Quarta-feira, 19 de abril de 2023 - 06h05
Bagé, 19.04.2023
XIII
Deliberação Sobre
o Caminho a Seguirmos Primeiro Incêndio no Campo.
Dirigia-se para Leste a estrada que diante de nós se abria. Passadas seis
léguas, neste rumo, voltava-se para o Norte, até a Colônia de Miranda, de que
nos separavam ainda quatorze léguas, às quais cumpria ainda ajuntar mais dez
para atingirmos Nioaque. Ali, a vinte e quatro léguas da fronteira, poderíamos
nos reabastecer de gado. De quinze dias, no mínimo, precisaríamos para transpor
esta distância, na marcha em que caminháramos, para o Apa.
Conhecia o inimigo bem esta estrada e já se
pusera à nossa frente. Seria sua entrada em Nioaque muito antes da nossa,
ocasionando-nos, quiçá, a perdição, ao cabo de tantos esforços. Logicamente
era, pois, tal caminho impraticável. Lembraram-se alguns, então, do que
propusera Lopes, quando se tratava de invadir o território paraguaio e escolher
a melhor via para realizá-lo.
Na opinião do Guia, preferível a qualquer
outra, era a passagem pela sua fazenda do Jardim, situada a três dias de marcha
a Sudoeste de Nioaque. Afirmava haver facilmente vencido esta distância em dois
dias e meio. Dali à fronteira do Apa, quando muito, teríamos seis dias pelo
campo.
Quanto a este último trajeto que, segundo as
suas asseverações, por ocasião de nosso primeiro Conselho de Guerra sobre tal
assunto, nos devia colocar em frente ao Forte de Bela Vista, insistira na
necessidade de um reconhecimento que rapidamente deveríamos, dois ou três, em
sua Companhia realizar, montados em bons cavalos. Fora, então, impossível,
porém, conseguir-se um estudo sério da sugestão. Acusaram-no de abuso
existente apenas na imaginação do guia.
Se houvesse passagem, diziam, os paraguaios,
grandes mateiros sempre a divagar, conhecê-la-iam certamente. Ao que sempre
respondera Lopes: – Só se meu filho lhas ensinasse, pois só Deus, eu e ele
podemos ir de minha fazenda ao Apa, pelo campo.
Riram-se os que lhe faziam as objeções e não
se falara mais no caso. Nas circunstâncias em que nos achávamos, informado o
Coronel da passagem dos paraguaios para a margem Setentrional do Rio, e até da
existência de um acampamento, ali estabelecido, apressou-se em falar ao velho
Guia sobre o caminho pela sua estância.
Respondeu este bastante friamente que, com
efeito, em tempo, indicara tal estrada. Aconselhara então, porém, que de
antemão se explorassem aqueles lugares, no que não fora atendido. Agora era
tarde demais.
Entretanto, havendo dado largas ao ressentimento,
e passados alguns minutos de silêncio, acrescentou que tudo bem meditado não
via impraticabilidade para uma tentativa deste gênero. Certamente muito nos
maltrataria a macega alta; supunha, contudo, que em menos de uma semana
poderíamos atingir a sua estância onde repousaríamos; e, com suas laranjas, nos
haveríamos de restabelecer.
A seu ver era esta fruta de inestimável valor
para a saúde; cada vez que ao Jardim fora, para nos abastecer de gado, grandes
sacos dela nos trouxera. Achavam-se as suas árvores carregadas e ainda o deviam
estar. Pessoalmente pertencêramos à maioria que outrora opinara pelo itinerário
por Lopes proposto, pelo fato de nos facultar meios, graças aos quais mais
facilmente atingiríamos o território paraguaio. O que, então, mais proveitoso
fora, para a ofensiva, continuava a sê-lo para a retirada.
Não havia hesitar. Pronunciou-se a maioria dos oficiais pela escolha
desta estrada sob a direção do guia. De novo afirmou este, dando a palavra, que
em cinco ou seis dias estaríamos no Jardim. Mais dois ou três nos bastariam
depois para alcançar Nioaque, onde nos poderíamos ainda antecipar ao inimigo.
