Segunda-feira, 10 de abril de 2023 - 19h23
Bagé, 10.04.2023
IX
Ordem de Marcha.
Formatura do Corpo Expedicionário. O Mascate Italiano. O Major José Tomás
Gonçalves. Surpresa e Tomada do Acampamento Paraguaio da Laguna.
Acabara o Cel Camisão de determinar que marcharíamos
sobre a Laguna. A 30.04.1867, levantamos acampamento para estacar à margem do
Apa-Mí, Ribeirão que dista uma légua do Forte da Bela Vista. Pareciam os
Soldados ressentir-se da insuficiência do rancho. Corria a marcha silenciosa e
como ensombrecida pela tristeza. Para a animar ordenou-se que os cornetas de
todos os Corpos alternadamente tocassem; e a tropa gostou disto. Era como uma
provocação lançada aos paraguaios, que de longe viam seguir a coluna. Avançavam
os nossos diferentes Corpos em quatro Divisões distintas, formadas na previsão
dos ataques de cavalaria que, com efeito, deveríamos esperar. Em Conselho de
Guerra, anterior à nossa ocupação de Bela Vista, fizera o Coronel adotar uma
ordem de marcha apropriada à feição da zona atravessada e da campanha. Propusera,
ao mesmo tempo, duas disposições de defensiva para duas hipóteses: de planície
descampada, ou coberta de capões de mato, combinações de grande simplicidade
que, na prática, nos prestaram grandes serviços, obstando qualquer confusão ao
se travarem os combates.
Se, realmente, foram em geral as
cargas da cavalaria inimiga frouxas e inconstantes, é de se supor, contudo, que
o seu único fito não vinha a ser simplesmente avaliar-nos a resistência.
Poderia um primeiro momento de hesitação, ser sempre decisivo e trazer-nos o
completo destroço.
No caso, pois, em que
estivéssemos pelas proximidades de alguma moita, ou cerrado, ou ainda de algum
Ribeiro, devíamos convergir para este amparo natural, nele apoiar as carretas
de munições e de feridos, com as bagagens, e cobrir-lhes a testa com uma curva
formada pelas quatro divisões da coluna, levando cada uma a sua boca de fogo.
Em
campo raso e desabrigado formariam estes Corpos, sempre alternados com as peças, quadrado em volta do nosso material.
Em todo o caso deviam os
Comandantes ser avisados pelos Ajudantes-de-Campo ou por mensageiros, da
formatura escolhida, de acordo com as circunstâncias.
Primeiro de maio [01.05.1867]. Após uma noite
tranquila recomeçamos a marcha, e sem incidente, até a Fazenda da Laguna, a
localidade designada pelos nossos refugiados do Paraguai. Ali havia, então,
apenas uma choupana de palha que o inimigo, retirando-se, desdenhara incendiar.
Ao chegarmos vimos um dos nossos soldados dirigir-se ao nosso encontro trazendo
um papel que achara pregado, com um espinho, ao tronco de uma macaubeira;
variante da primeira ameaça em verso. Dirigida ao Comandante, assim dizia:
‒ Malfadado
o General que aqui vem procurar o túmulo; o Leão do Paraguai, altivo e sedento
de sangue, rugirá contra qualquer invasor.
Domina este planalto vasta extensão de
terras, como que convidava o Coronel a que ali acampasse; mas ainda desta vez
fizeram os refugiados preponderar a sua opinião que era a seguinte: sem mais
demora, nos dirigíssemos exatamente para o centro do estabelecimento, onde,
mais facilmente, poderia o gado ser rodeado e cercado. A vista disto
resolveu-se que a marcha prosseguiria, indo-se, sem que daí proviesse nenhum
dos resultados acenados, acampar a meia légua dali, num terreno triangular de
marga ([1])
nitrosa, entre dois Regatos que confluem antes de se lançar no Apa-Mí; e onde
os rebanhos, atraídos pelas propriedades salinas do solo, costumam geralmente
concentrar-se na estação das grandes cheias: lugar denominado Invernada da
Laguna.
Mostrou-nos o primeiro relance de
olhos que, tanto ali como em qualquer parte, o inimigo nos cerceava, sobretudo,
os víveres. Ao colocarmos guardas avançadas pudemos, a certa distância,
divisar um acampamento paraguaio dispondo de grande boiada e cavalhada
tangida para o Sul, enquanto a sua vanguarda nos vigiava os movimentos.
Que podíamos fazer sem cavalaria.
No entanto os dias 02 e 03.05.1867 se empregaram em diversas tentativas para a
obtenção de gado ou pelo menos para surpreender algumas sentinelas de quem se
pudesse obter informações sobre o estado do interior da República.
Malogrou-se-nos, contudo, o duplo intuito. Quanto à grande boiada que
avistáramos, desaparecera. Fizemos ainda algumas avançadas em busca dos
animais tresmalhados ([2])
em tais pastagens, mas ainda nos falhou este expediente precário.
