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Hiram Reis e Silva

Terceira Margem – Parte DLXXIV - Jornada Pantaneira - A Retirada da Laguna –Parte XII


Terceira Margem – Parte DLXXIV - Jornada Pantaneira - A Retirada da Laguna –Parte XII - Gente de Opinião

Bagé, 17.04.2023

XII

Ataque Vigoroso do Inimigo. Nós o Repelimos, mas, com o Fra

gor do Combate, Nosso Gado se Dispersa. Cenas do Campo de Batalha. A Preta Ana. O Ferido Paraguaio. Vão os Víveres Faltar.

De repente, do fundo da escarpa que a estrada contornava, irrompeu um Corpo de Infantaria paraguaia que se lançou sobre a nossa linha de atiradores, atravessou-a, dirigindo-se para o 17° Batalhão dela distante uns cem passos. Enquanto este se preparava para receber o ataque, os nossos atiradores, tornando a si da surpresa que ao inimigo permitira penetrar em nossas linhas, haviam-se voltado e o carregavam pela retaguarda.

Foi quando numerosos grupos de cavaleiros apare­ceram, a galope, derribando e acutilando a quantos encontravam. Travou-se, por toda parte, terrível en­trevero: e tal que o nosso Batalhão de Voluntários de Minas hesitou a princípio em fazer fogo, receoso de atingir amigos e inimigos. Acabou, afinal, por fazê-lo, juncando o solo de mortos e feridos. Isto pelo menos obrigou os paraguaios a recuarem e a fugir, mas somente para se reagruparem à alguma distância. Não podíamos deixar de esperar um ataque geral. Formaram os corpos quadrados e os canhões asses­tados nos ângulos despejaram nutrido e vivo fogo, cujos projéteis atingiram a grota onde se alojara o grosso do inimigo.

Novo pânico de nosso gado, agora de efeitos mais graves do que da primeira vez, veio, então, comprometer-nos a situação, não só no momento como para todo o resto da retirada. Espavorida pelos estampidos do canhoneio, o mais forte que até então ouvira, apossou-se de nossa boiada vertiginoso terror. Abrindo passagem através de guardas e soldados, precipitaram-se os animais sobre as nossas fileiras, sobretudo à retaguarda, mais próxima de seu retiro.

Produziu a princípio esta irrupção uma desordem que o Comandante inimigo notou, trazendo-lhe provavel­mente a sugestão da ideia da manobra que imedia­tamente executou. Distribuída em duas colunas pro­fundas, toda a sua cavalaria arrancou, vindo passar rente às faces laterais de nossos quadrados, como a convergir sobre a nossa retaguarda, para a esmagar. Poderia esta manobra ter ocasionado a nossa perda; mas malogrou-se, sobretudo, graças à nossa infan­taria que, colocada como estava, teve durante minu­tos o inimigo sob os seus fogos cruzados e lhe causou avultadas baixas.

Amorteceram estes claros o ímpeto das massas, a quem os feridos e mortos, aliás, atrapalhavam. A arma branca não as poupava menos que as balas e a metralha. Vimos cavaleiros traspassarem-se sobre as nossas baionetas e assim pereceram acutilados. Sobressaiu o 21° Batalhão nesta encarniçada pugna, que à nossa retaguarda deu tempo de se consolidar contra o choque que a ameaçava. Não foi, contudo, a violência tão grande quanto a esperávamos, porque os inimigos, imaginando que nos achariam meio aba­lados, mas sentindo pelo contrário a nossa coesão, graças ao vigor da resistência, não persistiram no ataque, acabando por circunscrever o seu esforço em apanhar o nosso gado que, espavorido, disparava pelo campo.

Cercá-lo, dominá-lo, tangê-lo para a frente, foi para estes vaqueiros, os primeiros do mundo, obra de instantes.

Depois, tudo desapareceu: estava o campo limpo e cessara a peleja. Foram os primeiros movimentos consagrados ao contentamento da vitória; e as aclamações que espontaneamente estrugiram em toda a nossa linha abafaram o estridor dos clarins e fanfarras.

A esta cena de entusiasmo e alegria, outra seguiu-se de desolação. Estava o terreno coalhado de moribundos e feridos inimigos. Vários dos nossos soldados, ébrios da pólvora e do fogo, queriam acabá-los. Horrorizados, debalde esforçavam-se os nossos oficiais em lhes arrancar as vítimas às mãos, exprobrando-lhes a indignidade de semelhante chacina.