Foi o plano aceito pelo Comandante. Último dia de triunfo para José Francisco
Lopes!
Inteiramente a seu favor tinha a opinião dos
soldados, a dos oficiais e a do Chefe. Investia-o a confiança geral, até como
que solenemente, de quase ilimitada autoridade; a pública necessidade e a lei
suprema da salvação tornavam-no como um ditador. Toda a vantagem havia em
tomarmos a estrada do Jardim. Em primeiro lugar podiam os nossos comboios
escapar ao inimigo que parecia perseguir-nos noutra direção.
E não era só dos mercadores estacados na
Machorra, à nossa espera, que se tratava, mas também de todos os mais que, na
suposição do seccionamento ou da perda de nossa coluna, penosamente recuavam
para Nioaque. Tínhamos ainda a probabilidade de algum abastecimento nos
distritos desertos, onde, mesmo longe das estâncias, há animais erradios.
Em terceiro lugar não eram de pequena monta
as vantagens que nos apresentava a disposição de um terreno acidentado, em
parte coberto de matas e capões capazes de neutralizar as armas mais danosas em
uma retirada, a cavalaria, graças aos acidentes do terreno e a mataria; a
artilharia, porque a nossa, com a dianteira que tomávamos, teria sempre a
faculdade de, antes do inimigo, ocupar qualquer posição de algum valor
estratégico.
Íamos desde logo evitar uma planície de meia
légua onde a água das últimas chuvas ainda encharcava o solo, apenas deixando
estreita passagem ao longo da qual, durante muitas horas, teríamos que suportar
o fogo do inimigo.
Enfim, por esse caminho da
estância de Lopes, só havia um grande Rio a atravessar, o Miranda, enquanto
pela estrada ordinária, precisaríamos, além deste, transpor numerosas
correntes, 3 pelo menos volumosas: o Desbarrancado, o S. Antônio e o Feio, que
às menores chuvas sobremodo acaudalam.
Podia-se dizer, é exato, que um efeito desagradável do nosso desvio da
estrada batida seria persuadir aos paraguaios que procurávamos escapar-lhes
pela fuga, assim se amesquinhando a boa impressão que os últimos combates lhes
deviam ter dado de nós. Mas esta aparente desvantagem vinha pelo contrário,
naquele momento, reforçar o desejo em que nos empenhávamos de salvar os
comboios da perseguição do inimigo, atraindo-a sobre nós. É que ela não nos
inspirava temor. O que certamente nos levava a refletir sobre o caso vinha a
ser a ideia de nos embrenhar em lugares ainda não explorados, cheios talvez de
inesperados obstáculos, no meio desta macega alta que a alguns passos impede a
visão; que é preciso cortar sem descanso e quando seca [como então estava]
exige perigoso e pesado serviço.
Qualquer consideração acerca de perigos e
dificuldades secundárias desaparecia, contudo, em frente à urgência da
situação. Não houve quem não o compreendesse; uma única porta de salvação nos
restava aberta. Pusemo-nos a marchar às 13h00; iam os oficiais no centro de
seus Batalhões. Achava-se o comandante com parte do seu Estado-Maior no
quadrado do 20. Ao entrar nele, jovialmente dissera ao Capitão Paiva:
‒ Venho
colocar-me aqui entre os senhores; ninguém se defenderá melhor que nós.
Caminháramos um quarto de légua, quando muito, e já o fogo dos paraguaios
começara do alto de uma elevação que dominava o Teatro do Combate da manhã.
Apanhava-nos os quadrados a descoberto, obrigando-nos a uma evolução em
colunas. Surtiu esta manobra bom efeito. Deveria ela, no entanto, fazer
compreender ao inimigo as vantagens de contra nós empregar, em constante
alternância, a artilharia para bater os quadrados e a cavalaria para nos
acutilar, desde que nos formássemos em coluna.
