Quarta-feira, 12 de abril de 2023 - 06h05
Bagé, 12.04.2023
X
Retrocesso Sobre o
Apa-Mí. Escaramuças e Combates com a Cavalaria Inimiga que Envolve
Completamente a Coluna.
Íamos, apesar de tudo, encetar a
Retirada. Sabia o inimigo que os movimentos de nossa coluna, fosse qual fosse o
sentido tomado, tinham motivos a que era alheia a sua superioridade militar
sobre nós.
O combate que nos entregara o seu
acampamento abatera-lhe a presunção, elevando ao mesmo tempo a confiança de
nossa gente, em si própria, à altura das provações que o futuro nos reservava,
assim como das que já experimentáramos.
Era indispensável a vantagem
obtida sobre os paraguaios para que a realidade de nossa situação se fizesse,
sem murmuração, aceita dos nossos soldados, distraindo-os da imprevidência
causadora de tão premente momento.
Fácil sem dúvida achar pretextos
para a falta de víveres, tendo as informações dos refugiados podido iludir-nos
acerca dos recursos da região, mas a insuficiência de munições, logo em começo
de campanha, não podia deixar de constituir motivo de injustificável censura
pelo fato de que tudo de antemão deverá estar calculado pelos nossos chefes,
muito embora os exaltassem o entusiasmo, a paixão da glória e o amor da Pátria.
Quando, no dia seguinte, 08.05.1867, o Sol se
levantou [era um dia dos mais serenos] já estávamos em ordem de marcha com as
mulas carregadas, os bois de carro nas cangas, e tudo quanto restava de gado encostado
ao flanco dos Batalhões, de modo a seguir todos os movimentos da coluna.
Às sete da manhã, o
Corpo de Caçadores Desmontados, a quem competia o turno da vanguarda, abriu a
marcha, tendo a seguir bagagens e carretas, circunstância que nos impediu de
transpor facilmente um Riacho avolumado pelas chuvas dos dias antecedentes.
Caindo um de nossos canhões à água só o tiramos com grande dispêndio de tempo e
esforços. Nesta ocasião os ímpetos de impaciência do Coronel Camisão ameaçaram
reproduzir-se. Conseguiu, contudo, refreá-los; e desde aí jamais lhe notamos
vestígios sequer da antiga agitação; e sim, unicamente, uma solicitude sempre
devotada à salvação comum.
Avançávamos em boa ordem quando
subitamente viva fuzilaria se fez ouvir: era a nossa vanguarda que contornando
um capão de mato fora atacada por uma partida de infantaria, ali emboscada.
Tinham algumas balas vindo cair por cima das fileiras num grupo de mulheres que
marchavam tranquilamente ao lado dos soldados; tal algazarra provocaram que não
sabíamos o que poderia ter sucedido.
Pouco durou este terrível
tumulto; investindo resolutamente contra o inimigo, nossa gente o desalojou
impelindo-o até o primeiro declive do planalto, onde estava a Fazenda da
Laguna. Mas ali formaram-se os paraguaios novamente, resistindo algum tempo,
achegando-se logo depois, passo a passo, dos cavalos; afinal, enquanto alguns,
já montados, disparavam, a todo dar de rédeas, outros fingiam resistir para
proteger os camaradas que fugiam a bom fugir, inteiramente derrotados.
Continuando a simular esta desordem aparente,
pela qual procuravam separar-nos uns dos outros, o mais que pudessem, vimo-los,
pouco a pouco, estacar com mais frequência, sempre mais numerosos, à medida que
os reforços lhes chegavam.
Ao mesmo tempo o nosso Corpo de
Caçadores, contra eles lançado, cada vez mais se isolava do resto da coluna.
Redobrou, então, de intensidade a fuzilaria. O Capitão Pedro José Rufino, que à
testa dos caçadores atravessara o Ribeirão, depois da bagagem, e se encontrava
mais perto da vanguarda, embora ainda bastante longe, percebeu logo o estado de
coisas. Depois de expedir um oficial para pedir socorros, deu voz de avançar; e
ele próprio atirou-se, sem atentar a quem o acompanhava, ao ponto do mais
renhido entrevero. Chegou no momento em que os paraguaios, após todas as suas
evoluções de cavalaria, simulando a fuga para depois ganharem terreno,
subitamente voltaram, carregando furiosamente.
A princípio surpresos, e algo
tanto perturbados, mas logo confiantes à voz de Rufino, formaram os nossos
quadrados em torno dos oficiais, segundo a ordem recebida; e destes grupos,
fora dos quais só havia morrer miseravelmente, sob o sabre e a lança,
despejaram-se descargas acompanhadas de aclamações estrepitosas.
Enfim, cerrando fileiras,
retomaram os caçadores o movimento para a frente no meio deste turbilhão de
homens e cavalos, para se encostar aos capões de mato que, aqui e acolá, se
viam pelo campo. Encarniçada peleja onde, de ambos os lados, muitos mortos e
feridos houve. O Imediato do Corpo de Caçadores, Antônio da Cunha salvou-se
graças à dedicação de um dos seus soldados. Deu-se em outro ponto um episódio
frequentemente relatado mais tarde.
