Segunda-feira, 8 de maio de 2023 - 07h05
Bagé, 08.05.2023
XXI
Nioaque. Decepção; Encontramos a Vila
Saqueada, Incendiada e Quase Destruída Pelos Paraguaios. Infernal Ardil de
Guerra. Desaparece o Inimigo, Definitivamente. Regresso Pacífico do Corpo de
Exército. Ordem do Dia Sobre Esta Campanha de Trinta e Cinco Dias.
O oficial encarregado da defesa de Nioaque, durante a nossa incursão em
território paraguaio, ausentara-se da Vila, a 01.06.1867, sem que ali se
tivesse notícia da aproximação do inimigo, procedendo assim contra as ordens
terminantes de 22.05.1867 que lhe impunham a defesa, a todo o transe, de um
ponto que era a nossa base de operações.
Não é que os víveres lhe faltassem, longe disto, deixara-lhos abundantes
o Chefe da Intendência. Dar-se-ia o caso que os seus comandados, seduzidos pela
vizinhança do Rio, e suas matas, houvessem desertado, um após outro, até o
largarem inteiramente só? Mas aí estavam todos os oficiais do nosso corpo de
Exército concordes em atestar o espírito de submissão de nossos soldados aos
chefes.
Acaso se houvesse dado um “salve-se
quem puder” geral não teria podido aquele Comandante manter-se em
observação pela vizinhança, onde tantos acidentes de um terreno florestado lhe
podiam servir de abrigo, à espera de nossa chegada?
Afastaria, assim, de si, a responsabilidade, não somente da enorme perda
de material como do novo sacrifício de vítimas humanas fruto de tão funesto
abandono. Faltou-lhe o ânimo; desapareceu deixando ligado ao nome a
reminiscência de uma deserção em frente ao inimigo... Tanto mais sensível e
mais notada esta infidelidade quanto às demais providências do Cel Camisão, no
mesmo ofício, haviam com cuidado sido observadas.
As provisões de guerra e de boca, o arquivo, o dinheiro da pagadoria,
esperavam-nos nos morros, para onde os transportara o Coronel Lima e Silva;
enquanto ele próprio, de acordo com as instruções, estacado à margem do
Aquidauana, providenciava no sentido de encaminhar em primeiro lugar tudo o que
poderia preceder-nos, enfermos, mulheres, crianças, soldados desgarrados ou
inválidos. Cuidadosamente ordenara, aliás, aos condutores das carretas, que
serviam para estes diversos transportes, voltassem sem demora, apenas
desocupados, retendo ao mesmo tempo, ao seu lado, a maioria das viaturas
carregadas de víveres, de que fizera um depósito volante, tendo em vista a
nossa próxima chegada.
Assim abandonada passara Nioaque a ser a presa dos paraguaios. Tudo
haviam saqueado e queimado, salvo a igreja, poupada não por espírito religioso,
mas, pelo contrário, com o fito de a utilizarem num ardil infernal. Retirara-se
a sua infantaria ante a nossa aproximação, entrincheirando-se no cemitério.
Seguira, então, pela mata em direção a um vau do Orumbeva que a cavalaria
reconhecera. Sem preocupações quanto ao inimigo, fomos a toda a pressa ver o
que haveria ainda a salvar. Esta bonita povoação, abandonada, ocupada e pela
segunda vez, desde o início da guerra, devastada, convertera-se num montão de
destroços fumegantes.
O grande galpão que, outrora, nos servira de
armazém de mantimentos e ainda o achamos de pé, sobre os esteios incendiados,
mostrava renques de sacos que nossa gente, sem dúvida, não tivera tempo de
carregar e já serviam de pasto ao incêndio. O arroz e a farinha carbonizados,
exteriormente; o sal, gênero este tão escasso e precioso no interior do país,
negrejara e fundia sob as nossas vistas.
