Segunda-feira, 5 de junho de 2023 - 07h05
Bagé, 05.06.2023
No dia consagrado, atualmente, à Arma de Engenharia do
Exército Brasileiro o jornal “O Globo”
publicou o artigo do Dr. Pinheiro Guimarães:
O Globo n° 97
Rio
de Janeiro, RJ – Sábado, 10.04.1875
Seção
Histórica
Guerra do Paraguai
Aniversário do Ataque da Ilha
do Cabrita
ou Da Redenção
Corria o mês de abril de 1866. Havia pouco mais de um ano que o Chefe
Supremo do Paraguai, fazendo-se o mantenedor do equilíbrio sul-americano, que
só ele pretendia romper, arrojara sobre os povos vizinhos desarmados e
desprevenidos suas hostes semibárbaras e fanatizadas.
Ao norte, na província de Mato Grosso, província remota, despovoada e limítrofe
do Paraguai, o pavilhão tricolor do povo guarani maculava ainda com a sua
sombra sangrenta o solo sagrado do Brasil; mas ao sul, revezes sobre revezes
tinham sucedido aos seus primeiros triunfos, filhos da surpresa e da felonia.
O exército aliado, composto em grande parte de homens que na véspera haviam
abandonado a enxada ou a lima, a pena ou o pincel, as lides do comércio ou os
trabalhos do gabinete, e que, reunidos às pressas em batalhões, sem disciplina
nem instrução, marcharam sobre o inimigo de que estavam separados por centenas
de léguas, havia esmagado 3.000 paraguaios em Jataí, aprisionado 5.000 em
Uruguaiana e enxotado da Confederação Argentina as numerosas falanges de
Resquin, enquanto a esquadra brasileira escrevia nos fastos heroicos da humanidade
essa página esplendente, que se chama a Batalha Naval de Riachuelo.
Deixando mais tarde os acampamentos da Lagoa Brava e de Tala-Corá, onde
demasiadamente se demorara, viera ele afinal fincar as suas, tendas na margem
esquerda do rio Paraná, em frente ao Passo da Pátria, Quartel General de López,
e ao alcance da artilharia do Itapiru, fortim erguido na ribanceira oposta pelo
pai do Ditador.
Saindo apressadamente do território argentino, o exército paraguaio abandonara
a ofensiva audaciosa com que começara a luta, e que lhe dera tão amargos
frutos, para colocar-se francamente na defensiva.
Desde então começam as retiradas, retiradas seguidas de longas paradas em
pontos protegidos, por obstáculos naturais, fortificados pela arte, e
entremeadas de ataques bruscos, de sortidas e surpresas mais, ou menos felizes,
porém sempre vigorosas e valentemente executadas. Terrível sistema, capaz de
eternizar a guerra por maiores que sejam os recursos, o valor e a superioridade
numérica dos adversários, quando for energicamente dirigido e posto em prática
com abnegação e coragem.
E López deu provas de uma energia inquebrantável, seu exército tinha o
valor e a disciplina que levam o soldado à morte certa sem cuidados, sem murmúrios,
sem hesitação; seu povo possuía bastante abnegação para, em obediência a uma
simples ordem, abandonar tranquilamente o lar, destruir as searas, afrontar a
fome e fugir do contato de um inimigo que lhe oferecia liberdade e proteção,
deixando-lhe somente campos talados ([1]),
árvores cuidadosamente despidas de frutos, e a água de seus brejos, onde
saciando-se a sede, muitas vezes se bebia a morte. Além disto, o país, cortado
de rios, coberto de -pântanos e de tremedais ([2]) sem fundo sobretudo na região por onde
podia ser mais facilmente atacado, eriçado de matas tropicais, quase sem
estradas e de séculos vedado ao estrangeiro, estava talhado para tais
operações. López compreendeu tudo isto, tarde para triunfar, se triunfar podia,
mas ainda em tempo de paralisar durante anos os esforços de três povos contra
ele coligados. Tendo o exército de Resquin transposto o Paraná, o ditador
reuniu-o às suas outras Forças, e postou-o na margem direita desse rio
colossal, interpondo assim um fosso enorme entre os seus canhões e as baionetas
da aliança. Fora executada a primeira retirada, ia ter lugar a primeira parada.
Primeira retirada, primeira
parada, que deviam ser seguidas de outras muitas, durante quatro anos, através
de todo o território paraguaio, desde o Passo da Pátria até o Aquidaban, e que
constituem outras tantas peripécias da epopeia da defesa, epopeia brilhante, se
o seu principal protagonista não aliasse a uma indomável tenacidade a fereza,
do tigre; se os outros personagens, grandes ou pequenos, não deixassem
transparecer, mesmo nos seus feitos mais notáveis, antes a obediência passiva
do escravo que morre porque o senhor lhe ordena, do que o entusiasmo viril do
cidadão que por impulso próprio à Pátria se sacrifica. Fazendo alto na margem
direita do Paraná, o Exército Paraguaio esperava o inimigo protegido por um
tremendo obstáculo que o aliados deviam transpor, se as nações que
representavam não se contentassem, como não se contentavam, em repelir a
invasão que tão brutalmente lhes fora levada. A expulsão de López das livres
terras da América, era para elas não só questão de ponto de honra; mas garantia
de um futuro tranquilo e desassombrado.