Felizmente, dominados pela impressão das ameaças do Coronel, a propósito das mutilações infligidas aos cadáveres, abstiveram-se os nossos índios de tocar em qualquer forma humana animada ou inanimada.

Por isto mesmo redobraram de crueldade para com os cavalos, dos quais não pouparam sequer um só, estivesse ele estendido no chão, a dar sinais de vida, ou, então, ligeiramente ferido, a pastar, todo arreado ainda. Via-se, aliás, como inevitável consequência destas cenas deploráveis, o saque desenfreado a que se entregavam os mascates e os acompanhadores do Exército também, reclamando as mulheres o seu qui­nhão. Eram os corpos despidos e revistados; despo­jos sanguinolentos passavam, de mão em mão, co­mo mercadorias, muita vez com violência disputa­das. Os cadáveres paraguaios, objeto dos primeiros esbulhos, ficaram assim nus, estendidos ao Sol.

Notamos um, o de um rapaz de formas atléticas, cuja cabeça, de uma têmpora à outra, perfurara uma bala. Tinha os olhos inchado nas órbitas e, apesar de todo o sangue que em abundância correra ainda, de sob a fronte, lhe gotejavam grossas bagas, que pa­reciam lágrimas. Pungente emblema da passagem exterminadora da guerra sobre a sua valorosa nação, aniquilada pelo Chefe implacável que a regia. Quanta ideia lúgubre evoca um campo de batalha! Sobretudo nestas solidões imensas, onde o próprio gênio do mal parecia ter penosamente convocado e reunido milhares de homens para que mutuamente se exterminassem, como se terra lhes faltara para viverem em paz do fruto do seu labor.

Deixaram os inimigos no chão mais de uma centena de mortos, entre os quais divisamos um Capitão e outro oficial, cujo posto, por falta de divisas, não pôde ser identificado. Raro que se veja tão grande número de cadáveres paraguaios num campo de batalha. Carregam os sobreviventes quantos podem e mesmo tomam alguns dentre eles a precaução de se atar pela cintura a uma das pontas do laço que sempre trazem consigo, prendendo solidamente a outra ponta ao arção da sela, a fim de que caso caiam mortos ou gravemente feridos, possa o cavalo, acompanhando os demais na volta, levá-los ainda que em pedaços ‒ feroz precaução que não deixa de ter tal ou qual grandiosidade.

Contamos do nosso lado muitos mortos, todos do Batalhão da Vanguarda ou dos atiradores que o precediam. O Tenente Palestino, que a estes coman­dava, tivera o peito atravessado por um lançaço ([1]) de que dias depois veio a morrer. O Tenente Raimundo Monteiro foi durante a ação apanhado a esvair-se em sangue.

Levaram-no numa padiola; ao passar diante da Companhia que comandava bradou-lhes que lhe vingassem a morte. Recebera oito lançaços, dos quais o primeiro o derribara; e, mais ainda tivera que sofrer do pisar dos cavalos. Restabeleceu-se, entretanto, e tivemos o prazer de ver rapidamente curado este valente filho da Província de Minas. Grande número de feridos brasileiros se transporta­ram de vários pontos; foram todos levados à ambu­lância provisória, onde os nossos médicos os puse­ram nos carros de bois, apertados, não há dúvida, e uns sobre os outros, mas recebendo todos os so­corros que as circunstâncias comportavam.

Uma mulher de soldado, a preta Ana, antecipara nesta obra caridosa os cuidados da administração militar. Colocada, durante a ação, no meio do quadrado do 17°, desvelara-se por todos os feridos que lhe traziam, tomando ou rasgando das próprias roupas o que lhe faltava para os pensar e ligar, proceder tanto mais digno de nota e admiração quanto fora o da maioria das companheiras mise­rável. Escondidas quase todas sob as carretas, ali disputavam lugar com horrível tumulto.

O único ferido inimigo, encontrado vivo, tinha uma perna fraturada. Quis o Coronel vê-lo, e a fim de o interrogar chamou o filho de Lopes, que falava o espanhol paraguaio. Parecia sentir horríveis dores e pediu água que avidamente bebeu. A sombra com que o cobrimos, rodeando-o, pareceu dar-lhe maior alívio ainda. Respondendo a algumas perguntas contou-nos que o Comandante das forças com quem combatêramos se chamava Martim Urbieta, o mesmo de quem já falamos; que o Corpo de Cavalaria, com quem acabávamos de pelejar, era de 800 praças, estando ainda outro a chegar brevemente às informações que lhe pedimos sobre a artilharia, respondeu nada ter a contar: nada sabia.