Parecia o Cap Costa Pereira o alvo dileto dos
assaltos de possante cavalariano; quis acabar com isto e, abrindo espaço,
lançou-se fora do quadrado, movido de tal ímpeto que o adversário, intimidado,
deu de rédeas a fugir, com grande aplauso dos nossos.
Neste ínterim chegara, a
toque-toque, o reforço pedido por José Rufino; e isto precisamente quando lhe
iam os cartuchos acabar. Trazia um canhão a Primeira Companhia que entrou em
linha; e uma de suas granadas foi arrebentar no ponto em que mais se adensavam
os assaltantes. Esta arma, introduzida inesperadamente na ação, produziu o
costumeiro efeito. Espalhou imediatamente a desordem na tropa já abalada pela
aparição do socorro; e toda a cavalaria paraguaia desapareceu, deixando um
segundo acampamento em nosso poder. Custou-nos isto catorze mortos e muitos
feridos.
Entre estes últimos não podemos
esquecer um jovem soldado, Laurindo José Ferreira, que, cercado por quatro
inimigos e apenas tendo o fuzil para se defender, todo golpeado de abraços, com
a mão esquerda atingida, braço direito profundamente retalhado em diversos
lugares e o ombro quase arrancado por um lançado, assim mesmo se não rendeu.
Só muito mais tarde veio a restabelecer-se de tantas feridas; a firmeza na
ambulância em nada lhe desmentira a bravura ante o inimigo.
Fora o pessoal do nosso serviço
médico muito perseguido pelas febres palustres de Miranda. Haviam-nos deixado
vários de seus membros; além de tudo as nossas caixas de cirurgia e de farmácia
tinham-se todas perdido ou deteriorado, devido aos acidentes da viagem.
Puderam, contudo, os nossos feridos receber ainda todos os socorros de que
precisavam, graças aos esforços da engenhosa humanidade de que foram alvos.
Superintendera o Comandante,
sempre, este serviço, e tivéramos a felicidade de conservar dois hábeis
clínicos, os doutores Quintana e Gesteira ([1]).
Pertencia este último ao Corpo empenhado no
embate de 06.05.1867, e, sob as balas, dera provas de dedicação e sangue-frio,
como verdadeiro discípulo do grande Larrey ([2]).
Os cadáveres paraguaios não arrastados pelo laço dos compatriotas foram, todos,
achados mutilados e de modo hediondo. A propósito de tais profanações fez o
Coronel violentas exprobrações aos índios, acenando-lhes até com a pena
capital, se acaso, daí em diante, desrespeitassem os mortos.
Tais a sua indignação e o pavor aos selvagens
incutido, que até o fim da campanha, ficamos livres de semelhante espetáculo, e
isto quando já o nosso Chefe deixara de existir. Juntando o exemplo às palavras
fez o Coronel Camisão inumar, sem exceção, todos os corpos achados no campo de
batalha, com o zelo da escrupulosa piedade que tanto era da sua índole.
Duas horas se consagraram à triste
contingência de entregar os nossos infelizes patrícios à terra inimiga. Que
tristeza vê-los assim desaparecer; e que choque não deveria ter sentido um de
nossos oficiais ao fazer questão de sepultar, ele próprio, o irmão mais moço,
Bueno, voluntário paulista! Cumprido este dever, recomeçamos a marcha, desta
vez seguindo a ordem recentemente adotada.
Dera-se uma peça ao Corpo de Caçadores, que
ainda formava a vanguarda; o 17° Batalhão, dos Voluntários de Minas, que
também tinha um canhão, compunha a retaguarda. No centro, o 20° Batalhão e o
21°, cada qual com a sua boca de fogo, escoltavam, à direita e à esquerda, a
bagagem flanqueada de duas filas de carretas puxadas por bois.
O conjunto desta massa movediça parecia um
grande quadrado que, em cada face, tinha um menor diante de si; judiciosa
formatura para nos proteger das cargas de cavalaria; porquanto podiam as quatro
frentes serem varridas pelo fogo cruzado de nossa infantaria. Enfim, para maior
segurança, linhas de atiradores circulavam em torno do Corpo de Exército.
Desde este primeiro dia verificou-se quão
vantajosa era tal disposição porquanto estava a cavalaria inimiga, por toda a
parte, em torno de nós: à frente, sobre os flancos; atrás, ora longe, ora quase
a nos tocar. Nossos soldados, marchando sempre, afastavam-na por meio de
descargas, frequentes, e tanto mais profícuas quanto ao resultado quanto mais
se aproximavam os paraguaios.
Algumas de suas balas também atravessavam as
nossas fileiras, mas sem grande dano pela incerteza do tiro disparado a galope.
