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Hiram Reis e Silva

Terceira Margem – Parte DLXXII - Jornada Pantaneira A Retirada da Laguna –Parte X


Terceira Margem – Parte DLXXII - Jornada Pantaneira A Retirada da Laguna –Parte X - Gente de Opinião

Bagé, 12.04.2023

X

Retrocesso Sobre o Apa-Mí. Escaramuças e Combates com a Cavalaria Inimiga que Envolve Completamente a Coluna.

Íamos, apesar de tudo, encetar a Retirada. Sabia o inimigo que os movimentos de nossa coluna, fosse qual fosse o sentido tomado, tinham motivos a que era alheia a sua superioridade militar sobre nós.

O combate que nos entregara o seu acampamento abatera-lhe a presunção, elevando ao mesmo tempo a confiança de nossa gente, em si própria, à altura das provações que o futuro nos reservava, assim como das que já experimentáramos.

Era indispensável a vantagem obtida sobre os para­guaios para que a realidade de nossa situação se fizesse, sem murmuração, aceita dos nossos solda­dos, distraindo-os da imprevidência causadora de tão premente momento.

Fácil sem dúvida achar pretextos para a falta de víveres, tendo as informações dos refugiados podido iludir-nos acerca dos recursos da região, mas a insu­ficiência de munições, logo em começo de campa­nha, não podia deixar de constituir motivo de injus­tificável censura pelo fato de que tudo de antemão deverá estar calculado pelos nossos chefes, muito embora os exaltassem o entusiasmo, a paixão da glória e o amor da Pátria.

Quando, no dia seguinte, 08.05.1867, o Sol se levan­tou [era um dia dos mais serenos] já estávamos em ordem de marcha com as mulas carregadas, os bois de carro nas cangas, e tudo quanto restava de gado encostado ao flanco dos Batalhões, de modo a seguir todos os movimentos da coluna.

Às sete da manhã, o Corpo de Caçadores Desmon­tados, a quem competia o turno da vanguarda, abriu a marcha, tendo a seguir bagagens e carretas, circunstância que nos impediu de transpor facilmente um Riacho avolumado pelas chuvas dos dias antece­dentes. Caindo um de nossos canhões à água só o tiramos com grande dispêndio de tempo e esforços. Nesta ocasião os ímpetos de impaciência do Coronel Camisão ameaçaram reproduzir-se. Conseguiu, con­tudo, refreá-los; e desde aí jamais lhe notamos ves­tígios sequer da antiga agitação; e sim, unicamente, uma solicitude sempre devotada à salvação comum.

Avançávamos em boa ordem quando subitamente viva fuzilaria se fez ouvir: era a nossa vanguarda que contornando um capão de mato fora atacada por uma partida de infantaria, ali emboscada. Tinham algumas balas vindo cair por cima das fileiras num grupo de mulheres que marchavam tranquilamente ao lado dos soldados; tal algazarra provocaram que não sabíamos o que poderia ter sucedido.

Pouco durou este terrível tumulto; investindo resolu­tamente contra o inimigo, nossa gente o desalojou impelindo-o até o primeiro declive do planalto, onde estava a Fazenda da Laguna. Mas ali formaram-se os paraguaios novamente, resistindo algum tempo, achegando-se logo depois, passo a passo, dos cava­los; afinal, enquanto alguns, já montados, dispara­vam, a todo dar de rédeas, outros fingiam resistir para proteger os camaradas que fugiam a bom fugir, inteiramente derrotados.

Continuando a simular esta desordem aparente, pela qual procuravam separar-nos uns dos outros, o mais que pudessem, vimo-los, pouco a pouco, estacar com mais frequência, sempre mais numerosos, à medida que os reforços lhes chegavam.

Ao mesmo tempo o nosso Corpo de Caçadores, contra eles lançado, cada vez mais se isolava do resto da coluna. Redobrou, então, de intensidade a fuzilaria. O Capitão Pedro José Rufino, que à testa dos caçadores atravessara o Ribeirão, depois da bagagem, e se encontrava mais perto da vanguarda, embora ainda bastante longe, percebeu logo o estado de coisas. Depois de expedir um oficial para pedir socorros, deu voz de avançar; e ele próprio atirou-se, sem atentar a quem o acompanhava, ao ponto do mais renhido entrevero. Chegou no mo­mento em que os paraguaios, após todas as suas evoluções de cavalaria, simulando a fuga para depois ganharem terreno, subitamente voltaram, carregan­do furiosamente.

A princípio surpresos, e algo tanto perturbados, mas logo confiantes à voz de Rufino, formaram os nossos quadrados em torno dos oficiais, segundo a ordem recebida; e destes grupos, fora dos quais só havia morrer miseravelmente, sob o sabre e a lança, despejaram-se descargas acompanhadas de aclama­ções estrepitosas.

