
Deixando a Machorra, adotara-se a ordem compacta. Dos dois lados da coluna, e
para lhe facilitar o movimento, os atiradores, que a flanqueavam, cortavam a
macega; pois mudara a natureza do terreno. Não mais tínhamos a grama curta e
fresca dos prados que acabávamos de atravessar. Estava o solo coberto desta
perigosa gramínea que atinge a altura de um homem, e a que chamam macega, e
cujas hastes duras e arestas cortantes tornam, em muitos lugares do Paraguai, a
marcha tão penosa.
Transpusemos o Apa em frente a
Bela Vista. O 20° de Infantaria de Goiás formava a vanguarda, sob o comando do
Capitão Ferreira de Paiva. Avançando à frente dos batedores, a quem comandava,
jovem e valente oficial, de nome Miró, fadado à morte próxima, víamos o velho
Lopes, apressado, montando belo cavalo baio um daqueles animais que o filho e
os companheiros deste haviam tomado aos paraguaios. Estava no auge da alegria,
o olhar como o de um rapineiro, a fitar Bela Vista, que começávamos a avistar.
De repente, no momento em que acabávamos de chegar ao seu lado, percebemos que
a fisionomia se lhe anuviara:
‒ A
perdiz, disse-nos, voa do ninho e nada nos quer deixar, nem os ovos.
Mostrava ao mesmo tempo tênue
fumo que subia aos ares.
‒ São
as casas de Bela Vista que incendiaram.
Foi a notícia levada ao Coronel que, avisado
também por um sinal do Alferes Porfírio, do Batalhão da frente, fez acelerar a
marcha. Começamos a correr, precipitando-se a linha dos atiradores do 20° para
o Rio; mas a sua frente já se antecipara pequeno grupo de que fazia parte o
nosso Guia.
Com grande espanto nosso não pareciam os
inimigos pretender disputar-nos o passo; retiravam-se do Apa como já se haviam
afastado da Machorra, indo estacar a uma distância bastante grande, imóveis
sobre os cavalos.
Cabia-nos, pois, o feliz ensejo de ser os
primeiros a atravessar a fronteira, pisar à esquerda do Apa e sentir sob os pés
o solo paraguaio. Transposto o Rio, galgamos num ápice uma elevação que
nos ficava fronteira, e nos proporcionou a vista próxima da fortaleza e da
aldeia: ambas ardiam.
Pelo interior e vizinhança vagavam ainda
paraguaios a pé, retardados pelo pesar do espólio que nos abandonavam e a ira
que os levava a tudo devastar. Outros, em maior número, e a cavalo,
retiravam-se desordenadamente. Pôs-se o nosso Guia a provocá-los com assobios e
apóstrofes de desprezo, ante as quais difícil nos foi conter o riso. Teriam
podido volver sobre nós estes robustos cavaleiros, e com as possantes montarias
e pesados sabres facilmente destroçar o nosso pequeno grupo, a meio montado e
mal armado, como nos achávamos. Mas tal ideia não nos ocorria e a Lopes ainda
menos.
Este intrépido velho quase sempre
nos precedera na carreira, a galope; e por mais esforços que fizéssemos, a
todo o instante redobrava de velocidade, pensando na mulher, duas vezes
agarrada e arrastada prisioneira para o Paraguai, em todos os seus, nos amigos
e companheiras de existência, com ela prisioneiros. Mil recordações de
atrocidades antigas e recentes lhe incutiam violenta sede de vingança.
Uma vez efetuada a passagem pelo
Corpo de Exército, o Forte, que apenas consistia em sólida estacada de madeira,
foi ocupado, assim como a Vila, por grande Destacamento. A linha de atiradores
do 20° Batalhão, formada à esquerda, pôs-se em movimento para ir atacar os
paraguaios imóveis.
Vimos, então, que haviam arvorado
alguma coisa branca. Não tardamos, porém, a perceber que se afastavam devagar,
tendo em mente, atrair-nos para algum mato, onde caro pagaríamos excesso de confiança
em sua lealdade. Soubemos tarde que tal lhes fora, com efeito, o plano.
Acreditavam precisar de algumas vítimas para legitimar uma retirada por demais
precipitada e que não podia deixar de atrair a cólera dos chefes fossem quais
fossem, aliás, as ordens deles recebidas.
