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Hiram Reis e Silva

Terceira Margem – Parte DLXXXII - Jornada Pantaneira - A Retirada da Laguna –Parte XX


Terceira Margem – Parte DLXXXII - Jornada Pantaneira - A Retirada da Laguna –Parte XX - Gente de Opinião

Bagé, 05.05.2023

XX

Marcha Sobre Nioaque, que Apenas Dista Duas Léguas. O Inimigo Rodeia Continuamente a Coluna.
O Mascate Italiano Saraco.

À vista do cadáver estendido à margem do Canindé, não tivemos mais dúvida a respeito da perda do comboio todo, da morte dos mascates e o saque das provisões que traziam, além dos objetos que se propunham comercializar por conta própria. O que houvera sido necessário fazer, fora chegar dois dias mais cedo ao Canindé.

Teríamos, então, encontrado e protegido estes via­jantes desarmados, que regulavam sua marcha pela nossa e de quem dependera sempre grande parte do nosso abastecimento; enfim, e, sobretudo, preserva­ríamos de triste fado a Vila de Nioaque que, eviden­temente, ia ser completamente arrasada. Tudo isto compensaria, bastante, um pouco de diligência, se para tanto fôssemos capazes.

A observação maligna que daí decorreu, formulada a modo de acusação, como sói sempre acontecer na adversidade, provocou entre os oficiais, naquele mesmo local, discussão bastante azeda.

Não foi, porém, difícil daí deduzir-se uma justificação completa dos movimentos da coluna, desde que se soubera da chegada a Machorra do desastrado com­boio.

Para apenas falar dos últimos dias: acaso fora exequível mais rápida marcha? Não estava de sobra provada a fadiga excessiva que ela nos valera?

Não devêra­mos à obrigação de salvar os canhões, o atraso de dois dias, decorridos entre a morte do Cel Camisão e a partida da estância do Jardim?

E se quiséssemos ir além, até o momento em que preferíramos o atalho proposto por Lopes, convinha não esquecer que, para tal escala, entre diversas vantagens, preponderara a consideração do interesse dos mercadores que era deles desviar o inimigo, atraindo-o sobre nós.

Tomássemos a estrada batida para ir ao seu encon­tro, e protegê-los, como parecia plausível, era mais que provável houvéssemos todos sucumbido, nós e eles, até o último. Apanhando-os conosco não os te­ria a cólera poupado menos do que a nós no itine­rário então escolhido, fosse porque já lhes transpor­tássemos o germe ou os paraguaios nos houvessem contaminado.

Quanto aos contínuos ataques com que nos haviam atormentado, muito maior número de ensejos lhes teríamos proporcionado se precisássemos atravessar tantos Rios: o Feio, o Santo Antônio, o Desbarran­cado. Aí o comboio mais nos estorvaria, pois não estaríamos em condições de defendê-lo.

Se algum erro se cometera, devia ser atribuído aos próprios mascates, quando ao passarem pela Colônia de Miranda, tinham recusado ouvir os conselhos de Vieira de Resende, um deles, o mesmo que víramos figurar na tomada de Bela Vista. Propusera-lhes este homem, Tenente da Guarda Nacional de Goiás, nortear a marcha do comboio para a estância do Jardim, a cinco léguas, apenas, da Colônia.

Ali tratariam de se emboscar na mata do Rio, à espera de nossa coluna, que não podia deixar de lá chegar. E, com efeito, sua marcha para o Norte assi­nalava-a no horizonte a fumaça dos incêndios que diante dela se renovavam sem conseguir detê-la. Mesmo que se aventasse alguma hipótese funesta, as vinte e duas carretas de mercadorias teriam formado excelente entrincheiramento contra o embate, quando muito momentâneo, de um troço de cavalaria, pois que, aliás, não podíamos, de modo algum, tardar em vir libertá-los. Debalde tentara Vieira Resende fazer ainda valer uma consideração decisiva, em relação a mercadores; acenara-lhes com o ensejo de venderem as mercadorias com belo lucro, exatamente no momento em que famintos iríamos sair daquelas planícies devastadas pelo fogo.