Felizmente não havia o que lhe abrisse os
olhos e safamo-nos deste mau passo sem maior dano. Nosso guia, sempre à
vanguarda, por simples intuição militar, e sem que nenhum recado tivesse
recebido, aproveitou o conhecimento que tinha do terreno, fazendo-nos deixar
bruscamente a estrada da Machorra e infletir para a esquerda. Por meio de súbita
contramarcha levou-nos ao pé de uma eminência onde nos era fácil assestar uma
bateria, caso fosse necessário; era a segurança. Apenas percebeu Lopes, aliás,
a ausência de inconvenientes, tornou a meter-nos no rumo Norte por subida
bastante suave. Pareceu-nos o inimigo hesitante sobre o que lhe convinha
fazer. Era-lhe visível a perplexidade; avultado número de cavaleiros corria no
campo de um lado para outro.
Encaminhavam-se grupos sobre a bateria
inimiga onde era evidente a presença do Comandante. Pareciam as peças
seguir-nos o movimento à medida que progredíamos no declive por onde nos fazia
Lopes marchar. Foi esta, aliás, a última vez em que se mostraram: nunca mais as
tornamos a ver, ou porque receassem os paraguaios arriscá-las em paragens para
eles desconhecidas e prestando-se a emboscadas ou tivessem esgotado as
munições. Provavelmente as despacharam sob a escolta de um Corpo de Cavalaria,
que tomou a direção da Machorra. Desde aí fomos menos incomodados, mesmo pela
cavalaria.
Prosseguia a nossa jornada sem
maior empecilho, além da macega alta, que nos cercava e precisávamos
irremediavelmente cortar, e sobre a qual se tornava a marcha das mais penosas;
cortando as arestas das gramíneas os pés dos soldados. Reservava-nos ela,
entretanto, provações bem mais cruéis que não tardariam a ocorrer. Notamos, a
alguma distância, tênues rolos de fumo. Foi Lopes quem primeiro deu pelo
incêndio.
Já o esperava. Nada nele traiu a mínima
surpresa. Imóvel por algum tempo, perscrutou o horizonte, rompendo depois o
silêncio com uma dessas apóstrofes próprias dos homens da natureza, quando
enxergam uma luta iminente. Desafiou as chamas que já ameaçavam alçar o colo:
– Está
bem! Haveremos de lutar! Será, contudo, um pouco mais tarde, acrescentou,
voltando-se para nós. Vou começar logrando os paraguaios. Caminho direito para
Miranda; descambarei depois para a minha fazenda.
Fomos esta tarde acampar perto de uma das cabeceiras do José Carlos.
Contávamos poder, à vontade, nos dessedentar após um dia dos mais penosos, numa
atmosfera escaldante.
Mas ali só encontramos água turva e detestável e como, acima de tudo,
tarde chegáramos a este triste pouso, com o Sol posto, nada tivemos para dar,
nem água nem pasto, aos nossos bois estafados e cujo olhar invocava a nossa
compaixão. Para descansar só tínhamos um solo poeirento, a cuja grama ressequida
torrava o Sol. Tivemos, nós mesmos, de nos contentar com um quinto da ração
costumeira, ou, para melhor dizer, faltou a comida.
Em vez de vinte e dois bois que, até então
diariamente se abatiam, quatro apenas foram mortos, escolhidos entre os mais
miseráveis de nossas juntas. Era um princípio de fome; veio apressá-la uma medida,
então, tomada pelo Comandante. Tornara-se-lhe uma das principais preocupações
conservar o máximo de meios possível para o transporte dos feridos.
Acudiu-lhe à mente desatravancar algumas
carretas para lhas reservar; assim, pois, distribuíram-se pelos soldados o que
nelas vinha. Foram repartidos a farinha, o arroz, os legumes secos. Devia cada
qual carregar os próprios víveres, por alguns dias, mas como, em muitos, o cansaço
e a fome venciam a previdência, quase tudo o que naquele momento se distribuiu
foi ineditamente consumido.
Iam começar as nossas grandes provações;
datam daí os sofrimentos que, agravados uns pelos outros, não tardaram em nos
fazer crer na iminência de terrível catástrofe ameaçando colher-nos fatalmente.
(TAUNAY, 1874) (Continua...)
Bibliografia
TAUNAY, Alfredo de Escragnolle. A Retirada da Laguna: Episódio da Guerra do Paraguai – Brasil – Rio
de Janeiro, RJ – Tipografia Americana, 1874.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia
Brasileira (SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
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