Assim se passou 21.04.1867; os dias imediatos
consagramo-los ao repouso e exame da situação. Todo o Corpo de Exército
transpusera a fronteira e acampara ao sul da fortaleza, ali apoiando a ala
direita, ao passo que a esquerda se prolongava pela mata do Rio. Reinava,
então, no acampamento abundância de víveres frescos.
Deles tínhamos a maior
necessidade; e a nossa gente pôde gozar dos últimos bons momentos que a sorte
nos reservara. Parecia nosso Chefe mais sereno do que habitualmente,
mostrando-se até confiante.
Começou qualificar a coluna
expedicionária. Forças em operações no Norte do Paraguai e todos os seus
ofícios, como aliás, imitá-lo, todas as nossas cartas, destinadas a Mato
Grosso, Goiás e ao Rio de Janeiro [confiadas a Loureiro, que então de nós se
despediu] traziam no sobrescrito: Império do Brasil. No entanto, do alto do
morro da Bela Vista, viam-se de dia numerosos cavaleiros inimigos, de sentinela
ao pé de grandes buritis. À noite ousavam alguns acercar-se do acampamento
ainda mais.
Esta contínua vigilância tanto mais
nos incomodava, quanto também tinha em vista subtrair do nosso alcance o gado
da campina, sempre que as nossas guardas avançadas pareciam querer capturá-lo.
E a nossa inquietação a tal respeito crescia sempre. Haviam os refugiados
exagerado a facilidade do abastecimento nestas pastagens; nada víamos do que
nos fora anunciado; e até mesmo dois dias depois de nossa chegada a Bela Vista,
ordenando o Coronel um rodeio, protegido pelo 21° Batalhão, e levado a mais de
uma légua, daí se não auferiu resultado algum. Ficamos todos convencidos de que
nada havia a esperar, pelo menos agora, de tentativas neste gênero.
Se é exato que os paraguaios
haviam desaparecido ao avistarem os nossos, desde o dia imediato estavam de
novo no posto, ao pé da palmeira. Quase insultuosa chegava a ser tal
permanência. Poderíamos livrar-nos dela atirando algumas granadas, mas
pensamento diverso veio contrariar esta ideia, inclinando-se o espírito do
Comandante a outra ordem de sugestões.
Neste pressuposto fez partir, escoltado pelo
17° Batalhão, um oficial parlamentário, portador de proclamação escrita em
espanhol, português e francês, que se fincou, presa a uma bandeirola branca, a
légua e meia do acampamento. Assim se redigia:
– Aos
Paraguaios:
Fala-vos
a Expedição Brasileira como a amigos. Não é seu intuito levar a devastação, a
miséria e as lágrimas ao vosso território. A invasão do Norte como a do Sul de
vossa República significa apenas uma reação contra injusta agressão nacional.
Será conveniente que venha um de vossos oficiais entender-se conosco. Poderá
retirar-se, desde que assim entenda; e bastará que manifeste simplesmente tal
desejo.
Jura
o Comandante da Expedição pela honra, pela santa religião professada por ambos
os povos, que todas as garantias se oferecem ao homem generoso que em nós
confiar.
Disparamos
tiros de peça como inimigos, queremos agora nos entender como amigos
reconciliáveis. Apresentai-vos empunhando a bandeirola branca e sereis
recebidos com todas as atenções que os povos civilizados, embora em guerra,
mutuamente se devem.
A resposta, no dia seguinte encontrada, fora
traçada sobre um papel preso a uma varinha e era do teor seguinte:
‒ Ao
Comandante da Expedição brasileira: Estarão os oficiais das Forças paraguaias
sempre atentos a todas as comunicações que se lhes quiserem fazer; mas no atual
estado de guerra aberta entre o Império e a República, só de espada desembainhada
poderemos tratar convosco. Não nos atingem os vossos disparos de peça e quando
tivermos ordens de os obrigar a calar, há no Paraguai campo de sobra para as
manobras dos exércitos republicanos.
Era a letra de mão firme e corrente.
Apunha-se-lhe o selo da República: barrete frígio ([1])
por sobre um leão rampante ([2]).
As fórmulas empregadas em tal resposta atestavam certo grau de cultura
intelectual e boa educação. Mas logo veio o insulto. Recebeu o Comandante uma
folha de couro com os seguintes versos, mais grosseiros do que ingênuos:
– Avança,
crânio pelado! Mal-aventurado General que espontaneamente vem procurar o
túmulo.
