Sexta-feira, 21 de abril de 2023 - 06h09
Bagé, 21.04.2023
XIV
Continua
a Marcha. Temos o Inimigo à Frente Novo Sacrifício de Bagagens. Faltam os
Víveres. Incêndios e Temporais. Escaramuças Incessantes.
A 12.05.1867, ao romper d’aurora, levantamos acampamento e, como de
véspera, recomeçou a marcha por entre a macega alta. Longas voltas tivemos de
dar para transpor o José Carlos, evitando alguns dos brejos profundos de onde
lhe nascem as águas. Avançamos para o Norte. Prometia-nos Lopes que, naquela
mesma tarde, poderíamos acampar numa garganta funda, onde nada teríamos a
temer dos paraguaios. Ao longe os víamos também a procurar passagem, mas como
quem não mostrava conhecer, tanto quanto nós, o terreno por onde nos seguiam.
Alentou-nos o dia todo a esperança de bom acampamento; demonstrava o nosso Guia
plena segurança, apontando-nos os fogos que os paraguaios haviam acendido em vários
pontos e procurando demonstrar-nos que ainda desta vez não conseguiriam
barrar-nos o caminho. Graças a ele conservávamos a dianteira embora
estivéssemos a ponto de perdê-la. No momento em que o Sol, já declinando,
tornara-nos a marcha menos penosa, mandou o Comandante da artilharia prevenir
ao Coronel que os animais atrelados aos canhões estavam exaustos, havendo-se
mesmo deitado alguns.
Nem eles nem o pequeno resto de rebanho, que
ainda conservávamos, nada tinham podido comer ou beber desde a noite de
12.05.1867. Tornou-se, pois, forçoso estacarmos. Paramos; nada mais havia a
fazer. Estabeleceu-se a coluna sobre pequena elevação, em parte coberto de
mato à extremidade do qual havia uma fonte.
Apenas ali nos instaláramos, começaram as
lufadas de vento Sul, que soprava rijo, a trazer-nos de longe o calor do fogo
que ao nosso encalço progredia no campo. Já Lopes, porém, pusera em movimento
todo o pessoal, de que podia dispor, ordenando que a toda a pressa se cortasse
a macega, em torno de nós, e fosse carregada o mais longe possível.
Ele próprio, a tudo atendendo, providenciou
para que os soldados vigorosamente a cobrissem de terra e a calcassem bem, o
que se não pôde executar sem muito sofrimento e grandes esforços dos
trabalhadores. Era para nós questão de vida e morte e as ordens do Guia não
representavam senão a expressão da mais rigorosa necessidade.
Lopes, a grande personalidade para nós
outros, nesta cena do incêndio da macega, dando ordens por toda a parte,
multiplicando-se, projetando-se sobre a cortina de chamas, ou desaparecendo, em
suas soluções de continuidade, não era uma figura de mera teatralidade. Sem
ele nos perderíamos!
A não serem tantas precauções, a
fumaça nos asfixiaria; depois, quando o fogo nos chegou, quando folhas e
galhos, amontoados em torno de nosso refúgio, acabaram, apesar de todas as
precauções, por inflamar-se, a seu turno, dali saíram imensas línguas de fogo
que como nos lambiam, ora alçando-se ao céu, ora deprimidas pelas correntes de
ar variáveis e rápidas, que as impeliam, silvando furiosamente por cima de
nossas cabeças.
Vários homens sofreram queimaduras profundas
e um até caiu morto, asfixiado. Afinal este inimigo, esgotado pela própria
violência e não achando mais alimento perto de nós, começou a afastar-se, continuando
o caminho para o Norte. Quando nossa gente, extenuada e morrendo de sede, após
esta luta acrescida à fadiga da marcha, correu à fonte vizinha do acampamento,
ali achou os paraguaios emboscados. Nada menos de duas Companhias foram precisas
para desalojá-los.