No dia da chegada, tivera o 21°
Batalhão a sorte de apanhar apenas umas cinquenta cabeças, malgrado os esforços
dos cavaleiros inimigos, que nada pouparam para lhas retomar. Nenhuma outra
batida pelos arredores teve resultados; muito embora para tal serviço partissem
os demais Corpos, uns após outros. O que deste trabalho penoso lucramos foi que
levando nossos soldados sempre vantagens nas escaramuças parciais que daí
provieram, completou-se-lhes a educação militar no fogo, sem demasiados
sacrifícios. Não só ganharam confiança em si como nos chefes.
A 04.05.1867 vimos chegar ao
acampamento um mascate italiano, Miguel Arcanjo Saraco, que de Nioaque viera,
seguindo-nos as pegadas, com duas carretas de provisões, recurso para nós
insuficiente. Passara o Apa, atravessando as três e meia léguas que nos
separavam, acompanhado de um único camarada que o ajudava a conduzir os
veículos.
O maior terror o perseguira
durante todo o trajeto; mas a ele contrapusera o inato pendor para o cômico.
Por uma fantasia armada para se incutir coragem, rodeara-se, contava-nos, de
imaginários Batalhões a quem, de tempo em tempo, dava ordens em voz alta,
simulando manobras. Entre outras cenas deste gênero relatava que às dez horas
de uma noite trevosa, ao transpor o Apa-Mí mandara, com todo o fôlego dos
pulmões, cruzar baionetas, à vista de um capão de mato que lhe inspirava
receios.
No meio da alegria da chegada, e
das emoções de toda a natureza, não esqueceu, contudo, a notícia positiva,
afirmava, da aproximação de longa fila de comboios a que se adiantara, e rodava
pela estrada de Nioaque ao Apa, apesar de todos os perigos de uma linha de
perto de trinta léguas a percorrer em completo descampado.
Seja-nos relevada esta diversão
cômica no momento de encetarmos a narração de cenas sempre dolorosas. Traria
esta mesma noite sério motivo de inquietação.
Verificara-se a ausência de um
soldado do Batalhão de Voluntários. Este miserável, de índole viciosa e
semi-imbecil, havendo roubado a um dos camaradas, furtara-se ao castigo
desertando. E sobejas razões tínhamos de recear que o Comandante paraguaio por
ele viesse a ter informações, as mais completas, sobre a nossa falta de víveres
e a necessidade em que já nos achávamos de bater em retirada.
E efetivamente tivera o Coronel de dar neste
sentido ordens impostas pela necessidade. Não sabemos se ainda tentava engodar
a si próprio como procurava fazê-lo em relação a nós outros, ao qualificar o
movimento retrógrado de contramarcha sobre a fronteira do Apa, para ali
ocuparmos forte base antes de prosseguir na invasão do Paraguai.
Não houve, porém, quem se
iludisse. Principiava a Retirada. Pretendeu pelo menos disfarçá-la com algum
brilhante feito d’armas, pois punha empenho em demonstrar aos inimigos, aos do
Brasil e aos pessoais, que se retrocedíamos não era porque a tanto estivéssemos
forçados pela superioridade do adversário.
Conhecendo a excelente disposição
de nossa gente, resolveu apossar-se do acampamento paraguaio; e para a execução
deste assalto designou o 21° de Linha e o Corpo Desmontado de Caçadores.
Fixara-se a manhã de 05.05.1867 para esta ação; no entanto só se realizou um
pouco mais tarde. A causa de tal demora foi que, exatamente nesta mesma noite,
às nove horas, tremendo ciclone se desencadeou sobre o acampamento.
Torrentes de chuva transformaram
logo o solo em lamacento pantanal. Não são raros no Paraguai estes terríveis
fenômenos; jamais viramos, porém, coisa igual. Os relâmpagos que continuamente
se cruzavam, os raios que por todos os lados caíam; o vendaval a arrebatar
tendas e barracas, formaram um caos a cujo horror se uniam, de tempos a tempos,
os disparos de nossas sentinelas contra os diabólicos inimigos que, apesar de
tudo, não cessavam de aferroar-nos: interminável noite em que para nós tudo
representava a imagem da destruição.
A mercê de todas as cóleras da natureza, sem
abrigo nem refúgio, quase nus, escorrendo água, mergulhados até a cinta em
correntezas capazes de nos arrebatar, ainda precisavam os nossos soldados
preocupar-se em subtrair da umidade os cartuchos. Veio a manhã encontrar-nos em
tal situação. Dois dias mais tarde, contudo, antes dos primeiros albores, e
apesar de se haver renovado a tormenta daquela noite, puseram-se em movimento
os dois corpos designados.
