Sexta-feira, 5 de maio de 2023 - 06h05
Bagé, 05.05.2023
XX
Marcha Sobre Nioaque, que Apenas Dista Duas
Léguas. O Inimigo Rodeia Continuamente a Coluna.
O Mascate Italiano Saraco.
À vista do cadáver estendido à margem do
Canindé, não tivemos mais dúvida a respeito da perda do comboio todo, da morte
dos mascates e o saque das provisões que traziam, além dos objetos que se
propunham comercializar por conta própria. O que houvera sido necessário fazer,
fora chegar dois dias mais cedo ao Canindé.
Teríamos, então, encontrado e protegido estes
viajantes desarmados, que regulavam sua marcha pela nossa e de quem dependera
sempre grande parte do nosso abastecimento; enfim, e, sobretudo, preservaríamos
de triste fado a Vila de Nioaque que, evidentemente, ia ser completamente
arrasada. Tudo isto compensaria, bastante, um pouco de diligência, se para
tanto fôssemos capazes.
A observação maligna que daí
decorreu, formulada a modo de acusação, como sói sempre acontecer na
adversidade, provocou entre os oficiais, naquele mesmo local, discussão
bastante azeda.
Não foi, porém, difícil daí deduzir-se uma
justificação completa dos movimentos da coluna, desde que se soubera da chegada
a Machorra do desastrado comboio.
Para apenas falar dos últimos dias: acaso
fora exequível mais rápida marcha? Não estava de sobra provada a fadiga
excessiva que ela nos valera?
Não devêramos à obrigação de salvar os
canhões, o atraso de dois dias, decorridos entre a morte do Cel Camisão e a
partida da estância do Jardim?
E se quiséssemos ir além, até o momento em
que preferíramos o atalho proposto por Lopes, convinha não esquecer que, para
tal escala, entre diversas vantagens, preponderara a consideração do interesse
dos mercadores que era deles desviar o inimigo, atraindo-o sobre nós.
Tomássemos a estrada batida para ir ao seu
encontro, e protegê-los, como parecia plausível, era mais que provável
houvéssemos todos sucumbido, nós e eles, até o último. Apanhando-os conosco não
os teria a cólera poupado menos do que a nós no itinerário então escolhido,
fosse porque já lhes transportássemos o germe ou os paraguaios nos houvessem
contaminado.
Quanto aos contínuos ataques com que nos
haviam atormentado, muito maior número de ensejos lhes teríamos proporcionado
se precisássemos atravessar tantos Rios: o Feio, o Santo Antônio, o Desbarrancado.
Aí o comboio mais nos estorvaria, pois não estaríamos em condições de
defendê-lo.
Se algum erro se cometera, devia ser atribuído aos próprios mascates,
quando ao passarem pela Colônia de Miranda, tinham recusado ouvir os conselhos
de Vieira de Resende, um deles, o mesmo que víramos figurar na tomada de Bela
Vista. Propusera-lhes este homem, Tenente da Guarda Nacional de Goiás, nortear
a marcha do comboio para a estância do Jardim, a cinco léguas, apenas, da
Colônia.
Ali tratariam de se emboscar na mata do Rio, à espera de nossa coluna,
que não podia deixar de lá chegar. E, com efeito, sua marcha para o Norte assinalava-a
no horizonte a fumaça dos incêndios que diante dela se renovavam sem conseguir
detê-la. Mesmo que se aventasse alguma hipótese funesta, as vinte e duas
carretas de mercadorias teriam formado excelente entrincheiramento contra o
embate, quando muito momentâneo, de um troço de cavalaria, pois que, aliás, não
podíamos, de modo algum, tardar em vir libertá-los. Debalde tentara Vieira
Resende fazer ainda valer uma consideração decisiva, em relação a mercadores;
acenara-lhes com o ensejo de venderem as mercadorias com belo lucro, exatamente
no momento em que famintos iríamos sair daquelas planícies devastadas pelo
fogo.
