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Hiram Reis e Silva

Terceira Margem – Parte DLXXXI - Jornada Pantaneira - A Retirada da Laguna –Parte XIX


Terceira Margem – Parte DLXXXI - Jornada Pantaneira - A Retirada da Laguna –Parte XIX - Gente de Opinião

Bagé, 03.05.2023

XIX

Renasce a Confiança. Restabelece-se a Disciplina. Passagem do Miranda. Os Canhões. Ainda o Inimigo. Tomamos-lhe Alguns Bois que Oferecem Ótimo Recurso. Marcha Forçada. Vencemos Sete Léguas! Canindé.

Apenas assumiu o comando, publicou o Major José Tomás Gonçalves uma Ordem do Dia em que, apelando para a coragem e os sentimentos de honra individuais para conjurar o pe­rigo geral, assinalava, como única tábua de salvação, a marcha rápida sobre Nioaque, a todo o transe.

Imprimiu o tom vivaz desta proclamação um frêmito de excitação moral útil para a restauração de um estado sanitário que, dia a dia, melhorava, e fazer seguir ao abatimento dos espíritos as felizes disposi­ções ardorosas do novo Chefe. Recomeçando os cla­rins a dar os toques de ordem, às horas fixas tocaram a recolher.

Já havia alguns dias que não os ouvíamos mais; e uma única corneta do Quartel-General, tristemente, indicava a sucessão das horas. Mas o que, sobre­tudo, causou viva e agradável surpresa foi, da outra margem do Rio, escutarmos as cornetas do nosso Corpo de Caçadores, que nos davam o troco. Velava, pois, ainda, sobre nós, a regra militar; cessara o isolamento.

A distribuição de nossas forças parecia tê-las dobra­do, por toda a parte, restabelecendo a confiança e o prestígio da disciplina. Desperta sempre uma mudan­ça de Chefe a atenção geral e poderosamente a agita, à espera da primeira manifestação sensível. O que não dissera a Ordem do Dia do novo Coman­dante exprimiram-no os atos. Tornara-se José Tomás Gonçalves a personificação da ordem e era o seu órgão. Fez sentir-lhe a força a alguns recalcitrantes que ousavam tentar desobe­decer-lhe. Foi a repressão rápida, o que para as tur­bas constitui o sinal da legitimidade do poder.

Estávamos a 30.05.1867; fora dada a ordem de se transpor o Rio e tudo se determinara previamente. Regularizou-se o vaivém já colocado. Soldados que, isoladamente, haviam passado sem autorização fo­ram chamados da outra margem e reincorporados às unidades a que pertenciam após severa admoestação por esta falta que, em campanha, e diante do inimi­go, facilmente se transmuta em crime contra a segu­rança geral. Um sargento que, nesta ocasião, faltara ao dever foi imediatamente rebaixado.

Bastou este ato de firmeza para reparar os males que os quatro dias de moléstia do Comandante ha­viam causado à disciplina.

Fizera o Cel Camisão o máximo empenho em mantê-la; mas ele não dispunha, como o sucessor, nosso novo Chefe, do dom de tornar fácil e agradável o cumprimento do dever, graças aos modos afáveis; e embora estimado e respeitado pelas tropas, que nele viam um militar leal, vigilante, dedicado aos interesses da justiça e da humanidade, como o gênio concentrado lhe desse um aspecto habitualmente sofredor, acabara como por incutir que, com efeito, a desgraça sobre ele adejava, coisa que ele próprio parecia recear.

Nada há mais funesto ao crédito da autoridade: seja este o nosso último conceito sobre tão atribulada existência. Quando, ao sinal convencionado, começou a passagem que, como já dissemos, fora determinada, tivemos sob os olhos um espetáculo interessante. Já se verificara, por meio de bons nadadores, a força de resistência do cabo, sob pesos assaz consideráveis. Agora, homens, em número sempre crescente, mas calculado, dele se suspendiam mudando as mãos, enquanto os corpos, completamente estirados pela velocidade da água à superfície, avançavam de empuxão em empuxão acabando, não sem esforço nem perigo, por atingir a margem oposta.

Assim passou todo o 20° Batalhão. Depois dele vi­mos coléricos tentar vencer o passo, e consegui-lo não somente, como até ainda da prova se saírem alguns completamente curados.

Alguns houve também que se afogaram; procurá­va­mos no começo, por meio de boas palavras, con­vencê-los a que esperassem; mas como tivessem presenciado o abandono dos enfermos, ainda tão re­cente, não lhes saía da mente a previsão de igual destino. Não houve consideração que os levasse a aceitar manterem-se à retaguarda. Teria sido preciso empregar a força para contê-los; fora prudente e justo deixá-los correr os riscos de um acaso cujos perigos queriam afrontar como se alguma mercê implorassem.