Aos últimos clarões do dia vimos este
destacamento que se formara a certa distância, juntar-se ao grosso dos
esquadrões inimigos, que em boa ordem desfilavam, bandeiras desfraldadas, ao
toque dos clarins, evidentemente para nos provocar e, apressando-se, ao que nos
pareceu, em ocupar o local exatamente onde a princípio quisera Lopes acampar.
Algumas balas que lhes despejamos vieram
distender a animosidade dos nossos, exasperados pela sua cruel e covarde
tentativa de queimar-nos vivos. Foi com verdadeira satisfação que verificamos
quanto os nossos projéteis aceleravam a marcha destes adversários odiosos.
Todavia a provação por que acabáramos de passar, naquele campo convertido em
fornalha, era das que sobre o homem exercem irresistível ação física.
A enorme elevação de temperatura, subitamente
ocorrida, bastava para explicar o acabrunhamento em que caímos e o
desfalecimento moral que se lhe seguiu. Não sabíamos, aliás, como seria
possível avançar.
Estavam os animais de tiro de
nossos canhões esfalfados, sobretudo os bois mais ainda que as mulas; e
incapazes de dar um passo. No entanto era mais que urgente não perdermos um
instante em recomeçar a marcha.
Entre uma infinidade de razões não devíamos deixar tempo ao inimigo, que
agora nos precedia para fortificar algum ponto à nossa frente, impedindo-nos a
passagem. Sabe-se quanto os paraguaios são aptos em movimentos de terra, cavar
fossos e levantar redutos. Vem-lhes a tradição dos seus mestres, os Padres da
Companhia de Jesus, que cultivavam todas as artes, sobretudo a arquitetura e a
Engenharia Militar.
Este imenso perigo de nossa situação inspirou ao Comandante a ideia
imediata de ainda diminuir a bagagem para reforçar as juntas e parelhas das
peças e carros manchegos ([1]).
Entendeu-se com os oficiais, a quem competia tal providência, e estes nada lhe
objetaram. Ficando reduzidos ao que sobre o corpo traziam, queimaram algumas
últimas e míseras superfluidades, uma outra mala e barraca.
Desde o combate de 08.05.1867 nada mais tinham os soldados que carregar
ou que perder; haviam atirado fora até os capotes que os embaraçavam, quando
perseguiam os inimigos. As bestas, libertas da carga foram destinadas ao
transporte do cartuchame.
Para maior desgraça nossa tivemos, essa noite, uma chuva torrencial,
verdadeiro dilúvio, que nos pôs atônitos, embora já houvéssemos experimentado
outra, e terrível, e, pela manhã, lhe víssemos os prenúncios, o acúmulo de
imensas nuvens bronzeadas, constantemente sulcadas pelos relâmpagos, por entre
contínuo trovejar.
Durante toda a noite
mantiveram-se de pé os nossos soldados encostados às espingardas que haviam
fincado no solo pela baioneta.
Esta vigília assinala-se em nossas
reminiscências não menos penosamente do que a de 05.05.1867, entre tantos
outros pousos desastrosos. É preciso haver alguém assistido, com a alma tomada
de tristeza, a estas tremendas crises da natureza, para poder avaliar
exatamente a extensão de sua influência sobre o organismo humano. Recursos não
os tínhamos.
Não havia em todo o acampamento uma só gota
de álcool capaz de entreter o calor interno que nos fugia. O fogo, última
esperança, não podíamos acendê-lo sob tamanho temporal.
Foi neste estado de universal desfalecimento que ainda nos veio
acabrunhar a confirmação de quanto declarara o ferido paraguaio. Curupaití e
Humaitá resistiam sempre e a guerra estava longe do seu término. Soubemo-lo por
um número de “El Semanário de Assunção”,
que acabava de ser encontrado sobre um inimigo morto numa escaramuça. Espalhou-se
o boato, com a rapidez de propagação das más notícias, extinguindo as últimas
centelhas da confiança e da coragem: foi-nos impossível marchar a 13.05.1867.
No dia seguinte [14.05.1867], caía a chuva, ainda ao alvorecer, mas já um
tanto mitigada, quando deixamos este inóspito acampamento para entrar em cerrada
mata que o nosso Guia, com grande sagacidade, julgara propício escolher.