Nada pudera persuadi-los. O lado militar de
tal projeto, muito de acordo com as tendências aventurosas de quem o advogava
‒ era esta a opinião geral – assustou aquela gente cujos sobressaltos cresciam
na razão direta dos boatos de catástrofe que por toda a parte propalavam os
nossos desertores. Persistiram na marcha para Nioaque, pelo Canindé. Ali os
alcançaram os paraguaios e os dispersaram, à primeira descarga; depois,
saqueadas as carretas, empenharam-se em lhes prender os retardatários donos,
atrapalhados como muitos deles estavam pelos objetos mais preciosos de suas
cargas, que se não haviam disposto a abandonar.
Inexoravelmente perseguidos fácil lhes fora,
no entanto, graças a um pouco de firmeza, colocar-se sob a nossa salvaguarda. Ao
chegarmos ao Canindé nada mais ali havia do que destroços de toda a espécie,
juncando os dois lados da estrada alguns montes nauseosos de farinha e arroz,
amalgamados pelas bátegas de chuva, no meio das poças d’água do solo.
Ninguém jamais imaginara que este horrível
amontoado de gêneros, quase irreconhecíveis, pudesse ser a causa de séria
colisão, quase de um motim. Tal, porém, o império do organismo debilitado, tais
os reclamos dos estômagos desde muito privados de alimento, que os soldados
nele procuravam repasto com a avidez das feras que devoram uma presa.
Todos para ali quiseram precipitar-se;
romperam-se as fileiras, num tumulto inexprimível, no meio de um misto ensurdecedor
de queixas, ameaças, vociferações e risadas idiotas, à vista daquele pasto
imundo onde cada qual pretendia saciar-se. Quiseram a princípio os oficiais
interpor a sua autoridade, vendo-se, porém, desrespeitados. Então um deles, o
Tenente Benfica, injuriado por estes alucinados, atracou-se com um deles,
derrubou-o e o dominou com o revólver.
A surpresa causada por este ato de energia
começou por conter a multidão. Passado este primeiro momento apaziguara-se
geralmente, quando súbito irrompeu o grito: o inimigo! Quer houvesse este sido
realmente divisado, quer se tratasse de expediente empregado, graças à feliz
inspiração, para que surgisse uma diversão, ficou o asqueroso repasto esquecido.
Não teve esta desordem consequências. Fingiu o Comandante ignorá-la como
provindo do excesso de nossas misérias e ativando, para um pouco mais longe,
esta marcha, para a qual já se não tornavam suficientes as nossas forças,
ordenou logo que fizéssemos alto e tratássemos de acampar.
Foram as disposições tomadas pelo novo
Ajudante do Quartel-Mestre, Tenente Catão Roxo, nomeado substituto do Ten Cel
Juvêncio. Passara o Cap Lago a exercer o cargo de Assistente do Ajudante
General, o Tenente Escragnolle Taunay o de Secretário-Geral adido ao comando.
Ficara o Tenente Barbosa o único
representante da Comissão de Engenheiros recém-dissolvida. Duas léguas, apenas,
nos separavam de Nioaque e o Comandante, para avisar a nossa chegada, fez
disparar, ao mesmo tempo, as nossas quatro peças, acompanhadas de um fogo
rolante ([1])
de todos os Batalhões.
Nesta ocasião percebeu nossa gente a
irregularidade do tiro pelo fato de que muito haviam as últimas chuvas
deteriorado o armamento. Assim, pôs-se logo, e por si, a repará-lo e
experimentá-lo várias vezes, a apostar quem atiraria melhor e mais depressa:
luta improvisada que desvaneceu qualquer vestígio de torpor, chegando, aos
últimos clarões do dia, a tomar festivo aspecto.
A esperança de melhores dias está sempre
pronta a renascer no coração dos homens. Nova fase de existência, realmente,
como despontara; despertara a vida e o nosso horrível passado da véspera a
fome, a morte, sob todos os aspectos já não nos apareciam mais senão como as
alucinações de um pesadelo.
Não é que os pensamentos tristes
não nos assaltassem mais, após as realidades que presenciáramos. Contássemos
quantos agora éramos! Quantos faltavam! Soavam os clarins e folgávamos em
ouvi-los; mas que era feito das músicas de nossos Batalhões?
