Quarta-feira, 3 de maio de 2023 - 06h05
Bagé, 03.05.2023
XIX
Renasce a Confiança. Restabelece-se a
Disciplina. Passagem do Miranda. Os Canhões. Ainda o Inimigo. Tomamos-lhe
Alguns Bois que Oferecem Ótimo Recurso. Marcha Forçada. Vencemos Sete Léguas!
Canindé.
Apenas assumiu o comando, publicou o Major
José Tomás Gonçalves uma Ordem do Dia em que, apelando para a coragem e os
sentimentos de honra individuais para conjurar o perigo geral, assinalava,
como única tábua de salvação, a marcha rápida sobre Nioaque, a todo o transe.
Imprimiu o tom vivaz desta proclamação um
frêmito de excitação moral útil para a restauração de um estado sanitário que,
dia a dia, melhorava, e fazer seguir ao abatimento dos espíritos as felizes
disposições ardorosas do novo Chefe. Recomeçando os clarins a dar os toques
de ordem, às horas fixas tocaram a recolher.
Já havia alguns dias que não os ouvíamos
mais; e uma única corneta do Quartel-General, tristemente, indicava a sucessão
das horas. Mas o que, sobretudo, causou viva e agradável surpresa foi, da
outra margem do Rio, escutarmos as cornetas do nosso Corpo de Caçadores, que
nos davam o troco. Velava, pois, ainda, sobre nós, a regra militar; cessara o
isolamento.
A distribuição de nossas forças parecia
tê-las dobrado, por toda a parte, restabelecendo a confiança e o prestígio da
disciplina. Desperta sempre uma mudança de Chefe a atenção geral e
poderosamente a agita, à espera da primeira manifestação sensível. O que não
dissera a Ordem do Dia do novo Comandante exprimiram-no os atos. Tornara-se
José Tomás Gonçalves a personificação da ordem e era o seu órgão. Fez
sentir-lhe a força a alguns recalcitrantes que ousavam tentar desobedecer-lhe.
Foi a repressão rápida, o que para as turbas constitui o sinal da legitimidade
do poder.
Estávamos a 30.05.1867; fora dada a ordem de
se transpor o Rio e tudo se determinara previamente. Regularizou-se o vaivém já
colocado. Soldados que, isoladamente, haviam passado sem autorização foram
chamados da outra margem e reincorporados às unidades a que pertenciam após
severa admoestação por esta falta que, em campanha, e diante do inimigo,
facilmente se transmuta em crime contra a segurança geral. Um sargento que,
nesta ocasião, faltara ao dever foi imediatamente rebaixado.
Bastou este ato de firmeza para reparar os
males que os quatro dias de moléstia do Comandante haviam causado à
disciplina.
Fizera o Cel Camisão o máximo empenho em
mantê-la; mas ele não dispunha, como o sucessor, nosso novo Chefe, do dom de
tornar fácil e agradável o cumprimento do dever, graças aos modos afáveis; e
embora estimado e respeitado pelas tropas, que nele viam um militar leal,
vigilante, dedicado aos interesses da justiça e da humanidade, como o gênio
concentrado lhe desse um aspecto habitualmente sofredor, acabara como por
incutir que, com efeito, a desgraça sobre ele adejava, coisa que ele próprio
parecia recear.
Nada há mais funesto ao crédito da
autoridade: seja este o nosso último conceito sobre tão atribulada existência. Quando,
ao sinal convencionado, começou a passagem que, como já dissemos, fora
determinada, tivemos sob os olhos um espetáculo interessante. Já se verificara,
por meio de bons nadadores, a força de resistência do cabo, sob pesos assaz
consideráveis. Agora, homens, em número sempre crescente, mas calculado, dele
se suspendiam mudando as mãos, enquanto os corpos, completamente estirados pela
velocidade da água à superfície, avançavam de empuxão em empuxão acabando, não
sem esforço nem perigo, por atingir a margem oposta.
Assim passou todo o 20° Batalhão. Depois dele
vimos coléricos tentar vencer o passo, e consegui-lo não somente, como até
ainda da prova se saírem alguns completamente curados.
Alguns houve também que se afogaram; procurávamos
no começo, por meio de boas palavras, convencê-los a que esperassem; mas como
tivessem presenciado o abandono dos enfermos, ainda tão recente, não lhes saía
da mente a previsão de igual destino. Não houve consideração que os levasse a
aceitar manterem-se à retaguarda. Teria sido preciso empregar a força para
contê-los; fora prudente e justo deixá-los correr os riscos de um acaso cujos
perigos queriam afrontar como se alguma mercê implorassem.