Nada pudera persuadi-los. O lado militar de tal proj­eto, muito de acordo com as tendências aventurosas de quem o advogava ‒ era esta a opinião geral – as­sustou aquela gente cujos sobressaltos cresciam na razão direta dos boatos de catástrofe que por toda a parte propalavam os nossos desertores. Persistiram na marcha para Nioaque, pelo Canindé. Ali os alcançaram os paraguaios e os dispersaram, à primeira descarga; depois, saqueadas as carretas, empenharam-se em lhes prender os retardatários donos, atrapalhados como muitos deles estavam pe­los objetos mais preciosos de suas cargas, que se não haviam disposto a abandonar.

Inexoravelmente perseguidos fácil lhes fora, no en­tanto, graças a um pouco de firmeza, colocar-se sob a nossa salvaguarda. Ao chegarmos ao Canindé nada mais ali havia do que destroços de toda a espécie, juncando os dois lados da estrada alguns montes nauseosos de farinha e arroz, amalgamados pelas bátegas de chuva, no meio das poças d’água do solo.

Ninguém jamais imaginara que este horrível amon­toado de gêneros, quase irreconhecíveis, pudesse ser a causa de séria colisão, quase de um motim. Tal, porém, o império do organismo debilitado, tais os reclamos dos estômagos desde muito privados de alimento, que os soldados nele procuravam repasto com a avidez das feras que devoram uma presa.

Todos para ali quiseram precipitar-se; romperam-se as fileiras, num tumulto inexprimível, no meio de um misto ensurdecedor de queixas, ameaças, vocifera­ções e risadas idiotas, à vista daquele pasto imundo onde cada qual pretendia saciar-se. Quiseram a prin­cípio os oficiais interpor a sua autoridade, vendo-se, porém, desrespeitados. Então um deles, o Tenente Benfica, injuriado por estes alucinados, atracou-se com um deles, derrubou-o e o dominou com o re­vólver.

A surpresa causada por este ato de energia começou por conter a multidão. Passado este primeiro mo­mento apaziguara-se geralmente, quando súbito ir­rompeu o grito: o inimigo! Quer houvesse este sido realmente divisado, quer se tratasse de expediente empregado, graças à feliz inspiração, para que sur­gisse uma diversão, ficou o asqueroso repasto es­quecido. Não teve esta desordem consequências. Fingiu o Comandante ignorá-la como provindo do excesso de nossas misérias e ativando, para um pouco mais longe, esta marcha, para a qual já se não tornavam suficientes as nossas forças, ordenou logo que fizéssemos alto e tratássemos de acampar.

Foram as disposições tomadas pelo novo Ajudante do Quartel-Mestre, Tenente Catão Roxo, nomeado subs­tituto do Ten Cel Juvêncio. Passara o Cap Lago a exercer o cargo de Assistente do Ajudante General, o Tenente Escragnolle Taunay o de Secretário-Geral adido ao comando.

Ficara o Tenente Barbosa o único representante da Comissão de Engenheiros recém-dissolvida. Duas léguas, apenas, nos separavam de Nioaque e o Comandante, para avisar a nossa chega­da, fez disparar, ao mesmo tempo, as nossas quatro peças, acompanhadas de um fogo rolante ([1]) de todos os Batalhões.

Nesta ocasião percebeu nossa gente a irregularidade do tiro pelo fato de que muito haviam as últimas chuvas deteriorado o armamento. Assim, pôs-se lo­go, e por si, a repará-lo e experimentá-lo várias ve­zes, a apostar quem atiraria melhor e mais depressa: luta improvisada que desvaneceu qualquer vestígio de torpor, chegando, aos últimos clarões do dia, a tomar festivo aspecto.

A esperança de melhores dias está sempre pronta a renascer no coração dos homens. Nova fase de existência, realmente, como despontara; despertara a vida e o nosso horrível passado da véspera a fome, a morte, sob todos os aspectos já não nos apareciam mais senão como as alucinações de um pesadelo.

Não é que os pensamentos tristes não nos assaltas­sem mais, após as realidades que presenciáramos. Contássemos quantos agora éramos! Quantos fal­tavam! Soavam os clarins e folgávamos em ouvi-los; mas que era feito das músicas de nossos Batalhões?

Companheiras das primeiras provações da Expedição nos pantanais de Miranda, ainda luzidas, ao invadir­mos o solo paraguaio, não demorara que as dizimas­se o fogo inimigo. Logo depois, à medida que as nos­sas fileiras rareavam, fora necessário dentre elas re­crutar soldados. Viera a cólera acabar a obra destrui­dora, prostrando quatorze músicos dos que haviam pertencido ao Batalhão de Voluntários de Minas.