Não pouparam esforços os nossos soldados em
salvar o que puderam. Aqui e acolá jaziam muitos cadáveres, todos de
brasileiros. Constatamos que muitos dentre estes infelizes mortos haviam
servido em nossas fileiras.
Desertando por ocasião do exacerbamento de
nossas misérias, e morrendo de fome pelas matas, haviam se apressado, embora
correndo o perigo de serem reconhecidos, em tomar parte no saque. Fora um
deles, de pés e mãos amarrados, sangrando como um porco. Jazia outro, crivado
de feridas, e uma velha, estirada a seu lado, de goela aberta e seios
decepados, nadava no próprio sangue.
Foi quase toda a coluna acampar por esta
noite atrás da igreja, sobre o grande terrapleno que descrevemos e onde,
escalonados com os canhões nos ângulos, para maior segurança contra o inimigo,
nos apoiávamos à mata do Rio. Ali gozamos, enfim, um pouco de verdadeiro
descanso. Dupla e tripla ração se distribuiu; permitiam-no as circunstâncias;
sentia-se o Comandante feliz por contentar os soldados, quanto possível. Pela
primeira vez, e desde muito, podíamos contar com o dia de amanhã.
Restavam-nos, apenas, para nos
pôr fora de qualquer perigo eventual, fazer quinze léguas, a caminhar por
excelente estrada, de Nioaque ao Aquidauana, onde éramos esperados. E para tal
marcha tínhamos víveres sobejos.
Foi a noite calma, como tudo prenunciava
dever suceder. Apenas amanheceu fizeram os soldados uma visita às ruínas da
aldeia. Acabaram tomando tudo o que aos paraguaios escapara. Graças a esta
sucessão de roubos desaparecera, em alguns meses, destas terras novas o pouco
que o incipiente comércio ali introduzira, como mecanismos e ferramenta, tudo,
enfim, o que o trabalho conseguira juntar de frutos e poupança.
Durante a última estada em Nioaque
depositáramos na igreja muitos e diversos objetos, o instrumental das bandas de
música, munições de guerra etc.
Consta que os paraguaios encontraram ainda
muita coisa deste apetrechamento, não lhes havendo chegado o tempo para tudo
carregar. Existia ali grande reserva de cartuchos e foi, talvez, o que lhes
sugeriu a primeira ideia da horrível maquinação que tanto lhes condizia à
feição cruel.
Depois de carregarem o que mais poderiam
aproveitar, deixaram o resto por destruir, para nos engodar e nos reter o
maior lapso de tempo possível em torno de um amontoado de objetos, sob o qual
colocaram um barril de pólvora com rastilhos.
Não podíamos ter a menor suspeita de
semelhante cilada; e, à vista dos cartuchos que devíamos transportar, tomamos
as precauções costumeiras contra as eventualidades de uma explosão. Enquanto na
igreja trabalhava o nosso pessoal sentinelas vigiavam, a fim de que nenhum
fogo se acendesse pela vizinhança.
Ocorreu, contudo, que um infeliz soldado encontrasse pelo chão um
isqueiro, dentro do edifício, e lhe viesse a estapafúrdia ideia de utilizá-lo.
Saltou logo uma faísca sobre alguns grãos de pólvora dos que coalhavam a nave.
Sem a umidade do solo, então muito grande ou
acaso fossem os rastilhos contínuos, instantânea ocorreria a explosão. Para
melhor nos enganarem haviam os paraguaios espalhado a pólvora sóbria e desigualmente
com o minucioso cuidado, e os cálculos ardilosos do selvagem que preparara os
seus malefícios. Só se viu, a princípio brilharem pequenas chamas e aqui e
acolá se levantarem sucessivamente ligeiras espirais de fumaça.
Já os soldados se precipitavam para conter o
fogo, no momento em que ele tomava corpo, quando os oficiais presentes,
compreendendo melhor o perigo, ordenaram que imediatamente fosse a igreja evacuada.
