Segunda-feira, 17 de abril de 2023 - 07h05
Ataque Vigoroso do Inimigo. Nós o Repelimos, mas, com o Fra
gor do Combate, Nosso Gado se Dispersa.
Cenas do Campo de Batalha. A Preta Ana. O Ferido Paraguaio. Vão os Víveres
Faltar.
De repente, do fundo da escarpa
que a estrada contornava, irrompeu um Corpo de Infantaria paraguaia que se
lançou sobre a nossa linha de atiradores, atravessou-a, dirigindo-se para o 17°
Batalhão dela distante uns cem passos. Enquanto este se preparava para receber
o ataque, os nossos atiradores, tornando a si da surpresa que ao inimigo
permitira penetrar em nossas linhas, haviam-se voltado e o carregavam pela
retaguarda.
Foi quando
numerosos grupos de cavaleiros apareceram, a galope, derribando e acutilando a
quantos encontravam. Travou-se, por toda parte, terrível entrevero: e tal que
o nosso Batalhão de Voluntários de Minas hesitou a princípio em fazer fogo,
receoso de atingir amigos e inimigos. Acabou, afinal, por fazê-lo, juncando o
solo de mortos e feridos. Isto pelo menos obrigou os paraguaios a recuarem e a
fugir, mas somente para se reagruparem à alguma distância. Não podíamos deixar
de esperar um ataque geral. Formaram os corpos quadrados e os canhões assestados
nos ângulos despejaram nutrido e vivo fogo, cujos projéteis atingiram a grota
onde se alojara o grosso do inimigo.
Novo pânico de nosso gado, agora
de efeitos mais graves do que da primeira vez, veio, então, comprometer-nos a
situação, não só no momento como para todo o resto da retirada. Espavorida
pelos estampidos do canhoneio, o mais forte que até então ouvira, apossou-se de
nossa boiada vertiginoso terror. Abrindo passagem através de guardas e
soldados, precipitaram-se os animais sobre as nossas fileiras, sobretudo à
retaguarda, mais próxima de seu retiro.
Produziu a princípio esta
irrupção uma desordem que o Comandante inimigo notou, trazendo-lhe provavelmente
a sugestão da ideia da manobra que imediatamente executou. Distribuída em duas
colunas profundas, toda a sua cavalaria arrancou, vindo passar rente às faces
laterais de nossos quadrados, como a convergir sobre a nossa retaguarda, para a
esmagar. Poderia esta manobra ter ocasionado a nossa perda; mas malogrou-se,
sobretudo, graças à nossa infantaria que, colocada como estava, teve durante
minutos o inimigo sob os seus fogos cruzados e lhe causou avultadas baixas.
Amorteceram estes claros o ímpeto das massas,
a quem os feridos e mortos, aliás, atrapalhavam. A arma branca não as poupava
menos que as balas e a metralha. Vimos cavaleiros traspassarem-se sobre as
nossas baionetas e assim pereceram acutilados. Sobressaiu o 21° Batalhão nesta
encarniçada pugna, que à nossa retaguarda deu tempo de se consolidar contra o
choque que a ameaçava. Não foi, contudo, a violência tão grande quanto a
esperávamos, porque os inimigos, imaginando que nos achariam meio abalados,
mas sentindo pelo contrário a nossa coesão, graças ao vigor da resistência, não
persistiram no ataque, acabando por circunscrever o seu esforço em apanhar o
nosso gado que, espavorido, disparava pelo campo.
Cercá-lo, dominá-lo, tangê-lo para a frente,
foi para estes vaqueiros, os primeiros do mundo, obra de instantes.
Depois, tudo desapareceu: estava
o campo limpo e cessara a peleja. Foram os primeiros movimentos consagrados ao
contentamento da vitória; e as aclamações que espontaneamente estrugiram em
toda a nossa linha abafaram o estridor dos clarins e fanfarras.
A esta cena de entusiasmo e
alegria, outra seguiu-se de desolação. Estava o terreno coalhado de moribundos
e feridos inimigos. Vários dos nossos soldados, ébrios da pólvora e do fogo,
queriam acabá-los. Horrorizados, debalde esforçavam-se os nossos oficiais em
lhes arrancar as vítimas às mãos, exprobrando-lhes a indignidade de semelhante
chacina.
