Sexta-feira, 14 de abril de 2023 - 06h05
Bagé, 14.04.2023
XI
Rebate Falso.
Últimas Ilusões.
O Tenente Vitor Batista. Passagem do Apa.
Volta ao Território Brasileiro.
Algumas horas mais tarde, cerca
de meia-noite, ouvimos horrível fragor a que dominava um grito único: Cavalaria
paraguaia! Abriram fogo as sentinelas avançadas. Tornara-se o acampamento
teatro de geral balbúrdia: tiros rasgavam a treva, deixando entrever formas
fantásticas, ora de homens a empunhar o revólver ou o sabre, ora de animais,
estes ainda mais perigosos, procurando por toda a parte como escapar, e numa
excitação furiosa, ao passo que os seus guardas, não sabendo como os conter,
enchiam os ares de imprecações.
Alucinante terror se apoderara do
gado no sítio em que estava preso. Averiguada a causa de tal pânico pusemo-nos
todos a rir, tornando-se universal esta hilaridade. Está a vida da guerra cheia
dos mais inesperados contrastes. O extremo frescor das noites de inverno, na
América do sul, mesmo entre os trópicos, obrigou-nos logo a voltar aos nossos
improvisados abrigos onde as exigências do sono reconquistaram todos os
direitos durante as horas decorridas até o amanhecer. Aos primeiros albores
pusemo-nos novamente a marchar, expostos ao fogo da artilharia inimiga, mas sem
que nos detivéssemos em lhe responder.
Levavam os nossos atiradores de vencida tudo
o que diante deles achavam e não perdiam tiro. Haviam alguns cavaleiros
inimigos caído, desde o começo da fuzilaria e seus cadáveres ficaram estirados,
abandonados na estrada, não tendo seus camaradas tido tempo de os levantar e
arrastar na carreira.
Reconhecendo os nossos que um
destes corpos era o de certo desertor brasileiro, evadido de Nioaque, muito
antes da guerra, não foi possível, apesar de todos os esforços dos oficiais,
subtrair os despojos deste miserável ao furor dos soldados. À medida que
passavam o golpeavam com a espada ou a baioneta.
Encaminhávamo-nos para as ruínas
da Bela Vista. Abria-se diante de nós largo vale, quase plano, tendo à direita
um renque de colinas de suave declive. Teria o inimigo podido aproveitar-se,
contra nós, desta disposição do terreno; mas chegamos a tempo de utilizá-la,
ocupando a primeira destas elevações.
Dali o nosso fogo manteve os
paraguaios a distância, enquanto marchávamos, e nossas peças iam sucessivamente
ocupar os pontos que melhor podiam cobrir-nos. Esta manobra, pela precisão com
que foi diversas vezes repetida, levou-nos sãos e salvos até um último cabeço
que domina o Apa e Bela Vista. Ali nos estabelecemos, naquela manhã de
09.05.1867.
Lá ainda ocupávamos a fronteira
do Paraguai, embora batidos pelo pungente pesar de a deixar. Tão recentemente a
havíamos atravessado, certos de realizar importante diversão, talvez até
indispensável à causa da pátria! Nós nos sentíamos como corridos de vergonha,
vendo nossas esperanças de glória tão cedo desvanecidas. Escapara-nos a presa e
não queríamos ainda aceitar a absoluta necessidade de a abandonar.
Assim, pois, iria confinar-se à
região dos sonhos a visão daquele território magnífico, aberto diante de nós,
sob tão belo firmamento? Dali nos era, pois, indispensável sair, exatamente
quando prováramos superioridade em armas? Faltavam-nos, não havia dúvida, as
munições; mas de um momento para outro não poderíamos recebê-las? Já não
tinham, desde muito, sido pedidas a Nioaque? Acaso cheguem, explicava um
oficial aos seus camaradas, o Coronel, que ainda não se conformou com o
pronunciar a palavra retirada, ordenará logo nova ofensiva. E assim
devaneávamos sem ligar maior importância a todos estes pensamentos.
Um homem, no entanto, avidamente
acompanhara tais conversas: era o nosso infeliz guia. Absorto, sombrio, sem uma
só palavra para quem quer que fosse, desde que retrogradávamos reconcentrava-se
na contemplação dos sofrimentos da família, reduzida ao cativeiro, exposta aos
tormentos, já os havendo sofrido talvez: mulher, filhos, parentes, amigos.