Enfim, cerrando fileiras, retomaram os caçadores o movimento para a frente no meio deste turbilhão de homens e cavalos, para se encostar aos capões de mato que, aqui e acolá, se viam pelo campo. Encar­niçada peleja onde, de ambos os lados, muitos mor­tos e feridos houve. O Imediato do Corpo de Caça­dores, Antônio da Cunha salvou-se graças à dedica­ção de um dos seus soldados. Deu-se em outro pon­to um episódio frequentemente relatado mais tarde.

Parecia o Cap Costa Pereira o alvo dileto dos assaltos de possante cavalariano; quis acabar com isto e, abrindo espaço, lançou-se fora do quadrado, movido de tal ímpeto que o adversário, intimidado, deu de rédeas a fugir, com grande aplauso dos nossos.

Neste ínterim chegara, a toque-toque, o reforço pedido por José Rufino; e isto precisamente quando lhe iam os cartuchos acabar. Trazia um canhão a Primeira Companhia que entrou em linha; e uma de suas granadas foi arrebentar no ponto em que mais se adensavam os assaltantes. Esta arma, introduzida inesperadamente na ação, produziu o costumeiro efeito. Espalhou imediatamente a desordem na tropa já abalada pela aparição do socorro; e toda a cavala­ria paraguaia desapareceu, deixando um segundo acampamento em nosso poder. Custou-nos isto ca­torze mortos e muitos feridos.

Entre estes últimos não podemos esquecer um jo­vem soldado, Laurindo José Ferreira, que, cercado por quatro inimigos e apenas tendo o fuzil para se defender, todo golpeado de abraços, com a mão es­querda atingida, braço direito profundamente reta­lhado em diversos lugares e o ombro quase arranca­do por um lançado, assim mesmo se não rendeu. Só muito mais tarde veio a restabelecer-se de tantas feridas; a firmeza na ambulância em nada lhe des­mentira a bravura ante o inimigo.

Fora o pessoal do nosso serviço médico muito perse­guido pelas febres palustres de Miranda. Haviam-nos deixado vários de seus membros; além de tudo as nossas caixas de cirurgia e de farmácia tinham-se todas perdido ou deteriorado, devido aos acidentes da viagem. Puderam, contudo, os nossos feridos receber ainda todos os socorros de que precisavam, graças aos esforços da engenhosa humanidade de que foram alvos.

Superintendera o Comandante, sempre, este serviço, e tivéramos a felicidade de conservar dois hábeis clínicos, os doutores Quintana e Gesteira ([1]).

Pertencia este último ao Corpo empenhado no embate de 06.05.1867, e, sob as balas, dera provas de dedicação e sangue-frio, como verdadeiro discí­pulo do grande Larrey ([2]). Os cadáveres paraguaios não arrastados pelo laço dos compatriotas foram, todos, achados mutilados e de modo hediondo. A propósito de tais profanações fez o Coronel violentas exprobrações aos índios, acenando-lhes até com a pena capital, se acaso, daí em diante, desrespei­tassem os mortos.

Tais a sua indignação e o pavor aos selvagens incutido, que até o fim da campanha, ficamos livres de semelhante espetáculo, e isto quando já o nosso Chefe deixara de existir. Juntando o exemplo às pa­lavras fez o Coronel Camisão inumar, sem exceção, todos os corpos achados no campo de batalha, com o zelo da escrupulosa piedade que tanto era da sua índole.

Duas horas se consagraram à triste contingência de entregar os nossos infelizes patrícios à terra inimiga. Que tristeza vê-los assim desaparecer; e que choque não deveria ter sentido um de nossos oficiais ao fazer questão de sepultar, ele próprio, o irmão mais moço, Bueno, voluntário paulista! Cumprido este dever, recomeçamos a marcha, desta vez seguindo a ordem recentemente adotada.

Dera-se uma peça ao Corpo de Caçadores, que ainda formava a vanguarda; o 17° Batalhão, dos Voluntá­rios de Minas, que também tinha um canhão, compu­nha a retaguarda. No centro, o 20° Batalhão e o 21°, cada qual com a sua boca de fogo, escoltavam, à direita e à esquerda, a bagagem flanqueada de duas filas de carretas puxadas por bois.

O conjunto desta massa movediça parecia um grande quadrado que, em cada face, tinha um menor diante de si; judiciosa formatura para nos proteger das cargas de cavalaria; porquanto podiam as quatro frentes serem varridas pelo fogo cruzado de nossa infantaria. Enfim, para maior segurança, linhas de atiradores circulavam em torno do Corpo de Exército.

Desde este primeiro dia verificou-se quão vantajosa era tal disposição porquanto estava a cavalaria inimiga, por toda a parte, em torno de nós: à frente, sobre os flancos; atrás, ora longe, ora quase a nos tocar. Nossos soldados, marchando sempre, afastavam-na por meio de descargas, frequentes, e tanto mais profícuas quanto ao resultado quanto mais se aproxi­mavam os paraguaios.