Neste ínterim haviam armas e cartuchame sido transportados, em pelotas, com alguns enfermos quase agonizantes, a quem este favor não pudera ser recusado, no estado de agitação convulsiva em que os punha a rapidez dos nossos preparativos e, principalmente, a partida de outros coléricos que tinham tido forças para passar pelo cabo.

Achando o comandante que já havia bastante gente do outro lado do Rio, resolveu que, no dia seguinte, se trans­portassem as nossas quatro peças de artilharia.

No meio de todas as nossas calamidades haviam-se elas constituído em motivo de viva inquietação. Abandoná-las como troféus ao inimigo era inad­missível. Já outrora, em Conselho de Guerra, deliberara o Cel Camisão a seu respeito, daí resul­tando uma ata autorizando o comandante a fazê-las, em caso de premente necessidade, desaparecer no leito de algum caudal, à maior profundidade possível, de mo­do que se pudesse sempre, mais tarde, ir buscá-las, acaso por elas se interessasse o sentimento nacional.

Conhecíamos os paraguaios, porém; que precauções poderiam ocultar-lhes tal depósito? De sobra sabiam o que tais armas lhes haviam custado para que elas pudessem escapar às pesquisas prováveis que não deixariam de fazer. Fosse como fosse, ainda não nos havia sido imposto tal sacrifício, era, sobretudo, para salvar os canhões que o Major José Tomás Gonçalves tivera a ideia da instalação do cabo, e, tomado de legítimo entusiasmo, assistira ao seu feliz ensaio.

A 31, com a mais viva animação, puseram todos mãos à obra; não houve quem se não prestasse, quer para trazer à ribanceira a primeira peça, quer para multiplicar os nós da amarração em torno dos troncos de árvores da margem e os consolidar, quer ainda para a fixação das polias que deviam facilitar o transporte. Moveu-se, afinal, a boca de fogo e quando puxada, de modo a escorregar ao longo do cabo, por diversas juntas de bois colocadas na ribanceira oposta, pare­ceu seguir regularmente, estrepitosas aclamações ergueram-se, em ambas as margens, acompanhan­do-a até que saísse d’água.

No meio da corrente tanto fizera o cabo bojar ([1]) que lhe receáramos o desaparecimento completo. Menos feliz foi a segunda peça: escapou de uma das alças, arrancou as demais e caiu no fundo do Rio.

Pouco faltou para que o cabo se não rompesse. Resistindo a tão forte tensão e, de repente, liberto do peso que o sobrecarregava, fustigou a água com enormes jatos de espuma, deixando, contudo, o canhão no fundo d’água. Felizmente, a nenhuma vida comprometeu o incidente que, em ambas as mar­gens, provocou intensa agitação. Um soldado, cujo nome merece ser recordado, Damásio, ofereceu-se imediatamente para mergulhar no ponto da imersão, e, tendo conseguido reconhecer o fundo, pode, após 2 ou 3 emersões, para tomar fôlego, passar em torno da peça uma corda de que se provera e serviu para a puxar. Foi a lição aproveitada quanto aos cuidados tomados com a amarração das demais bocas de fogo e apressou o resto da operação, permitindo completar a passagem à tarde daquele dia e na manhã seguinte.

A 01.06.1867, à tarde, achamo-nos todos, afinal, reunidos em torno da casa de Lopes, no seu pomar por nós despojado dos frutos, e logo, sem mais repouso ou alimento, recomeçamos a caminhar. O inimigo, que passara para a margem direita, lançou então os seus atiradores contra a nossa retaguarda. O bizarro Pisaflores, que, com a costumada galhar­dia, não tardou em repelir este novo assalto; o único inconveniente daí resultante foi obrigar-nos a uma parada que nos deteve até a vinda da noite, que nesta estação chega cedo. Embora não tivesse havido contramandado algum, e apenas se interrom­pesse a marcha, não foi sem alguma surpresa que, logo após o toque de recolher costumeiro, ouvimos as cornetas dar o sinal da partida imediata.

Tornou-se a impressão tanto mais viva e penosa quanto a escuridão se tornara mais profunda, prenunciando-se próximo temporal e mais violento ainda. Cada qual, no entanto, compreendeu a necessidade urgente de transpor, custasse o que custasse, o espaço que nos separava da Vila de Nioaque, quando o menor atraso de nossa parte podia causar-nos o aniquilamento to­tal. Recomeçamos, pois, a marcha, indo à vanguarda o Cap José Rufino, que conhecia bem o caminho. Por mais sombria e tempestuosa que estivesse a noite não nos ocultava a estrada que diante de nós se abria, larga e plana.

