Quarta-feira, 7 de junho de 2023 - 07h42
Bagé, 07.06.2023
Na beira do rio batiam-se os últimos pregos das jangadas que deviam servir
ao transporte, nos acampamentos dos corpos dava-se a última de mão aos cestões
e salsichões, que se estavam preparando havia dias; no Quartel Mestre
recebiam-se milhares de sacos entregues pelos fornecedores, e na Comissão de
Engenheiros reuniam-se pás, enxadas e picaretas.
À tarde, estava tudo pronto
e, em jangadas, canoas e pequenos vapores, foram embarcados cestões, sacos,
salsichões, utensílios de sapa, munições de boca e de fogo, 4 canhões e outros
tantos morteiros; os primeiros, pertencentes à 1ª Bateria do 16° Batalhão de
Artilharia a pé, sob o comando do Capitão Francisco Antonio de Moura, os
segundos, constituindo uma Bateria Especial, sob o comando do Capitão Antonio
Tibúrcio Ferreira de Souza.
Depois, chegou a vez de embarcarem-se o 14° de Infantaria, formado em
grande parte por guardas nacionais do município neutro e comandado pelo Major
José Martini; o 7° de voluntários, organizado em S. Paulo e comandado pelo
Tenente-coronel Francisco Joaquim Pinto Pacca; um contingente do Batalhão de
Engenheiros, sob o comandado do Capitão Brazílio de Amorim Bezerra.
O embarque de todo esse pessoal, 900 homens, e sobretudo de tão pesado
material, consumiu toda a tarde e os primeiros momentos da noite.
Concluído ele, jangadas e canoas, a reboque dos pequenos vapores,
puseram-se a caminho para a ilha, e a ela aportaram já a hora avançada, sem
terem sido incomodados pelo inimigo, a quem, de certo, não haviam escapado os
preparativos da expedição, mas que ignorava o seu destino. A ilha como já
dissemos, é um simples banco de areia, completamente submergido nas grandes cheias
do Paraná.
Tem uma forma um tanto oval e o seu maior diâmetro fica paralelo às margens
do rio. Está muito mais próxima do território paraguaio, a que pertence do que
do correntino, mas á ainda separada daquele por um canal assaz largo e, como
depois se soube, bastante profundo.
Quando nela desembarcou a
expedição estava em grande parte coberta de, alta e espessa macega. Dominava-a
o fortim do Itapiru, ao alcance de um tiro de carabina. A bateria desse fortim,
e as que os paraguaios colocassem na margem do rio, poderiam facilmente
varrê-la. A posição seria, pois, insustentável, se os ocupantes não tratassem
logo na mesma noite de seu desembarque, de levantar seguras trincheiras que os
abrigassem na manhã seguinte das balas, que, era de esperar, choveriam sobre
eles. Foi esse o primeiro cuidado do Tenente-coronel João Carlos de Villagran
Cabrita, comandante da Força, Expedicionária. Com uma atividade digna dos
maiores encômios traçou logo a linha das trincheiras e distribuiu o trabalho
entre os seus subordinados, que com ardor puseram mãos à obra.
Os cestões e os salsichões estavam preparados; não faltava areia para
encher os sacos; sobravam enxadas e pás para cavar um terreno pouco
consistente; os braços eram robustos e diligentes.
Estes preparam o fosso, aqueles enchem os sacos, outros os empilham e
colocam cestões e salsichões.
Durante toda a noite estes novecentos homens trabalharam sem cessar, mas
quando o dia surgiu uma forte linha de trincheiras, guarnecida por oito bocas
de fogo, os protegia da artilharia inimiga; estavam desde então solidamente
estabelecidos em um pedaço do solo paraguaio.
As trincheiras, eram duas, mas formavam uma única linha defensiva,
desenvolvida pouco mais ou menos no sentido longitudinal da ilha. A da direita
era um pouco oblíqua à direção das margens do rio.