Ali caminhamos durante mais de duas horas e
não sem muitas dificuldades. Assim evitávamos, porém, o desfiladeiro que os
paraguaios ocupavam e onde, sem dúvida, supunham aniquilar-nos. Com razão mostrou-se
Lopes desvanecido do êxito desta manobra. Havendo alguém indagado que rumo
seguira, gostosamente pôs-se a rir:
‒ O de minha cabeça.
Se via consultar a bússola, declarava que a
agulha grande só servia para se fazerem bonitos desenhos destinados a divertir
passeantes. Convenceram-no, contudo, que deixara o rumo Norte e assim se
atrasara:
‒ Sim,
momentaneamente, respondeu, nos desviamos para os campos da Pedra de Cal, que
descobri e em 1864 o meu amigo, o General Leverger, viria visitar comigo, se
não arrebentasse a guerra.
Ao meio-dia estávamos em frente a um cerrado
de taquaris, através do qual precisamos abrir caminho, a foice e a machadinha,
o que muito tempo nos tomou, dada a dureza e a elasticidade desta espécie de
bambu e também a má qualidade do aço de nossa ferramenta. Às 14h00, ainda
estávamos às voltas com este serviço. Nosso Guia, sobretudo, mal podia sopitar
a impaciência.
De tempos a tempos ele próprio tentava varar
o matagal, deitado sobre o pescoço da montaria, procurando entrever alguma
passagem para o campo. Como não conseguisse, porém, víamo-lo voltar
descontente, agitado, e com as roupas rasgadas.
Afinal dali saímos às 15h00; às 17h00,
transposta a resistente barreira, continuou toda a coluna a caminhada, já ao
cair do dia, para uma elevação situada a um bom quarto de légua, e à base da
qual belo arvoredo indicava a vizinhança de uma fonte. Já lá se achava
instalada avultada tropa paraguaia, disposta a acampar. Tinham os cavaleiros
desmontado, embora ainda em forma. Bastaram duas granadas de nossas peças da
vanguarda para que se apressassem em nos ceder o lugar. Ali nos estabelecemos
tranquilamente. Os nossos animais encontraram pasto regular e toda a água de
que careciam.
Carneamos à
tarde os bois mais cansados das carretas. Dada a insuficiência e a má qualidade
dos víveres, foi uma distribuição quase irrisória.
A 15.05.1867, ao romper da aurora, estávamos
numa planície coberta de macega, onde um incêndio, em outro momento do dia
seria de se recear. Objetou Lopes que a erva, embebida do orvalho noturno, só
poderia arder depois de exposta, por algum tempo, aos raios solares. A partir
deste dia adotamos a norma de, desde muito cedo, pôr a tropa em movimento,
ativando, quanto possível, a primeira marcha. Em vasta extensão oferecia o
terreno a atravessarmos uma série de montículos intervalados, com certa
regularidade, por extensos pântanos de onde saem vários afluentes do Apa.
A passagem destes pântanos tornava-se
difícil, com a chuva torrencial de 13.05.1867, e ora a artilharia, ora algumas
carretas, se atolavam. Estávamos a vencer um destes difíceis passos, no momento
de transpor uma destas sangas estreitas, quando patrulhas inimigas, em número
considerável, vieram dar-nos, não uma carga, mas realizar como que um reconhecimento
bastante prolongado, a fim de nos fazer crer, talvez, que desejavam algum
embate sério.
Logo, entretanto, formaram-se em colunas e
retiraram-se, o que tanto mais nos surpreendeu, quanto, por trás deles,
divisáramos um enxame de atiradores que, dispostos em pequenos grupos, pareciam
mirar a rarefação de nossas fileiras para facilitar a tarefa da cavalaria, de
que diversos destacamentos apareciam, prestes a entrar em fogo.
Nestas circunstâncias não podíamos atacar a
infantaria e tivemos de lhe suportar o fogo. Felizmente era-lhe a pontaria má,
afoita, incerta, como sempre notáramos entre os paraguaios. Empregavam cartuchos
volumosos, produzindo grande recuo.