Algumas de suas balas também atravessavam as nossas fileiras, mas sem grande dano pela incerteza do tiro disparado a galope. Entretanto, acabaram as balas de artilharia por visitar-nos. Atravessávamos, então, o terreno lamacento, fundo, de planície cortada de estreitas esplanadas, paralelos umas às outras, e a peça de 3 paraguaios, sucessivamente assestada nestes pontos, abriu fogo contra nós; mas, ou porque a sorte neste particular ao menos nos favorecesse, ou graças à inexperiência dos artilheiros inimigos, iam-lhe os projéteis enterrar-se na lama que nos rodeava; ou, então, os menos inofensivos caíam no meio do nosso gado com mais estrépito do que prejuízo.

Os nossos soldados, cuja primeira impressão fora bastante viva, não tardaram a rir do que viam e até as próprias mulheres acharam nisto assunto de mofa comparando estas balas, que faziam repuxar a água, aos limões-de-cheiro do velho carnaval brasileiro.

Demais tínhamos boa réplica à “palavra da Cruz, Napoleão Freire e Nobre de Gusmão. Tal porfia so­bremodo interessava aos nossos soldados, incutindo-lhes ardor novo cada tiro que atribuíam ao seu arti­lheiro predileto.

Assim caminhamos dia todo num caos de fumaça e poeira, com grande estrépito, e no meio das aclama­ções dos nossos, de gritos agudos e ferozes do inimi­go, mugidos do gado, explosões da pólvora, desor­dem dos homens e das coisas.

Declinava o Sol quando percebemos distintamente o Morro da Margarida, o mesmo que já de outro ponto observáramos do Forte de Bela Vista, marco de reconhecimento que desta vez nos brilhou aos olhos com um raio de esperança. Fizéramos duas e meia léguas sob o fogo contínuo e cansativo, muito embo­ra pouco mortífero.

A mata da margem do Apa-Mí nós a escolhêramos para o pouso daquela noite. Íamos atingi-la quando verificamos que a bateria montada dos paraguaios desde muito se adiantara pela esquerda, achando-se agora postada em frente à nossa vanguarda.

Varriam suas balas a margem onde íamos ficar encurralados, pois havia pouco fora destruída a ponte ali existente.

Era tempo que os nossos canhões, penosamente arrastados até o alto da elevação aposta à que o inimigo ocupava, começassem a fazer-se ouvir. Não tardaram a obrigar que os paraguaios, cuja peça de 3 foi até desmontada, calassem o fogo.

Este combate, que pôs termo ás refregas do dia, não durou menos de uma hora. Não foram consideráveis as nossas perdas, um morto apenas e alguns feridos. Podíamos, pois, considerar como vantagem as pro­vas que de sua firmeza, a proteger a bateria, nos dera o 20° Batalhão.

Pareceu-nos o fogo paraguaio melhor dirigido do que até então, mas nossa gente não arredou pé. Eram, entretanto, simples recrutas esgotados, saídos de Goiás, verdade é que comandados por valente oficial, o Capitão Ferreira de Paiva. Ficamos sabendo o que podíamos esperar da coragem e da abnegação de todos para o resto da retirada. Neste ínterim, os membros da comissão de engenheiros estabeleciam a ponte. Trabalharam rapidamente, sob as vistas do nosso Comandante. Cumprimentou-os pelo serviço e foi o primeiro a passar.

Todo o resto da coluna o acompanhou sem maior detença e veio acampar à margem direita do Apa-Mí. Mas já patrulhas de cavalaria paraguaia, que haviam atravessado o Rio, a jusante de nós, estavam a observar-nos. Caíra a noite, profundamente escura.

Estávamos arruinados de cansaço, a vista escura e o espírito abalado por tantas e tão variadas impressões cujas imagens acabavam por se confundir. Não hou­ve quem armasse tenda ou barraca.

Dormimos em grupos, formados quase ao acaso, de três, quatro ou mais, conchegados uns aos outros, cobertos em comum por capotes, ponchos, mantas, com quanto encontráramos; cada qual com o fuzil, o revólver ou a espada ao alcance da mão e o chapéu desabado sobre os olhos, para se resguardar do orvalho, tão copioso que tudo encharcava. (TAUNAY, 1874) (Continua...)

 

Bibliografia

 

TAUNAY, Alfredo de Escragnolle. A Retirada da Laguna: Episódio da Guerra do Paraguai – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Tipografia Americana, 1874.


 

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

 

Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)

Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);

Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);

Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);

Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)

Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);

Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);

Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);

Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)

Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);

Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)

Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).

Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).

E-mail: hiramrsilva@gmail.com.



[1]    Cândido Manoel de Oliveira Quintana & Manoel de Aragão Gesteira. (Hiram Reis)

[2]    Dominique Jean Larrey: General médico francês que contribuiu decisi­vamente para a melhoria dos serviço médicos de urgência. Foi encar­regado, por Napoleão, de prestar atendimento imediato aos militares feridos no campo de batalha. Larrey elaborou, também, um modelo de ambulância em condições de prestar atendimento imediato e célere. (Hiram Reis)

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