Neste ínterim haviam armas e cartuchame sido
transportados, em pelotas, com alguns enfermos quase agonizantes, a quem este
favor não pudera ser recusado, no estado de agitação convulsiva em que os punha
a rapidez dos nossos preparativos e, principalmente, a partida de outros
coléricos que tinham tido forças para passar pelo cabo.
Achando o comandante que já havia bastante
gente do outro lado do Rio, resolveu que, no dia seguinte, se transportassem
as nossas quatro peças de artilharia.
No meio de todas as nossas calamidades
haviam-se elas constituído em motivo de viva inquietação. Abandoná-las como
troféus ao inimigo era inadmissível. Já outrora, em Conselho de Guerra,
deliberara o Cel Camisão a seu respeito, daí resultando uma ata autorizando o
comandante a fazê-las, em caso de premente necessidade, desaparecer no leito de
algum caudal, à maior profundidade possível, de modo que se pudesse sempre,
mais tarde, ir buscá-las, acaso por elas se interessasse o sentimento nacional.
Conhecíamos os paraguaios, porém; que
precauções poderiam ocultar-lhes tal depósito? De sobra sabiam o que tais armas
lhes haviam custado para que elas pudessem escapar às pesquisas prováveis que
não deixariam de fazer. Fosse como fosse, ainda não nos havia sido imposto tal
sacrifício, era, sobretudo, para salvar os canhões que o Major José Tomás
Gonçalves tivera a ideia da instalação do cabo, e, tomado de legítimo
entusiasmo, assistira ao seu feliz ensaio.
A 31, com a mais viva animação, puseram todos
mãos à obra; não houve quem se não prestasse, quer para trazer à ribanceira a
primeira peça, quer para multiplicar os nós da amarração em torno dos troncos
de árvores da margem e os consolidar, quer ainda para a fixação das polias que
deviam facilitar o transporte. Moveu-se, afinal, a boca de fogo e quando
puxada, de modo a escorregar ao longo do cabo, por diversas juntas de bois
colocadas na ribanceira oposta, pareceu seguir regularmente, estrepitosas
aclamações ergueram-se, em ambas as margens, acompanhando-a até que saísse
d’água.
No meio da corrente tanto fizera
o cabo bojar ([1])
que lhe receáramos o desaparecimento completo. Menos feliz foi a segunda peça:
escapou de uma das alças, arrancou as demais e caiu no fundo do Rio.
Pouco faltou para que o cabo se não rompesse.
Resistindo a tão forte tensão e, de repente, liberto do peso que o
sobrecarregava, fustigou a água com enormes jatos de espuma, deixando, contudo,
o canhão no fundo d’água. Felizmente, a nenhuma vida comprometeu o incidente
que, em ambas as margens, provocou intensa agitação. Um soldado, cujo nome
merece ser recordado, Damásio, ofereceu-se imediatamente para mergulhar no
ponto da imersão, e, tendo conseguido reconhecer o fundo, pode, após 2 ou 3
emersões, para tomar fôlego, passar em torno da peça uma corda de que se
provera e serviu para a puxar. Foi a lição aproveitada quanto aos cuidados
tomados com a amarração das demais bocas de fogo e apressou o resto da
operação, permitindo completar a passagem à tarde daquele dia e na manhã
seguinte.
A 01.06.1867, à tarde, achamo-nos todos,
afinal, reunidos em torno da casa de Lopes, no seu pomar por nós despojado dos
frutos, e logo, sem mais repouso ou alimento, recomeçamos a caminhar. O
inimigo, que passara para a margem direita, lançou então os seus atiradores
contra a nossa retaguarda. O bizarro Pisaflores, que, com a costumada galhardia,
não tardou em repelir este novo assalto; o único inconveniente daí resultante
foi obrigar-nos a uma parada que nos deteve até a vinda da noite, que nesta
estação chega cedo. Embora não tivesse havido contramandado algum, e apenas se
interrompesse a marcha, não foi sem alguma surpresa que, logo após o toque de
recolher costumeiro, ouvimos as cornetas dar o sinal da partida imediata.
Tornou-se a impressão tanto mais viva e
penosa quanto a escuridão se tornara mais profunda, prenunciando-se próximo
temporal e mais violento ainda. Cada qual, no entanto, compreendeu a
necessidade urgente de transpor, custasse o que custasse, o espaço que nos
separava da Vila de Nioaque, quando o menor atraso de nossa parte podia
causar-nos o aniquilamento total. Recomeçamos, pois, a marcha, indo à
vanguarda o Cap José Rufino, que conhecia bem o caminho. Por mais sombria e
tempestuosa que estivesse a noite não nos ocultava a estrada que diante de nós
se abria, larga e plana.