A esta voz correram todos, em massa, para as portas; como o atropelo
perturbasse a saída, deu-se a explosão antes que toda a gente se achasse do
lado de fora. Pouco faltou para que todo o edifício voasse aos ares; foram as
paredes sacudidas, mas o conjunto resistiu; assim não sucedera e teriam todos
os nossos, que ali se achavam, infalivelmente perecido esmagados sob os
escombros.
Terríveis de se ouvir, até no ponto distante
em que nos achávamos com o Comandante, foram o estampido e o abalo. Grande
grito acompanhou a explosão seguida de silêncio, depois novo e horrível clamor
e ainda pausa. Soaram os clarins; julgando todos que era o inimigo, os corpos
entraram em forma.
Já nos precipitáramos para a
igreja; dela saíam, dentre turbilhões de fumo, irreconhecíveis formas,
fantasmas enegrecidos e avermelhados pelo fogo. Ardiam uns com as roupas em
chamas, outros completamente nus e cuja pele pendia em frangalhos, soltavam
urros; alguns ainda rodopiando como alucinados já se debatiam nas angústias da
agonia. Perdera um soldado negro toda a epiderme do rosto, arrancada como uma
máscara.
Eralhe o corpo sangrenta chaga. Um sargento,
cujas carnes se achavam inteiramente desnudadas, implorava, por misericórdia,
que o acabassem com uma bala ou um pontaço.
Morreram ali mesmo, no local, uns quinze
desventurados. Todos aqueles a quem podia a arte valer, ou para lhes diminuir
o sofrimento ou para salvá-los, passaram a ser o objeto do desvelo dos médicos
e das nossas preocupações. À nossa compaixão para com eles acrescia a
indignação contra os autores deste cruel atentado; não houve depois dentre as
vítimas arrebatadas à morte nenhuma cuja cura não saudássemos como verdadeira
felicidade geral.
Foi o adeus dos paraguaios, a última
demonstração de seu ódio contra nós. Sem nos abandonar de todo, porfiavam,
contudo, em só se deixar entrever fora de alcance.
A 05.06.1867, entretanto, ao raiar do dia,
saímos da infeliz e bela Nioaque, afinal, aniquilada com a sua igreja.
Seguíamos a estrada do Aquidauana e marchávamos penalizados sob a impressão
do funesto sucesso da véspera. A todas as vicissitudes atravessadas viera
ajuntar-se a angústia da véspera. Já era muito, porém, era legítimo triunfo
estarmos de pé e ter dominado um inimigo tão perfidamente encarniçado em nos
arruinar.
Foi o Orumbeva facilmente
transposto. À margem direita se nos deparavam destroços de carretas que os paraguaios
acabavam de queimar, muitos víveres e objetos de apretrechamento espalhados e
todos sujos de terra como já na barranca do Canindé encontráramos; cadernos
dilacerados, folhas soltas ao vento, notas, entre as quais o autor desta
narrativa reconheceu a própria letra, e agora truncadas e inúteis.
A alguma distância deste caudal
aguardava-nos, tal a primeira impressão, nova cilada, cujos efeitos foram,
contudo, muito diversos de um desfecho trágico. Duas pipas, daquelas em que se
conserva a aguardente de cana, ocupavam o meio da estrada. Lembrando-se da
explosão da igreja e temendo algum novo estratagema, da parte de um inimigo que
nenhum escrúpulo parecia poder conter, apressou-se o Capitão Pedro José Rufino
e precipitando-se sobre os tonéis arrombou-os com os copos da espada.
À vista do líquido, que a jorros corria,
alguns soldados não podendo conter-se, ajoelharam-se ou deitaram-se de
bruços, para alcançar o seu quinhão, espetáculo acolhido pelas gargalhadas, que
se generalizaram em toda a linha.
Não teve o incidente outras consequências:
pacificamente continuamos a marcha até o Ribeirão da Formiga, perto do qual
acampamos, ainda contemplados nesta nova fase de abundância pelo encontro de
bom número de bois, em ótimas condições.