Mais aproximada na sua extrema direita da margem correntina do que da
paraguaia, formava depois na esquerda um angulo obtuso, cujo vértice era
dirigido para o Itapiru. A parte dessa trincheira que, vindo da direita, precedia
o ângulo, abrigava o 7° de Voluntários e o 14° de Infantaria; a parte que
sucedia ao ângulo estava guarnecida por dois canhões.
No prolongamento dessa parte artilhada, em
uma direção paralela às margens do rio, erguia-se a trincheira da esquerda, mais
cuidadosamente feita do que a da direita, e guarnecida por dois canhões e
quatro morteiros.
A trincheira da direita não
chegava ao rio, havia ai um pequeno espaço limpo de fortificação por onde se
podia passar com facilidade.
Entre a trincheira da direita
e a da esquerda ficava também uma abertura, no centro da qual foi plantado o
mastro da bandeira; entre a trincheira da esquerda e o rio permanecia um
extenso trato de terreno sem nenhuma obra de arte, oferecendo portanto a máxima
facilidade a quem quisesse contornar a fortificação e entrar nela por um
flanco.
Desta tão sucinta descrição
vê-se que, se essas trincheiras abrigavam a guarnição dos canhões inimigos, mal
a resguardariam se ela fosse assaltada.
Mas não se temia um assalto:
de dia seria ele impossível, à noite deveria ser considerado altamente
temerário, pois quando mesmo os assaltantes conseguissem tomar a ilha, seriam
despedaçados pelas metralhas dos grossos canhões da esquadra.
Começava-se a guerra, não se
sabia até que ponto de audácia, mesmo de loucura, chegariam as agressões
paraguaias e podia-se pensar assim. Mais tarde, Cabrita não confiaria nesse
raciocínio: a esquadra guardaria a retaguarda da fortificação, e esta formaria
um recinto fechado.
No dia 7, pela manhã, viram
os paraguaios, naturalmente com pasmo, o pavilhão brasileiro hasteado na ilha.
O Itapiru abriu logo fogo, a resposta não se fez esperar.
Começou um combate de canhão e de um ou outro tiro de carabina. Nessa luta
realmente improfícua de lado a lado, ora vigorosa, ora fracamente sustentada,
escoaram-se os dias 7, 8 e 9, e assim se escoariam provavelmente todos os que
lhes sucedessem, se López não fosse o Diretor Supremo do Exército Paraguaio.
Era López um General excepcionalíssimo. Fugindo pessoalmente do perigo, cauteloso
da própria individualidade até o ridículo, só lhe apraziam, entretanto, as
operações arriscadas.
Não o intimidava o plano mais audaz, contanto que outros que não ele o
executassem. Cheio de estulta vaidade, desprezava os mais positivos princípios da
arte militar.
Se uma operação tinha dez probabilidades a favor e noventa contra, por isso
mesmo a preferia; é dotado de um profundo desprezo pela vida dos homens que
derramavam seu sangue para satisfazer-lhe a ambição, empenhava-os em tentativas
arriscadíssimas, mandando-os à morte com implacável serenidade.
O Coronel José Eduvigis Díaz, seu favorito então, lhe suscitou a ideia de
expelir da ilha os brasileiros, tomando-lhes os primeiros canhões que nessa
guerra haviam rolado sobre o solo paraguaio. Si tivesse bom êxito, esse golpe
desmoralizaria o Exército Aliado, se corresse mal, perder-se-iam algumas
centenas de vidas, coisa para López de mínima importância.
A ideia era atrevida, por isso mesmo agradou, e entre o
Ditador, Madame Lynch e o Coronel Diaz foi logo concertado o Plano da Operação.
Mil e duzentos homens, escolhidos entre as melhores praças do exército
paraguaio, seriam divididos em três colunas de 400 homens cada uma. O comando
da primeira caberia ao Major Romero, homem astuto e refalsado ([1]).