Entretanto, acabaram as balas de artilharia por visitar-nos. Atravessávamos, então,
o terreno lamacento, fundo, de planície cortada de estreitas esplanadas,
paralelos umas às outras, e a peça de 3 paraguaios, sucessivamente assestada
nestes pontos, abriu fogo contra nós; mas, ou porque a sorte neste particular
ao menos nos favorecesse, ou graças à inexperiência dos artilheiros inimigos,
iam-lhe os projéteis enterrar-se na lama que nos rodeava; ou, então, os menos
inofensivos caíam no meio do nosso gado com mais estrépito do que prejuízo.
Os nossos soldados, cuja primeira
impressão fora bastante viva, não tardaram a rir do que viam e até as próprias
mulheres acharam nisto assunto de mofa comparando estas balas, que faziam
repuxar a água, aos limões-de-cheiro do velho carnaval brasileiro.
Demais tínhamos boa réplica à “palavra da Cruz, Napoleão Freire e Nobre
de Gusmão. Tal porfia sobremodo interessava aos nossos soldados,
incutindo-lhes ardor novo cada tiro que atribuíam ao seu artilheiro predileto.
Assim caminhamos dia todo num
caos de fumaça e poeira, com grande estrépito, e no meio das aclamações dos
nossos, de gritos agudos e ferozes do inimigo, mugidos do gado, explosões da
pólvora, desordem dos homens e das coisas.
Declinava o Sol
quando percebemos distintamente o Morro da Margarida, o mesmo que já de outro
ponto observáramos do Forte de Bela Vista, marco de reconhecimento que desta
vez nos brilhou aos olhos com um raio de esperança. Fizéramos duas e meia
léguas sob o fogo contínuo e cansativo, muito embora pouco mortífero.
A mata da margem do Apa-Mí nós a
escolhêramos para o pouso daquela noite. Íamos atingi-la quando verificamos que
a bateria montada dos paraguaios desde muito se adiantara pela esquerda,
achando-se agora postada em frente à nossa vanguarda.
Varriam suas balas a margem onde
íamos ficar encurralados, pois havia pouco fora destruída a ponte ali
existente.
Era tempo que os nossos canhões, penosamente
arrastados até o alto da elevação aposta à que o inimigo ocupava, começassem a
fazer-se ouvir. Não tardaram a obrigar que os paraguaios, cuja peça de 3 foi
até desmontada, calassem o fogo.
Este combate, que pôs termo ás refregas do
dia, não durou menos de uma hora. Não foram consideráveis as nossas perdas, um
morto apenas e alguns feridos. Podíamos, pois, considerar como vantagem as provas
que de sua firmeza, a proteger a bateria, nos dera o 20° Batalhão.
Pareceu-nos o fogo paraguaio melhor dirigido
do que até então, mas nossa gente não arredou pé. Eram, entretanto, simples
recrutas esgotados, saídos de Goiás, verdade é que comandados por valente
oficial, o Capitão Ferreira de Paiva. Ficamos sabendo o que podíamos esperar da
coragem e da abnegação de todos para o resto da retirada. Neste ínterim, os
membros da comissão de engenheiros estabeleciam a ponte. Trabalharam rapidamente,
sob as vistas do nosso Comandante. Cumprimentou-os pelo serviço e foi o
primeiro a passar.
Todo o resto da coluna o
acompanhou sem maior detença e veio acampar à margem direita do Apa-Mí. Mas já
patrulhas de cavalaria paraguaia, que haviam atravessado o Rio, a jusante de
nós, estavam a observar-nos. Caíra a noite, profundamente escura.
Estávamos arruinados de cansaço,
a vista escura e o espírito abalado por tantas e tão variadas impressões cujas
imagens acabavam por se confundir. Não houve quem armasse tenda ou barraca.
Dormimos em grupos, formados
quase ao acaso, de três, quatro ou mais, conchegados uns aos outros, cobertos
em comum por capotes, ponchos, mantas, com quanto encontráramos; cada qual com
o fuzil, o revólver ou a espada ao alcance da mão e o chapéu desabado sobre os
olhos, para se resguardar do orvalho, tão copioso que tudo encharcava. (TAUNAY,
1874) (Continua...)
Bibliografia
TAUNAY, Alfredo de Escragnolle. A Retirada da Laguna: Episódio da Guerra do Paraguai – Brasil – Rio
de Janeiro, RJ – Tipografia Americana, 1874.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia
Brasileira (SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
[1] Cândido Manoel
de Oliveira Quintana & Manoel de Aragão Gesteira. (Hiram Reis)
[2] Dominique Jean Larrey: General médico francês que contribuiu
decisivamente para a melhoria dos serviço médicos de urgência. Foi encarregado,
por Napoleão, de prestar atendimento imediato aos militares feridos no campo de
batalha. Larrey elaborou, também, um modelo de ambulância em condições de
prestar atendimento imediato e célere. (Hiram Reis)
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H