Assumira, a seu ver, a marcha
para a frente, o aspecto de um compromisso que, uma vez tomado sob a invocação
do patriotismo e da humanidade, era definitivo, embora a todos nós custasse a
vida! Agora, que se falava de penetrar novamente no Paraguai, tornara-se outra
vez entusiástico e expansivo. Do comandante, abroquelado no mutismo, corria aos
oficiais e destes aos soldados, garantindo se encarregava de abastecer o corpo
de Exército. Se nos entregássemos à sua experiência, haveria de conduzir-nos
por caminhos que só ele conhecia, a lugar seguro onde o esperaríamos. Enganavam-se
os que acreditavam na exaustão de recursos de sua fazenda. Ainda possuía
reservas e tudo sacrificaria, como já tudo sacrificara. Nós lhe admirávamos a
alma generosa: mas eram-lhe evidentes as ilusões e exageros.
Destruindo-se por si mesmas
contribuíam para nos abrir os olhos à verdade. Se ainda algumas dúvidas nos
restavam, veríamos demonstrada a nossa absoluta impotência pelas notícias
trazidas por um dos nossos oficiais, o Tenente Vitor Batista, que, da Colônia
de Miranda, escoltado por doze soldados, viera ao nosso encontro. Não se
avistara com os paraguaios; mas quanto ao objeto de nossa principal
preocupação, ou por assim dizer, o único, contou-nos que nenhuma remessa de
munições partira de Nioaque. Um bom número de carretas de comércio, carregadas
de mercadorias, havia realmente atingido a Machorra.
Ainda estavam algumas paradas à
nossa espera; mas as outras, a maioria, ao saber de nossas refregas com o
inimigo, tinham tornado atrás, certas de que não nos encontrariam mais.
A Machorra, como já dissemos,
está situada a dez quilômetros de Bela Vista, em território brasileiro; e
podíamos supor que os inimigos, preocupados conosco, e com o que poderíamos
fazer, ainda se não haviam dirigido para ali. Interromper a nossa marcha, para
atrasar a deles, ficar além do Apa e fazer, entretanto, com que os mercadores
tomassem o mais depressa possível a estrada de Nioaque, tais foram, pelo que
pudemos julgar, as ideias do Coronel. Por elas se apaixonou. Considerava
desonra ver apreender tão rica presa pelo inimigo, que indo sempre à nossa
frente, haveria de atingi-la antes de nós e não deixaria de arvorá-la em
troféu. Assim, pois, ordenou aos diferentes corpos que só a 11.05.1867, dois
dias mais tarde, levantassem acampamento.
Debalde apressaram-se vários oficiais em lhe
fazer ver que, para a execução de uma retirada, já comprometida pela escassez
de víveres que nos ameaçava, havia a maior urgência em atravessar o Apa, antes
que os inimigos tivessem conseguido torná-lo para nós intransponível; a não ser
mediante sacrifícios de todo o gênero, e sobretudo o de uma delonga que
infalivelmente nos perderia.
Mostrou-se irredutível,
defendendo-se numa única alegação: exigia a dignidade do Corpo de Exército a
demonstração de que a retirada se efetuava tanto sem precipitação como sem
temor. Restava-lhe mandar levar à Machorra a ordem para que os nossos mascates
regressassem a Nioaque; e foi então que se lhe transmutou a funesta obstinação
em verdadeira ideia fixa. Chamando o Tenente Vitor Batista, o portador das
notícias recentes, dele indagou qual seria o melhor meio de entrar em
comunicação com o comboio e quem poderia executar a Comissão.
Depois, como este valente oficial
não hesitasse em oferecer-se, aceitou-lhe a proposta, sem nada querer ouvir das
observações que me foram feitas acerca dos inconvenientes de se arriscar assim
a perder um oficial, de patente já distinta, tão dedicado, e cuja perda podia
trazer o desânimo à coluna. Continuou inabalável, a tudo respondendo com o
dizer que o filho de Lopes lhe serviria de guia, tomando atalhos que conhecia e
impraticáveis à cavalaria.
Tal ordem se executou. Dois dos
nossos refugiados do Paraguai, os irmãos Hipólito e Manuel Ferreira, arrastados
pela confiança no filho de Lopes juntaram-se ao Tenente Vitor. Partiram os
quatro, deixando-nos cheios de apreensões as mais intensas. Mal decorrera meia
hora, ouvimos distintamente, ao longe, tiros de fuzil. Estremecemos, fitavam os
nossos olhos o ponto onde os ausentes haviam desaparecido. Vimos, afinal, o
filho de Lopes sair só, da mata do Sul, correndo para nós, seminu e todo
ensanguentado.
Apenas cobrou alento, contou o que se
passara. Os paraguaios os haviam cercado, matando o Tenente e os irmãos
Ferreira. Ele próprio conseguira escapar graças a um espinhal denso onde se
lançara e donde, por milagre, pudera atingir o Rio. A todos consternou este
fatal acontecimento. Quanto não deve ter sofrido o infeliz Coronel Camisão com
o seu gênio tão acessível às angústias do arrependimento e do remorso! Dominou,
contudo, a comoção: não disse palavra, e não tardou em ordenar aos engenheiros
que, sobre o Apa, construíssem uma ponte para a passagem das tropas. Tudo o que
se pôde fazer, por falta de material e ferramenta, foi uma pinguela e ainda
assim vacilante e pouco segura.