Felizmente, dominados pela impressão das
ameaças do Coronel, a propósito das mutilações infligidas aos cadáveres,
abstiveram-se os nossos índios de tocar em qualquer forma humana animada ou
inanimada.
Por isto mesmo redobraram de
crueldade para com os cavalos, dos quais não pouparam sequer um só, estivesse
ele estendido no chão, a dar sinais de vida, ou, então, ligeiramente ferido, a
pastar, todo arreado ainda. Via-se, aliás, como inevitável consequência destas
cenas deploráveis, o saque desenfreado a que se entregavam os mascates e os
acompanhadores do Exército também, reclamando as mulheres o seu quinhão. Eram
os corpos despidos e revistados; despojos sanguinolentos passavam, de mão em
mão, como mercadorias, muita vez com violência disputadas. Os cadáveres
paraguaios, objeto dos primeiros esbulhos, ficaram assim nus, estendidos ao
Sol.
Notamos um, o de um rapaz de
formas atléticas, cuja cabeça, de uma têmpora à outra, perfurara uma bala.
Tinha os olhos inchado nas órbitas e, apesar de todo o sangue que em abundância
correra ainda, de sob a fronte, lhe gotejavam grossas bagas, que pareciam
lágrimas. Pungente emblema da passagem exterminadora da guerra sobre a sua
valorosa nação, aniquilada pelo Chefe implacável que a regia. Quanta ideia
lúgubre evoca um campo de batalha! Sobretudo nestas solidões imensas, onde o
próprio gênio do mal parecia ter penosamente convocado e reunido milhares de
homens para que mutuamente se exterminassem, como se terra lhes faltara para
viverem em paz do fruto do seu labor.
Deixaram os inimigos no chão mais
de uma centena de mortos, entre os quais divisamos um Capitão e outro oficial,
cujo posto, por falta de divisas, não pôde ser identificado. Raro que se veja
tão grande número de cadáveres paraguaios num campo de batalha. Carregam os
sobreviventes quantos podem e mesmo tomam alguns dentre eles a precaução de se
atar pela cintura a uma das pontas do laço que sempre trazem consigo, prendendo
solidamente a outra ponta ao arção da sela, a fim de que caso caiam mortos ou
gravemente feridos, possa o cavalo, acompanhando os demais na volta, levá-los
ainda que em pedaços ‒ feroz precaução que não deixa de ter tal ou qual
grandiosidade.
Contamos do nosso lado muitos
mortos, todos do Batalhão da Vanguarda ou dos atiradores que o precediam. O
Tenente Palestino, que a estes comandava, tivera o peito atravessado por um
lançaço ([1])
de que dias depois veio a morrer. O Tenente Raimundo Monteiro foi durante a
ação apanhado a esvair-se em sangue.
Levaram-no numa padiola; ao
passar diante da Companhia que comandava bradou-lhes que lhe vingassem a morte.
Recebera oito lançaços, dos quais o primeiro o derribara; e, mais ainda tivera
que sofrer do pisar dos cavalos. Restabeleceu-se, entretanto, e tivemos o
prazer de ver rapidamente curado este valente filho da Província de Minas. Grande
número de feridos brasileiros se transportaram de vários pontos; foram todos
levados à ambulância provisória, onde os nossos médicos os puseram nos carros
de bois, apertados, não há dúvida, e uns sobre os outros, mas recebendo todos
os socorros que as circunstâncias comportavam.
Uma mulher de soldado, a preta
Ana, antecipara nesta obra caridosa os cuidados da administração militar.
Colocada, durante a ação, no meio do quadrado do 17°, desvelara-se por todos os
feridos que lhe traziam, tomando ou rasgando das próprias roupas o que lhe
faltava para os pensar e ligar, proceder tanto mais digno de nota e admiração
quanto fora o da maioria das companheiras miserável. Escondidas quase todas
sob as carretas, ali disputavam lugar com horrível tumulto.
O único ferido inimigo, encontrado vivo,
tinha uma perna fraturada. Quis o Coronel vê-lo, e a fim de o interrogar chamou
o filho de Lopes, que falava o espanhol paraguaio. Parecia sentir horríveis
dores e pediu água que avidamente bebeu. A sombra com que o cobrimos,
rodeando-o, pareceu dar-lhe maior alívio ainda. Respondendo a algumas perguntas
contou-nos que o Comandante das forças com quem combatêramos se chamava Martim
Urbieta, o mesmo de quem já falamos; que o Corpo de Cavalaria, com quem
acabávamos de pelejar, era de 800 praças, estando ainda outro a chegar brevemente
às informações que lhe pedimos sobre a artilharia, respondeu nada ter a contar:
nada sabia.