Dir-se-ia que desejavam, sobretudo, fazer ruído com as armas e não obter
um efeito útil. Certo é que lhes faltava suficiente aprendizagem e exercício.
Ainda desta vez pouco mal nos fizeram.
Passaram suas balas por cima de nossas cabeças e só tivemos dois homens fora de
combate. Apontávamos muito melhor; e várias vezes lhes perturbamos a formatura.
Vimo-los, então, usar de manobra nova: deitavam-se ao abrigo dos acidentes do
terreno, ao seu alcance; e destes esconderijos nos faziam fogo.
Surgiam uma ou duas cabeças nas cristas das
pequenas elevações e, imediatamente, se escondiam, após alguns tiros disparados
a esmo. Quase não respondemos a este fogo. Um pouco mais ao longe havia, no
entanto, sobre um planalto bastante extenso, um grupo de cavaleiros, que faziam
empinar os cavalos, soltando vivas ao Paraguai e ao Marechal López. Como se
adiantasse ao alcance de nossa artilharia, atirou esta, retrocedendo o grupo
lentamente.
Um deles, porém, deixado de observação,
imóvel sobre o cavalo, parecia afrontar-nos. Atirou-lhe o Major Cantuária tão
certeira granada que, caindo às patas do cavalo, cobriu-o e ao cavaleiro, de
terra e depois, ricocheteando, até um bosque próximo, onde havia gente,
explodiu com bastante efeito para que pudéssemos notar o rebuliço. A custo
conteve a sentinela a cavalgadura, mas não arredou do lugar e assim perdemos o
gosto de sobre ela atirar.
Julgando o Coronel que esta demonstração só
podia atrasar-nos, ordenou que o 20° Batalhão atravessasse o brejo, e depois o
resto da coluna, mas desde que recomeçamos a marchar surgiram de todos os
pontos da campina chamas que, conglobando-se, tomaram aterradoras proporções.
Lopes que, durante toda a longa escaramuça, não conseguira disfarçar uma
inquietação, que jamais lhe notáramos, reconquistou, então, toda a energia da
decisão. Mandou imediatamente encostar a coluna a dois capões de mato que,
momentaneamente, nos preservaram das labaredas laterais e depois fez com que se
cortasse a macega, numa área ainda maior do que na primeira vez, e onde tivemos
que sofrer menos a aproximação do fogo, mas onde foi a fumaça muito mais
terrível, devido à imensa extensão do campo.
Tem este gênero de incêndio feição toda especial e de que nem uma cidade
inteiramente devorada pelo fogo poderia dar ideia. Aumenta conforme a distância
de onde vêm as chamas tangidas pelo vento, que as domina, e mais formarão elas,
em todos os obstáculos encontrados, contra correntes espalhadas em todas as
direções, animadas como de inextinguível furor.
Do combate, que no ar travam, saltam clarões
ofuscantes, ardentias e deslumbramentos que cegam e abrasam a pele do rosto.
Um dos capões a que nos encostáramos compunha-se em grande parte desta espécie
de bambus chamada taboca, cuja haste nos internódios é oca.
Nelas produzia o fogo detonações semelhantes
às do canhão: começamos a crer que a artilharia paraguaia tornara a entrar em
linha. Pôs-se o velho Lopes a zombar:
‒ Bem
se vê que os senhores são novatos nesta terra.
Pouco depois, como o vento
amainasse e a atmosfera refrescasse um pouco, quisemos prosseguir a marcha;
mas o Sol, reverberado pelo terreno escaldante e calcinado, tornou-a, durante
o breve tempo em que a suportamos, uma provação que aos mais robustos arrancava
involuntários gemidos.
Não podiam os olhos
conservarem-se abertos no abrasado ambiente que atravessávamos. (TAUNAY, 1874)
(Continua...)
Bibliografia
TAUNAY, Alfredo de Escragnolle. A Retirada da Laguna: Episódio da Guerra do Paraguai – Brasil – Rio
de Janeiro, RJ – Tipografia Americana, 1874.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira
(SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H