Era o Comandante do
21° um Major em Comissão, de nome José Tomás Gonçalves, homem resoluto e audaz,
além de tudo popular, tanto pelo mérito como pela estima que facilmente
conquista uma fisionomia aberta e simpática. Haveremos de vê-lo à testa da
nossa Expedição, após a morte do Coronel Camisão, guiando-a ao termo desejado. Gozava
o Comandante do Corpo de Caçadores, Capitão Pedro José Rufino, de grande reputação
de bravura e atividade. Se alguma coisa devêssemos recear, era o excesso de
ardor por parte de ambos, a comprometer a empresa; e assim deitar a perder toda
a coluna. Foi, pelo contrário, a reunião de tais qualidades que facilitou o
êxito de uma combinação a que o Comandante, com razão, ligara o maior apreço.
Ignorávamos com que forças iam
eles medir-se. Fornece o Paraguai menos espiões ainda do que guias; e por
falta de cavalos não pudéramos efetuar reconhecimentos.
Nada víramos ou ouvíramos, ruído,
poeira ou fumaça, que nos permitisse presumir da chegada de reforços inimigos.
Nós lhes reconhecíamos, contudo, a habilidade em encobrir os movimentos
consideráveis de tropas. Assim, pois, deu o Coronel ordens para que os
oficiais, comandando a coluna de ataque, só entrassem em fogo quando o corpo
de voluntários estivesse em condições de os sustentar.
À hora aprazada, destacou este
Corpo com uma das peças de nosso parque em direção ao acampamento inimigo. Neste
meio tempo, após grande rodeio, e a travessia de uma légua de banhado, chegara
a tropa do Major Gonçalves às posições dos paraguaios. Era noite ainda, uma
hora antes do nascer do Sol; e tudo se fizera no maior silêncio.
Verificou-se, então, que a
bateria inimiga fora ali assestada para defender a passagem do fosso. Na
posição que lhe fora marcada, teria José Tomás Gonçalves, desde o romper da
aurora, de sofrer o fogo do inimigo.
Assim, pois, compreendendo que
não havia um momento a perder, mandou calar baionetas sobre os canhões;
investida favorecida pela negligência do inimigo. E, realmente, de toda a
cavalaria acumulada por trás do entrincheiramento não havia uma só patrulha
para a guarda das peças. A toque-toque ([3])
chegou nossa infantaria sobre os canhões, sem deixar tempo aos seus animais de
tiro de nô-los subtrair.
Forçou-se num ápice a entrada do
acampamento, mal defendido contra a impetuosidade desta surpresa, havendo o
Capitão José Rufino e os seus caçadores também entrado em ação.
Penetraram todos de roldão no
recinto, levando e derribando quanto pela frente encontravam, no acanhado
recinto em que oficiais e soldados, homens e cavalos, mutuamente se
embaraçavam, tratando muito menos de resistir do que de escapar para o campo. Tudo
o que não foi morto ou ferido, salvou-se pela fuga.
Estas boas notícias, trazidas por um
mensageiro, encontraram-nos no alto de um monte que domina a planície e para
onde se encaminhara o Comandante, com o seu Estado-Maior, a fim de poder fazer
entrar em fogo toda a sua gente, se assim se tornasse necessário.
Iluminados por uma
aurora magnífica percebíamos, aos nossos pés, os nossos soldados correndo pelo
campo, para o local do combate; mais longe, os índios Terenas e Guaicurus, que
depois de se haverem comportado nesta refrega como bravos auxiliares, carregavam
agora aos ombros os despojos dos cavalos tomados aos paraguaios.
Haviam os Comandantes deixado sua
gente tomar um pouco de fôlego e como não recebessem, aliás, a ordem de ocupar
as posições e vissem, ainda, que o Coronel, sabedor do triunfo, não deixava a
elevação para vir ao encontro, pensaram que teriam de evacuar o posto
recém-conquistado.
Começavam a mover-se em nossa
direção, quando os paraguaios, rápidos como cossacos, trouxeram a todo o galope
a sua artilharia, então sustentada por numerosa cavalaria.
Abriram o fogo até que de nosso
lado, entrando em linha todo o nosso Parque, com as boas pontarias feitas pelos
nossos oficiais, tivessem de calar-se, após alguns disparos.
O pequeno número de baixas que
tivemos, as perdas consideráveis dos paraguaios, sua inferioridade no combate
em relação a nós, demonstrada pelos fatos, restabeleceram a calma, incutindo ao
espírito do Coronel uma apreciação mais exata das circunstâncias e das coisas.
‒ Estes
selvagens, exclamou, que a tanta gente assassinaram e tanto assolaram esta
região, quando indefesa, não mais dirão que os tememos.
Sabem que dentro do próprio território,
podemos obrigá-los a pagar o mal que nos fizeram. Vamos à fronteira aguardar
algumas probabilidades de nos abastecer e gozar de pequeno repouso que me não
poderá ser exprobrado. (TAUNAY, 1874) (Continua...)
Bibliografia
TAUNAY, Alfredo de Escragnolle. A Retirada da Laguna: Episódio da Guerra do Paraguai – Brasil – Rio
de Janeiro, RJ – Tipografia Americana, 1874.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia
Brasileira (SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER
– RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H