Caminhávamos a passo dobrado. Restavam-nos pou­cos doentes, havendo vários falecido nos dias ante­cedentes, e entre eles o Alferes Muniz. No entanto, os soldados que se revezavam em carregar as padio­las começavam a murmurar ameaçando desven­cilhar-se da carga. Este princípio de insubordinação que tudo poderia arruinar, não teve, contudo, tempo para progredir. Avisado, saiu o Comandante, a todo galope e de espada desembainhada, sobre os rebel­des, encontrando-os a implorar perdão. Desde este momento reinou o silêncio na coluna, em obediência às ordens dadas.

Subitamente, no meio da estrada, surgiu uma patru­lha paraguaia, a quem o zunir do vento e o ribombo do trovão haviam encoberto qualquer suspeita de nossa aproximação; e, ainda, sem que os seus cães, a ladrar, ou o gado, a mugir, houvessem dado o alarma. Caminhando à frente da coluna, mandou nosso Comandante que estacássemos e deu ordem que nos preparássemos a carregar à baioneta sobre o acampamento inimigo. Mas já este a toda a pressa se retirava, deixando-nos o passo livre; nem tempo teve de reunir todo o gado que tangia; estre­malharam-se alguns bois que apresamos; cir­cunstância para nós de inestimável valor; era a própria vida. Apesar da urgência que nos impelia a avançar, não foi possível recusar aos soldados o tempo necessário para carnear algumas das reses apanhadas e comer um pouco da carne, às pressas assada. Carregou-se o resto para as necessidades futuras.

Atravessando o posto abandonado, tomaram os sol­dados o que ainda ali havia de víveres e até couros, que a penúria de dias precedentes lhes fazia consi­derar como último e precioso recurso contra a inanição. Recomeçando a caminhar acompanhou-nos a chuva ainda, sem que a nossa marcha por isto se atrasasse, embora, de tempos a tempos, nos vísse­mos forçados a estacar à espera da artilharia. Nos lugares piores retardava-se e, com ela, o Batalhão da retaguarda, encarregado de escoltá-la. Daí, frequentemente, resultava, para a nossa marcha, perturbação tanto maior quando as ordens eram transmitidas ao longo da coluna, por meio de agudos gritos, sujeitos a interpretações diversas.

Avançamos, apesar de tudo, até às 04h00. Dado, então, o sinal de alto, estropiados, e quase sonâm­bulos deixamo-nos cair no chão enrolados nos pon­chos encharcados como o capim que nos servia de colchão. Duas horas mais tarde, às 06h00, estávamos de pé e graças ao que havíamos ingerido, sentindo-nos mais fortes prosseguimos, sob um céu sereno e uma atmosfera tépida, a nossa intérmina caminhada para Nioaque, por toda a parte percebendo, sobre a estra­da, onde os paraguaios nos precediam, o rasto de seus cavalos.

Desde a última parada atravessávamos cerrado ma­tagal, onde os soldados, já não mais temendo o ata­que da cavalaria, marchavam com segurança, mais afastados uns dos outros.

Sabíamos que graças ao campo raso só os veríamos depois de Canindé. Foi às 14h00 que avistamos a mata desse nome, que é o do Rio que a corta. A ele chegamos às 15h00, tendo vencido sete léguas, motivo de espanto geral, dada a fraqueza em que nos achávamos. Ao atravessarmos o Rio deparou-se-nos o cadáver de um capataz de carretas, chamado Apolinário, a quem os paraguaios acabavam de matar. Pertencia ao comboio daqueles mascates parados na Machorra, à espera de notícias e que, com os boatos dos com­bates de 08 e 09.05.1867, segundo os quais passá­ramos como perdidos, cuidaram de retroceder. Vinte dias tinham gasto para atingir o Canindé, onde en­contraram os boiadeiros que ali nos deviam entregar uma boiada, mas, antes de nossa chegada, haviam uns e outros caído nas mãos do inimigo. (TAUNAY, 1874) (Continua...)

Bibliografia

 

TAUNAY, Alfredo de Escragnolle. A Retirada da Laguna: Episódio da Guerra do Paraguai – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Tipografia Americana, 1874.

 

 

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

 

Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)

Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);

Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);

Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);

Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)

Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);

Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);

Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);

Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)

Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);

Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)

Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).

Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).

E-mail: hiramrsilva@gmail.com.



[1]    Bojar: tesar, esticar. (Hiram Reis)

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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