Entretanto, espontaneamente,
deu-nos notícias da Guerra do Sul. Havendo o filho do guia indagado se
Curupaití fora tomada, respondeu pelo monossílabo:
‒ Não!
E Humaitá?
‒ Nunca!
Então a guerra não está para
acabar? – Após uma pausa, em que se lhe repetiu a pergunta, replicou o moço,
como saindo de um sonho, e no tom de ênfase próprio da língua de sua gente:
‒ A
terrível guerra está dormindo!
Delirava. Levaram-no, então, para uma das
carretas da ambulância. O que a este incidente se seguiu [triste ocorrência que
não quisemos, aliás, averiguar] foi, segundo o boato espalhado, que o
desventurado, posto num carro atravancado e onde foi aumentar o incômodo de outros
feridos e moribundos, desvairados pelo ódio e sede de vingança, acabou
estrangulado. Certo é que poucas horas mais tarde, durante a marcha, foi
lançado morto à estrada. Enterramos todos os nossos cadáveres em covas que
mandamos abrir pelos índios. Quanto aos paraguaios, deixamos tal encargo aos
seus compatriotas.
Bem sabíamos haveriam de voltar
logo àquele local, após a nossa partida. Com os seus sentimentos de homem
profundamente religioso, teve o Coronel real desgosto deste abandono. Era,
porém, o número dos cadáveres muito avultado, ia o dia alto e o calor
tornava-se mortificante. Assim recomeçamos a marcha.
Tal foi o combate de 11.05.1867,
o mais importante da Retirada. Já o de 06.05.1867 mostrara aos paraguaios o que
valia a nossa gente; veio este confirmar o efeito em seu ânimo; e tal impressão
se traduziu pela hesitação e a moleza que, daí em diante, mais do que nunca,
lhes caracterizou os cometimentos.
Ficou-nos, além de tudo, patente
que, além da prática da guerra, faltava-lhes a inspiração tática, a que sabe
apreciar os fatos, no momento em que se produzem e adivinhar os obstáculos para
os vencer. O seu ataque de infantaria tivera como fim levar a confusão à nossa
vanguarda, de modo a entregá-la, no primeiro movimento de surpresa, à mercê da
cavalaria.
Baldado este plano, deveriam ter compreendido
que a única probabilidade de triunfo restante residia nas cargas de cavalaria,
cada vez mais impetuosas, e sustentadas por sucessivos reforços. Um pouco mais
de hábito da guerra lhes teria dado a conhecer, aliás, quanto era a nossa
disposição geral excelente e que, para destruí-la se tornava preciso combinar o
emprego da artilharia, de que dispunham, com a ação da cavalaria.
Sob este reforço simultâneo
ter-nos-ia sido impossível, a princípio, defender as nossas bagagens e as
munições que as acompanhavam; e depois os nossos quadrados, que às balas
ofereciam dilatado alvo. E, então, as nossas fileiras, clareadas e combalidas
pelo próprio fato de seu desenvolvimento, não teriam resistido à sua cavalaria,
poderosa como era, com os pesados sabres de que dispunha.
Seja como for, vencêramos e ainda
com este resultado excelente: crescera o Cel Camisão no conceito dos soldados
pelo sangue-frio de que dera mostras. Mas, infelizmente, não bastava isto:
perdêramos o gado. Que seria de nós sem víveres?
Mandou o Comandante chamar vários
oficiais, uns após outros e, depois, longamente conferenciou com o velho Lopes,
que, intrépido e até terrível, pode-se dizê-lo, em combate apenas travado,
mostrava-se nas deliberações, mais do que ninguém, o homem dos bons conselhos e
inspirados expedientes. E só deste lado havia agora salvação a esperar.
(TAUNAY, 1874) (Continua...)
Bibliografia
TAUNAY, Alfredo de Escragnolle. A Retirada da Laguna: Episódio da Guerra do Paraguai – Brasil – Rio
de Janeiro, RJ – Tipografia Americana, 1874.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia
Brasileira (SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H