Rapidamente percorremos, no dia seguinte, a distân­cia até Nioaque, observando com rigor a formatura adotada para atravessar os campos; e o inimigo que nos perseguia a retaguarda não ousou empreender nenhum ataque. Mostrou-se, pelo contrário, muito afoito em bater em retirada, sempre que lhe aconte­ceu ficar ao nosso alcance.

Costeávamos a margem esquerda do Nioaque, e como estivessem a pastar uns bois de tiro, que os carreiros do comboio de mascates haviam abando­nado, puseram-se alguns cavaleiros paraguaios a persegui-los. Uma companhia do nosso 21° e uma peça foram então mandadas contra eles.

Voltaram rédeas incontinentes e com tanta precipi­tação que provocaram o riso geral e as vaias de nos­sa gente. Era o vau bom; e sem mais demora o atra­vessamos. À margem direita encontramos o rasto ainda fresco da passagem de muita cavalaria e grande quantidade de papéis rasgados, livros, talões oficiais, sujos e dilacerados que evidentemente pro­vinham do saque de alguma carreta brasileira, apri­sionada naquele ponto pelo inimigo e destruída, ou por ele levada.

Algumas fumaças no horizonte ainda nos revelavam a presença do adversário e, pelo conhecimento que da permanência naquelas localidades obtivéramos, supusemos que os paraguaios acabavam de incen­diar uma espécie de aldeia, de palhoças, que ali havíamos construído. Fez-nos isto apressar o passo e ao primeiro relance reconhecemos que não nos enganáramos.

As 15h00, estávamos no meio dessas ruínas abrasa­das que habitáramos e a que deitamos último e me­lancólico olhar; o soldado e o viajante interessam-se sempre pelos lugares onde repousaram.

Muito a propósito veio um incidente de ópera-bufa distrair-nos desta impressão tristonha: a reaparição daquele italiano que, já no acampamento da Laguna, nos divertira com as suas jogralices ([2]). Contara-se, mas inexatamente, que morrera, com os outros mascates que, por assim dizer, haviam desertado das nossas fileiras ao atravessarmos o Rio Miranda.

Deles, habilmente se separara, vagara entre Canindé e Nioaque, sem noção do ponto para onde devia ru­mar, indo de moita em moita, a tremer de medo, não encontrando uma só que lhe inspirasse confian­ça. Acabara, no entanto, fazendo uma escolha e com tanta felicidade que, naquele mesmo dia, pudera do seu refúgio ver o avanço da nossa coluna. Fora-lhe a alegria tão viva que, por pouco, lhe ia sendo funesta.

O vestuário estrambótico e a precipitação dos movi­mentos fizeram-no passar por paraguaio. Nossos ati­radores da vanguarda sobre ele atiraram. Deixou-se, então, cair como morto, na macega. Após um lapso de prudente imobilidade começou a levantar deva­garzinho, no ar, na ponta de uma varinha, o cache­col; e depois, vendo que as balas não vinham, um braço, a cabeça; e, afinal, o corpo todo, que não era senão o do nosso amigo e velho conhecido Saraco. Reconhecendo-o imediatamente, encheram-no os soldados de abraços, cumprimentos e perguntas. Estava num estado de inexprimível êxtase, vendo-se escapo aos perigos onde crera deixar a vida, e de que se via salvo, e ainda barato, à custa da trouxa e de tantos momentos de pavor. Quanto ao inimigo haveríamos de nos avistar com ele apenas uma última vez, embora lhe tivéssemos ainda que sofrer o efeito da pérfida e cruel animosidade. (TAUNAY, 1874) (Continua...)

Bibliografia

 

TAUNAY, Alfredo de Escragnolle. A Retirada da Laguna: Episódio da Guerra do Paraguai – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Tipografia Americana, 1874.

 


 

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

 

Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)

Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);

Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);

Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);

Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)

Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);

Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);

Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);

Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)

Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);

Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)

Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).

Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).

E-mail: hiramrsilva@gmail.com.



[1]    Fogo rolante: disparo sucessivo e contínuo. (Hiram Reis)

[2]    As suas jogralices: a sua falta de seriedade; as suas palhaçadas; as suas zombarias. (Hiram Reis)

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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