Derrocar de uma vez o fatal
sistema implantado por Francia no Paraguai, e que fazia do povo dessa república
um grande exército, feroz e disciplinado até o automatismo, afiada espada
sempre apontada aos peitos dos vizinhos, tornara-se para elas uma necessidade
indeclinável, se queriam afazer ([3])
os braços de seus filhos antes ao serviço do arado ou aos trabalhos da indústria,
do que manejo da lança e aos exercícios da artilharia, se ambicionavam vê-los a
labutar nas oficinas e herdades; e não aglomerados nas fronteiras, de
espingarda ao ombro e de patrona ([4])
à cinta.
Atravessar, porém, um grande
rio, guardado por um exército numeroso e valente, tendo-se de penetrar em
regiões desconhecidas e misteriosas, é sempre uma operação arriscadíssima. Era,
entretanto, preciso executá-la, o quanto antes. O tempo necessário para
prepará-la já parecia por demais longo às nações aliadas, que, ardendo na febre
da vingança, pediam em altos brados pronta e completa desforra dos insultos
recebidos.
Haviam entregue aos seus
generais o mais puro de seu sangue, posto a sua disposição todos os seus
tesouros, nem hesitavam em comprometer o futuro, nem as assombrava a miséria e
o luto.
‒ Vingai-nos,
diziam, e vingai-nos já!
Mas a responsabilidade dos
generais era imensa, as febres populares dissipam-se, a reflexão vem depressa
quando a despertam o pranto das mães, os gemidos dos órfãos e a áspera voz do
fisco a reclamar a maior parte do produto de afanoso labor.
Era
preciso atravessar o Paraná, perseguir a fera no seu antro, mas os que estavam
à testa do exército deviam assegurar, tanto quanto possível, um êxito feliz à
essa perigosa operação para que mais tarde não se lhes pedisse severa conta do
sangue inutilmente derramado, dos recursos esbanjados por falta de tino e de
prudência.
Entretanto, a impaciência que lavrava no ânimo dos povos aliados,
trabalhava também o espírito de seus exércitos; cumpria fazer-se alguma coisa,
tirá-los da inação em que haviam caído, do contrário se criaria, talvez, o
desânimo, ou, pelo menos, se adormeceria o nobre afã, a sede de combates de que
estavam animados.
Foi, cremos, principalmente sob a pressão dessas considerações que o
General em Chefe dos Exércitos Aliados acedeu ao plano apresentado em conselho
pelo então Major Dr. José Carlos de Carvalho, Chefe da Comissão de Engenheiros
do Exército Brasileiro. Esse distinto oficial, que mais tarde veio a sucumbir
no serviço do País, propunha, que fosse ocupada a ilha, ou antes o banco de
areia, que na vazante o Paraná deixa à descoberto em frente ao Itapiru.
Essa ideia fora muito impugnada. Fizera-se notar que a ocupação da ilha não
traria vantagens e sujeitaria as forças que nela teriam de permanecer ao fogo
do inimigo e a penosos sacrifícios. De posse dela, sem dúvida, de mais perto se
poderia bombardear o Itapiru, porém, este fortim mais facilmente seria
destruído pelos pesados canhões dos encouraçados do que pela pequena artilharia
do exército.
Ocupada a ilha facilitava-se a passagem do Paraná? Diretamente, de certo
que não. Indiretamente, talvez que sim, servindo essa ocupação para iludir os
paraguaios, se acaso estes supusessem tão loucos os aliados que fossem justamente
desembarcar em frente à ilha, do ponto mais guardado da margem paraguaia, e sob
o fogo dos canhões das suas fortificações.
Quer, porém, interviessem decisivamente, como cremos, as considerações de
ordem moral acima apontadas, quer não, o que fato é que o plano de ocupar-se a
ilha, foi abraçado pelo General em Chefe. Na noite do dia 5 de abril algumas
canoas guarnecidas por praças do exército, e conduzindo parte do 3° Batalhão de
Infantaria Brasileira, acompanhavam um vaporzinho em que iam o chefe e outros
membros da comissão de Engenheiros dirigindo-se da margem correntina para a
ilha, onde sem novidade chegaram.
Chefe e membros da Comissão de Engenheiros, oficiais e
praças do 3° de Infantaria em pouco tempo a percorreram. Estava deserta, e seu
solo completamente arenoso prestava-se a que em poucas horas nela se erguessem
fortificações passageiras. Feito o reconhecimento, regressou a expedição. No
dia seguinte, 6 de abril, reinava notável animação nos arraiais do Exército
Brasileiro. Sabia-se já que se ia ocupar a ilha naquele mesmo dia, e esse ato
de franca ofensiva exaltava os espíritos. (O Globo n° 97) (Continua...)
Bibliografia
O GLOBO N° 97. Aniversário do Ataque da Ilha do Cabrita ou
Da Redenção – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – O Globo n° 97, 10.04.1875.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia
Brasileira (SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande
do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
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