A isto se ajuntava:
– Creem
os brasileiros estar em Concepción para as festas; os nossos ali os esperam com
baionetas e chumbo.
Bravatas sem alcance, nada tendo de sério.
Mas o que o era, e no mais alto grau, viam-no todos, vinha a ser a
impossibilidade de nos abastecermos. O 21° Batalhão mandado novamente, a
27.04.1867, para ajuntar e trazer gado, nada conseguira; e embora a ninguém
perdesse numas escaramuças de cavalaria, voltava com a triste certeza de que a
região estava para conosco nas disposições as mais negativas e hostis.
Assim, pois, tomou o Comandante a resolução
de manter, por algum tempo, na Bela Vista; e numa expedida pelo viajante
Joaquim Augusto, que determinou que a Nioaque lhe enviassem munições, a bagagem
dos soldados e o arquivo da coluna. Avisara aos oficiais que, a seu turno,
deviam mandar vir tudo quanto haveriam de precisar para uma assaz larga estada.
Mas a falta de gado tornava
insustentável a própria posição de Bela Vista. Começávamos a sentir a penúria
nas distribuições de víveres.
Era preciso sem mais demora procurar uma
solução ou avançar na esperança de bater o inimigo, que, à nossa frente, não
podia ter grandes contingentes, visto como a guerra ao Sul da República para
ali atraíra a maior parte das suas forças [e então, após algum feito feliz,
teriam as nossas patrulhas mais largo raio de ação sobre o gado errante nas
campinas]; a não ser assim convinha recuar para os distritos da fronteira,
menos desprovidos de recursos.
Esta alternativa, semelhante
opção, veio por completo arrancar a calma ao nosso Comandante. Tornou-se-lhe a
agitação do espírito visivelmente violenta. Pôs-se de novo a imaginar a calúnia
a abocanhá-lo em toda a Província de Mato Grosso, sobretudo na capital, e
assim, pois, como a refletir, em voz alta, deixava escapar exclamações que
debalde tentava sufocar:
‒ Por toda parte me desacreditam, dizia,
apregoam que até agora nunca tivemos encontro sério com o inimigo e apostam que
jamais o teremos.
Nesta perturbação e à falta de
dados exatos para a escolha de um alvitre, os refugiados, indiretamente
consultados, começaram, com maior insistência do que até então o haviam feito,
a falar de uma fazenda chamada Laguna, cerca de 4 léguas de Bela Vista,
pertencente aos domínios do Presidente da República e destinada à criação do
gado. Ali acharíamos, afiançavam, grandes rebanhos, posições firmes e base
para operações. Depois, como esta sugestão não parecesse desgostar ao Coronel,
vários oficiais que o cercavam, e a quem parecia consultar, deixaram
convencer-se.
– Por
que, exclamaram, não haveremos de ir até Concepción como nos desafiam. Viemos
parar tão longe para recuar. Contanto que possamos contar com um quarto de
ração, não há um único soldado que hesite em seguir os chefes, e com eles não
deseje tentar a fortuna do Brasil.
À testa dos mais ardentes via-se o Capitão
Pereira do Lago ([3]),
oficial tão ousado quanto positivo e obstinado. Dotado desta coragem que
facilmente se exalta, e jamais decai do nível a que se alçou, coube-lhe,
certamente, a maior responsabilidade nas nossas temeridades. Mas, também,
soube sempre, mais tarde, nos transes mais difíceis de nossa retirada, fazer
frente a todas as necessidades do momento, pela atividade, poderosa iniciativa
e perspicácia do descortino, grandes qualidades que lhe vinham realçar a
doçura, a singeleza e o bom gênio. (TAUNAY, 1874) (Continua...)
Bibliografia
TAUNAY, Alfredo de Escragnolle. A Retirada da Laguna: Episódio da Guerra do Paraguai – Brasil – Rio
de Janeiro, RJ – Tipografia Americana, 1874.
(*)
Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas,
Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira
(SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
[1] Barrete Frígio: espécie de touca que simboliza a liberdade, era
utilizada pelos moradores da antiga Frígia, atual Turquia. (Hiram Reis)
[2] Rampante: empinado sobre as patas traseiras, com a cabeça voltada
para o lado direito. (Hiram Reis)
[3] Pereira do
Lago: Antônio Florêncio Pereira do Lago. (Hiram Reis)
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H