Companheiras das primeiras provações da
Expedição nos pantanais de Miranda, ainda luzidas, ao invadirmos o solo
paraguaio, não demorara que as dizimasse o fogo inimigo. Logo depois, à medida
que as nossas fileiras rareavam, fora necessário dentre elas recrutar
soldados. Viera a cólera acabar a obra destruidora, prostrando quatorze
músicos dos que haviam pertencido ao Batalhão de Voluntários de Minas.
Rapidamente percorremos, no dia seguinte, a
distância até Nioaque, observando com rigor a formatura adotada para
atravessar os campos; e o inimigo que nos perseguia a retaguarda não ousou
empreender nenhum ataque. Mostrou-se, pelo contrário, muito afoito em bater em
retirada, sempre que lhe aconteceu ficar ao nosso alcance.
Costeávamos a margem esquerda do Nioaque, e
como estivessem a pastar uns bois de tiro, que os carreiros do comboio de
mascates haviam abandonado, puseram-se alguns cavaleiros paraguaios a
persegui-los. Uma companhia do nosso 21° e uma peça foram então mandadas contra
eles.
Voltaram rédeas incontinentes e com tanta
precipitação que provocaram o riso geral e as vaias de nossa gente. Era o vau
bom; e sem mais demora o atravessamos. À margem direita encontramos o rasto
ainda fresco da passagem de muita cavalaria e grande quantidade de papéis
rasgados, livros, talões oficiais, sujos e dilacerados que evidentemente provinham
do saque de alguma carreta brasileira, aprisionada naquele ponto pelo inimigo
e destruída, ou por ele levada.
Algumas fumaças no horizonte ainda nos
revelavam a presença do adversário e, pelo conhecimento que da permanência
naquelas localidades obtivéramos, supusemos que os paraguaios acabavam de incendiar
uma espécie de aldeia, de palhoças, que ali havíamos construído. Fez-nos isto
apressar o passo e ao primeiro relance reconhecemos que não nos enganáramos.
As 15h00, estávamos no meio dessas ruínas
abrasadas que habitáramos e a que deitamos último e melancólico olhar; o
soldado e o viajante interessam-se sempre pelos lugares onde repousaram.
Muito a propósito veio um incidente de
ópera-bufa distrair-nos desta impressão tristonha: a reaparição daquele
italiano que, já no acampamento da Laguna, nos divertira com as suas jogralices
([2]).
Contara-se, mas inexatamente, que morrera, com os outros mascates que, por
assim dizer, haviam desertado das nossas fileiras ao atravessarmos o Rio
Miranda.
Deles, habilmente se separara, vagara entre
Canindé e Nioaque, sem noção do ponto para onde devia rumar, indo de moita em
moita, a tremer de medo, não encontrando uma só que lhe inspirasse confiança.
Acabara, no entanto, fazendo uma escolha e com tanta felicidade que, naquele
mesmo dia, pudera do seu refúgio ver o avanço da nossa coluna. Fora-lhe a
alegria tão viva que, por pouco, lhe ia sendo funesta.
O vestuário estrambótico e a
precipitação dos movimentos fizeram-no passar por paraguaio. Nossos atiradores
da vanguarda sobre ele atiraram. Deixou-se, então, cair como morto, na macega.
Após um lapso de prudente imobilidade começou a levantar devagarzinho, no ar,
na ponta de uma varinha, o cachecol; e depois, vendo que as balas não vinham,
um braço, a cabeça; e, afinal, o corpo todo, que não era senão o do nosso amigo
e velho conhecido Saraco. Reconhecendo-o imediatamente, encheram-no os soldados
de abraços, cumprimentos e perguntas. Estava num estado de inexprimível êxtase,
vendo-se escapo aos perigos onde crera deixar a vida, e de que se via salvo, e
ainda barato, à custa da trouxa e de tantos momentos de pavor. Quanto ao
inimigo haveríamos de nos avistar com ele apenas uma última vez, embora lhe
tivéssemos ainda que sofrer o efeito da pérfida e cruel animosidade. (TAUNAY,
1874) (Continua...)
Bibliografia
TAUNAY, Alfredo de Escragnolle. A Retirada da Laguna: Episódio da Guerra do Paraguai – Brasil – Rio
de Janeiro, RJ – Tipografia Americana, 1874.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira
(SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
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