Essa coluna embarcar-se-ia em canoas um pouco acima da ilha e, deixando-se
levar pala correnteza, a favor das sombras da noite a deveria alcançar,
desembarcar sem ser pressentida, atacar a trincheira, tomá-la de surpresa,
aproveitando-se da estupefacção de seus defensores.
As outras duas partiriam, uma após outra do ponto mais vizinho da ilha, e
ganhá-la-iam à força de remos, logo que a primeira tivesse desembarcado:
constituiriam as reservas e deviam decidir da vitória, caso esta fosse
disputada.
Na noite do dia 9, estava tudo preparado para realização, desse plano.
Grande número de canoas, cercadas de aguapés amarrados às bordas, para
ocultar-lhes as formas sob uma capa de verdura, esperavam os soldados que
deviam transportar. Estes estavam reunidos na margem, armados e municiados. Ia
dar-se a ordem de embarcar, quando ouviu-se tropel de cavalos. Pouco depois
estacou em frente da tropa uma amazona montada em soberbo ginete, tendo a seu
lado um menino é atrás um numeroso Estado-Maior.
Se a noite não fosse tão escura, ver-se-ia que essa amazona era uma mulher
de trinta anos, de porte elevado e de formas amplas e acentuadas. Bastos
cabelos castanhos, quase louros, emolduravam-lhe a testa elevada e lisa. Suas
feições regulares podiam passar por belas, se já não estivessem como que
empastadas por uma camada demasiadamente abundante de tecido adiposo, que
alterava a pureza das linhas.
Seus
olhos azuis, com reflexos amarelados quando a ira os acendia, tinham o brilho
incomodo e frio do aço polido, se ela intencionalmente os não ameigava. Era de
certo pujante a natureza daquela mulher. Brunehaut ([2])
e Fredegunda ([3])
foram sem dúvida assim. Naquela fronte que sabia vergar-se com a mais perfeita
humildade, erguer-se com soberba Imperial, e iluminar-se de uma aureola
seráfica ([4]),
conforme as necessidades de momento, assentava bem a coroa que cingiram aquelas
duas rainhas francas.
Como elas ambiciosa, hipócrita, inteligente, perversa e lasciva, era capaz
de passar ainda palpitante de volúpia da misteriosa recâmara votada a Vênus ao
severo gabinete do conselho, onde, inspirada pela sede do poder, ninguém se
mostrava mais calmo, mais friamente calculista, mais hábil em forjar intrigas,
em formular planos, em preparar vinganças.
Essa amazona era Madame Lynch, a amásia ([5])
de López, o mau gênio do Paraguai, apanhada pelo ditador nos prostíbulos de
Paris, para vir com seus pés, que pareciam destinados somente a levantar o pó
das bodegas da grande capital, pisar sobre a cabeça de um povo americano, cujas
donzelas prostituiu, cujas matronas chicoteou, cujos homens fez matar ou
envileceu sem dó nem compaixão! (O GLOBO N° 97) (Continua...)
Bibliografia
O
GLOBO N° 97. Aniversário do Ataque da
Ilha do Cabrita ou Da Redenção – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – O Globo n°
97, 10.04.1875.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia
Brasileira (SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande
do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
[1] Refalsado: traiçoeiro. (Hiram Reis)
[2] Brunehaut, Brünnhilde, Brünnhild ou ainda Brunilda: na mitologia
nórdica, é uma valquíria, que na Saga dos Volsungos foi encarregada de decidir
a batalha entre os reis Hjalmgunnar e Agnar. (Hiram Reis)
[3] Fredegunda: foi rainha cônjuge de Quilperico I, rei franco,
envolvida em inúmeros assassinatos. (Hiram Reis)
[4] Seráfica: mítica. (Hiram Reis)
[5] Amásia: concubina (Elisabet Alícia Lynch). (Hiram Reis)
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
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Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H