Caminhávamos a passo dobrado. Restavam-nos
poucos doentes, havendo vários falecido nos dias antecedentes, e entre eles o
Alferes Muniz. No entanto, os soldados que se revezavam em carregar as padiolas
começavam a murmurar ameaçando desvencilhar-se da carga. Este princípio de insubordinação
que tudo poderia arruinar, não teve, contudo, tempo para progredir. Avisado,
saiu o Comandante, a todo galope e de espada desembainhada, sobre os rebeldes,
encontrando-os a implorar perdão. Desde este momento reinou o silêncio na
coluna, em obediência às ordens dadas.
Subitamente, no meio da estrada, surgiu uma patrulha paraguaia, a quem o
zunir do vento e o ribombo do trovão haviam encoberto qualquer suspeita de
nossa aproximação; e, ainda, sem que os seus cães, a ladrar, ou o gado, a mugir,
houvessem dado o alarma. Caminhando à frente da coluna, mandou nosso Comandante
que estacássemos e deu ordem que nos preparássemos a carregar à baioneta sobre
o acampamento inimigo. Mas já este a toda a pressa se retirava, deixando-nos o
passo livre; nem tempo teve de reunir todo o gado que tangia; estremalharam-se
alguns bois que apresamos; circunstância para nós de inestimável valor; era a
própria vida. Apesar da urgência que nos impelia a avançar, não foi possível
recusar aos soldados o tempo necessário para carnear algumas das reses
apanhadas e comer um pouco da carne, às pressas assada. Carregou-se o resto
para as necessidades futuras.
Atravessando o posto abandonado, tomaram os
soldados o que ainda ali havia de víveres e até couros, que a penúria de dias
precedentes lhes fazia considerar como último e precioso recurso contra a
inanição. Recomeçando a caminhar acompanhou-nos a chuva ainda, sem que a nossa
marcha por isto se atrasasse, embora, de tempos a tempos, nos víssemos
forçados a estacar à espera da artilharia. Nos lugares piores retardava-se e,
com ela, o Batalhão da retaguarda, encarregado de escoltá-la. Daí,
frequentemente, resultava, para a nossa marcha, perturbação tanto maior quando
as ordens eram transmitidas ao longo da coluna, por meio de agudos gritos,
sujeitos a interpretações diversas.
Avançamos, apesar de tudo, até às 04h00.
Dado, então, o sinal de alto, estropiados, e quase sonâmbulos deixamo-nos cair
no chão enrolados nos ponchos encharcados como o capim que nos servia de colchão.
Duas horas mais tarde, às 06h00, estávamos de pé e graças ao que havíamos
ingerido, sentindo-nos mais fortes prosseguimos, sob um céu sereno e uma
atmosfera tépida, a nossa intérmina caminhada para Nioaque, por toda a parte
percebendo, sobre a estrada, onde os paraguaios nos precediam, o rasto de seus
cavalos.
Desde a última parada atravessávamos cerrado
matagal, onde os soldados, já não mais temendo o ataque da cavalaria,
marchavam com segurança, mais afastados uns dos outros.
Sabíamos que graças ao campo raso só os
veríamos depois de Canindé. Foi às 14h00 que avistamos a mata desse nome, que é
o do Rio que a corta. A ele chegamos às 15h00, tendo vencido sete léguas,
motivo de espanto geral, dada a fraqueza em que nos achávamos. Ao atravessarmos
o Rio deparou-se-nos o cadáver de um capataz de carretas, chamado Apolinário, a
quem os paraguaios acabavam de matar. Pertencia ao comboio daqueles mascates
parados na Machorra, à espera de notícias e que, com os boatos dos combates de
08 e 09.05.1867, segundo os quais passáramos como perdidos, cuidaram de
retroceder. Vinte dias tinham gasto para atingir o Canindé, onde encontraram
os boiadeiros que ali nos deviam entregar uma boiada, mas, antes de nossa
chegada, haviam uns e outros caído nas mãos do inimigo. (TAUNAY, 1874)
(Continua...)
Bibliografia
TAUNAY, Alfredo de Escragnolle. A Retirada da Laguna: Episódio da Guerra do Paraguai – Brasil – Rio
de Janeiro, RJ – Tipografia Americana, 1874.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira
(SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H