A 06.06.1867, rumamos para Nordeste, seguindo
grande caminho a que numerosas moitas de taquaruçus dão o nome e aberto através
da mata cerrada, que tanto se presta a surpresas. Nada, porém, ali, nos
sobressaltou a marcha.
À medida que percorríamos estes terrenos a
nós familiares e aos paraguaios menos conhecidos, cada vez mais frouxa e
inofensiva se tornava a perseguição, embora não houvesse inteiramente cessado.
Fizemos neste dia ponto, junto a um lindo Ribeirão chamado das Areias.
No dia seguinte, 07.06.1867,
quase vencemos as quatro léguas que medeiam deste ponto ao Rio Taquaruçu.
Atingimo-lo a 08.06.1867 e, como a altura das
águas não nos permitisse vadeá-lo, acampamos à sua margem. Noite para nós
memorável, esta! Foi aí que os paraguaios, avistados a alguma distância, se
decidiram, enfim, a desaparecer. Deles próprios partiu o aviso da retirada,
com uma fanfarra prolongada de clarins que tal sinal deu, mais lisonjeiro a nós
outros de que a eles. Não se fizeram nossas cornetas rogadas, aliás, em
associar-se àqueles toques com um estrépito a cujos ecos estremeceram
longamente aquelas solidões. Soubemos, alguns dias mais tarde, que se haviam
dirigido para Nioaque, e, depois de recolhidas todas as suas patrulhas, pelo
Apa regressado ao território de sua República.
Quanto a nós, cada vez mais bem providos de
víveres, graças a um rebanho enviado das margens do Aquidauana, depois de um
ofício do nosso Chefe, ao Cel Lima e Silva, transpusemos, a 09.06.1867, o
Taquaruçu e, a 10.06.1867, duas léguas adiante, um Rio chamado Dois Córregos.
A 11.06.1867, chegamos ao porto do Canuto à margem esquerda do
Aquidauana. Tal o último trecho de nossa penosa retirada. Ali findou o doloroso
itinerário que, como expiação de nossas temeridades, nos fizera curtir tantas
misérias quantas pode o homem suportar sem sucumbir.
No Canuto nos despojamos dos miseráveis andrajos que nos cobriam,
libertando-nos, afinal, da mais horrível sevandija ([1])
e dos parasitos do campo, que, perfurando a pele, nela produzem dolorosas
úlceras.
Oferecia-nos o magnífico ensejo
para as nossas abluções. Todas estas paragens podem ser chamadas: a terra das
águas belas.
A 12.06.1867 baixou uma ordem do dia do nosso
valente Chefe José Tomás Gonçalves, em poucas palavras resumindo os
acontecimentos desta terrível campanha de trinta e cinco dias:
A retirada, soldados,
que acabais de efetuar, fez-se em boa ordem, ainda que no meio das
circunstâncias as mais difíceis. Sem cavalaria contra o inimigo audaz que a
possuía formidável, em campos onde o incêndio da macega, continuamente aceso,
ameaçava devorar-vos e vos disputava o ar respirável, extenuados pela fome,
dizimados pela cólera que vos roubou em dois dias o vosso Comandante, o seu
substituto e ambos os vossos Guias, todos estes males, todos estes desastres
vós os suportastes numa inversão de estações sem exemplo, debaixo de chuvas
torrenciais, no meio de tormentas de imensas inundações, em tal desorganização
da natureza que parecia contra vós conspirar. Soldados! Honra à vossa
constância, que conservou ao Império os nossos canhões e as nossas bandeiras!
(TAUNAY, 1874)
Bibliografia
TAUNAY, Alfredo de Escragnolle. A Retirada da Laguna: Episódio da Guerra do Paraguai – Brasil – Rio
de Janeiro, RJ – Tipografia Americana, 1874.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia
Brasileira (SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H