Entretanto, espontaneamente, deu-nos notícias da Guerra do Sul. Havendo o filho do guia indagado se Curupaití fora tomada, respondeu pelo monossílabo:

  Não!

E Humaitá?

  Nunca!

Então a guerra não está para acabar? – Após uma pausa, em que se lhe repetiu a pergunta, replicou o moço, como saindo de um sonho, e no tom de ênfase próprio da língua de sua gente:

  A terrível guerra está dormindo!

Delirava. Levaram-no, então, para uma das carretas da ambulância. O que a este incidente se seguiu [triste ocorrência que não quisemos, aliás, averiguar] foi, segundo o boato espalhado, que o desventurado, posto num carro atravancado e onde foi aumentar o incômodo de outros feridos e moribundos, desvaira­dos pelo ódio e sede de vingança, acabou estrangu­lado. Certo é que poucas horas mais tarde, durante a marcha, foi lançado morto à estrada. Enterramos todos os nossos cadáveres em covas que mandamos abrir pelos índios. Quanto aos para­guaios, deixamos tal encargo aos seus compatriotas.

Bem sabíamos haveriam de voltar logo àquele local, após a nossa partida. Com os seus sentimentos de homem profundamente religioso, teve o Coronel real desgosto deste abandono. Era, porém, o número dos cadáveres muito avultado, ia o dia alto e o calor tornava-se mortificante. Assim recomeçamos a marcha.

Tal foi o combate de 11.05.1867, o mais importante da Retirada. Já o de 06.05.1867 mostrara aos paraguaios o que valia a nossa gente; veio este confirmar o efeito em seu ânimo; e tal impressão se traduziu pela hesitação e a moleza que, daí em diante, mais do que nunca, lhes caracterizou os cometimentos.

Ficou-nos, além de tudo, patente que, além da prática da guerra, faltava-lhes a inspiração tática, a que sabe apreciar os fatos, no momento em que se produzem e adivinhar os obstáculos para os vencer. O seu ataque de infantaria tivera como fim levar a confusão à nossa vanguarda, de modo a entregá-la, no primeiro movimento de surpresa, à mercê da cavalaria.

Baldado este plano, deveriam ter compreendido que a única probabilidade de triunfo restante residia nas cargas de cavalaria, cada vez mais impetuosas, e sustentadas por sucessivos reforços. Um pouco mais de hábito da guerra lhes teria dado a conhecer, aliás, quanto era a nossa disposição geral excelente e que, para destruí-la se tornava preciso combinar o emprego da artilharia, de que dispu­nham, com a ação da cavalaria.

Sob este reforço simultâneo ter-nos-ia sido im­possível, a princípio, defender as nossas bagagens e as munições que as acompanhavam; e depois os nossos quadrados, que às balas ofereciam dilatado alvo. E, então, as nossas fileiras, clareadas e combalidas pelo próprio fato de seu desenvolvimento, não teriam resistido à sua cavalaria, poderosa como era, com os pesados sabres de que dispunha.

Seja como for, vencêramos e ainda com este resulta­do excelente: crescera o Cel Camisão no conceito dos soldados pelo sangue-frio de que dera mostras. Mas, infelizmente, não bastava isto: perdêramos o gado. Que seria de nós sem víveres?

Mandou o Comandante chamar vários oficiais, uns após outros e, depois, longamente conferenciou com o velho Lopes, que, intrépido e até terrível, pode-se dizê-lo, em combate apenas travado, mostrava-se nas deliberações, mais do que ninguém, o homem dos bons conselhos e inspirados expedientes. E só deste lado havia agora salvação a esperar. (TAUNAY, 1874) (Continua...)

 

Bibliografia

 

TAUNAY, Alfredo de Escragnolle. A Retirada da Laguna: Episódio da Guerra do Paraguai – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Tipografia Americana, 1874.


 

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

 

Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)

Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);

Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);

Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);

Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)

Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);

Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);

Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);

Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)

Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);

Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)

Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).

Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).

E-mail: hiramrsilva@gmail.com.



[1]    Lançaço: golpe de lança. (Hiram Reis)

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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