Felizmente, porém, baixara
sensivelmente o nível das águas e o Rio mostrava-se vadeável. Começou a
passagem da coluna às seis da manhã seguinte. Foi morosa e difícil. Os soldados
atravessavam a água, levantando acima das cabeças armas e bagagens, a lutar com
a rapidez da corrente. Os doentes, os oficiais, os músicos e as mulheres
utilizaram-se da pinguela.
Houvesse o destino determinado
que os inimigos cuidassem em assestar a artilharia numa esplanada que nos
ficava a cavaleiro, ou simplesmente espalhassem atiradores em torno de nós,
caro nos teriam feito pagar a invasão do seu território, no momento em que o
deixávamos. Felizmente adotaram outro plano; separados em dois grupos, um
esperou-nos à frente, ao passo que o outro se dispunha a cair-nos à retaguarda,
desde que entre ela e o resto da coluna visse o Rio. Não surtiu efeito a
combinação, mantidos que foram a distância respeitosa pelo fogo rápido, e
habilmente dirigido, de uma das nossas peças, a que, do alto da chapada, onde
se estabelecera o nosso acampamento, podia varrer todos os arredores.
Depois dos batalhões do centro e
seus canhões passou o gado costeado por 12 homens, a quem comandava o Capitão
da Guarda Nacional Silva Albuquerque. Nossa vanguarda com as peças que tinham
protegido a passagem, transpôs o Rio a seu turno, coberta pelo fogo de uma
bateria que acabava de tomar posições defronte da margem paraguaia.
Às nove e meia, quando nos
achávamos todos em território brasileiro, foi a nossa ponte improvisada cortada
por alguns soldados que para este serviço reservara o Ten Catão Roxo. Recomeçou
o Corpo de Exército a marchar, acompanhando a margem que o fogo do Forte de
Bela Vista, agora arruinado, podia outrora dominar.
Tomou a dianteira o Batalhão de
Voluntários do Tenente-Coronel Enéias Galvão, indo o 21° de Infantaria,
comandado pelo Maj José Tomás Gonçalves, formar a retaguarda. Entre eles
ficaram os corpos do centro: à direita o 20°, comandado pelo Cap Ferreira de
Paiva; e, à esquerda, o corpo de caçadores sob as ordens do Cap Pedro José
Rufino.
Cobria toda esta força duas
linhas de carretas, no meio das quais iam as mulas carregando o resto de nossos
víveres, munições e alguma bagagem de oficiais. Vinha depois o grupo das
mulheres, dos enfermos e convalescentes. Nossas últimas juntas de bois
arrastavam as peças; a de Marques da Cruz, no ângulo da direita; a de Nobre de
Gusmão, no da esquerda; a de Cantuária à extrema-direita da retaguarda; e a
de Napoleão Freire à extrema-direita.
À retaguarda do 20° Batalhão, e
fora das linhas, tudo superintendendo iam o Comandante e parte do seu
Estado-Maior. A cada momento enviava, para todas as direções, os seus oficiais
e Ajudantes-de-Campo, a fim de se regularizar o movimento.
Por duas vezes ao Chefe dos voluntários,
à vanguarda, avisou que os seus atiradores, por demasiado ardor, se isolavam da
coluna, com grande risco para todos, como não tardaram os fatos a demonstrá-lo.
Avançávamos; e nossos olhos se despediam de
Bela Vista, dizendo-lhe adeus e para sempre. Muitos daqueles que conosco
estavam, então, não mais existem. O que podem desejar os seus sobreviventes é
nunca mais regressarem àquele teatro de tanta miséria. Já se não percebia um
pedaço de muralha branca, único destroço ainda de pé do que fora a Fortaleza
daquela fronteira; nada mais se via além das franças ([1])
da mataria do Apa.
Aberta de todos os lados, estendia-se a
campina acessível aos olhos, exceto num ponto a alguma distância, à nossa
frente, e ponto que os nossos atiradores não haviam reconhecido. Uma espécie
de escarpa ali mascarava o que verificamos ser profunda depressão do solo,
embaixo de suave declive que tornava a subir para a Machorra, cujo caminho
seguíamos. Ascendia o sol, eram doze horas. (TAUNAY, 1874) (Contiunua...)
Bibliografia
TAUNAY, Alfredo de Escragnolle. A Retirada da Laguna: Episódio da Guerra do Paraguai – Brasil – Rio
de Janeiro, RJ – Tipografia Americana, 1874.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia
Brasileira (SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H