Segunda-feira, 12 de junho de 2023 - 06h20
Bagé, 12.06.2023
A lenda das Amazonas guerreiras percorreu todas as orbes celestes. Ela
pertence àqueles círculos uniformes e estreitos de sonhos e ideias em torno dos
quais a imaginação poética e religiosa de todas as raças humanas e todas as
épocas gravita quase que instintivamente. (Von Humboldt)
Amazonas
É do Frei Gaspar de Carvajal o
primeiro, e “único”, relato daquele
que teria sido, supostamente, um fortuito contato com as temíveis Amazonas
americanas. Carvajal afirma que mesmo cansados, doentes e debilitados em
decorrência da carência alimentar e da extenuante jornada pelo Rio-Mar, os 59
homens enfrentaram bravamente as famosas Valquírias Latinas.
As valorosas indígenas, hábeis no
manejo do arco e da flecha, bem nutridas, formosas e adestradas para guerra,
foram derrotadas por um punhado de espanhóis famélicos e combalidos.
O exagero das narrativas corria parelha com a ingenuidade dos ouvintes.
[...] A propensão tendia para deformar tudo. O próprio Pero Vaz de Caminha, na
carta enviada a D. Manuel, fabulava a respeito das índias, que a seus olhos
propiciatórios pareciam quase tão belas, como as damas de Lisboa. Era este o
espírito da época. (Raymundo Moraes)
Os relatos de Carvajal sobre a expedição de Orellana são
fantasiosos, superlativos em relação às riquezas da terra e da população nativa
e por diversas vezes contraditórios. Seus devaneios, porém, atingem o clímax ao
fomentar a lenda das Amazonas.
Guerreiras Mundurucus
A mais
formidável e cruel etnia que já existiu no Médio e Alto Amazonas foi, sem
dúvida, a dos “Senhores da Guerra
Mundurucus”. Estes nativos americanos adestravam seus descendentes, desde
cedo, numa rígida disciplina militar e consideravam o combate como a atividade
mais nobre e gratificante da vida de um guerreiro. O porte físico do “Povo Mundurucu” impressionava, eram
altos, dotados de invejável compleição física e portadores das mais belas e
elaboradas tatuagens do planeta. Os complexos desenhos eram gravados quando o
jovem guerreiro atingia seus oito anos de idade e eram ampliados, com o passar
dos anos, no inverno amazônico, até cobrir-lhe inteiramente o corpo.
No combate, os
Mundurucus, se faziam acompanhar das mulheres que carregavam suas flechas e,
segundo antigos relatos, eram capazes de apanhar as flechas inimigas em plena
trajetória. A participação das mulheres no combate, comum em tantas culturas,
auxiliando e incentivando e, eventualmente, substituindo os maridos abatidos,
pelos inimigos, na peleja gerou a criação do mito das Amazonas brasileiras.
As Rabonas Latinas
Da narrativa da viagem do francês
Laurent Saint-Cricq, mais conhecido pelo pseudônimo de Paul Marcoy, na sua obra
“Voyage a travers l’Ámérique du Sud de
l’Océan Pacifique à l’Océan Atlantique”, vamos nos deter no trajeto de
3.300 km que o mesmo percorreu pelo Rio Amazonas desde a fronteira peruana até
Belém do Pará, vencidos em cerca de quatro meses, em meados de 1847. Vejamos o
que nos conta Marcoy a respeito das guerreiras americanas:
No lugar de poucas mulheres
lutando entre os índios na embocadura de um afluente insignificante do grande
Rio, esse último tornou-se inteiramente povoado de mulheres guerreiras cuja
audácia era comparável à das Amazonas asiáticas. [...] Raleigh, Laet, Acunha,
Feijó, Sarmiento e Coronelli escreveram copiosamente sobre o tema. Além de
refutar a existência passada e presente das Amazonas americanas como um povo
separado, e mesmo como um corpo separado de guerreiros, queremos salientar aqui
que viragos ([1])
ou marimachos ([2])
não são absolutamente raros no continente meridional.
Muitas mulheres acompanham na
guerra seus maridos e irmãos, seja contendo o seu ímpeto, seja estimulando-os
quando necessário com seus gritos e invectivas ([3]). Elas
recolhem as lanças que foram arremessadas, provêm os guerreiros de flechas e
quando a luta termina cuidam dos feridos e despojam os mortos. Essa é a parte
que as mulheres tomam na guerra entre os Murucuris no Leste, os Mayorunas no
Oeste, os Otomacs no Norte e os Huatchipayris no Sul. O leitor lembrará de como
a brava mulher Ticuna do Atacuary afundou a lança no jaguar que havia arrancado
o escalpo do seu marido. Esse temperamento belicoso do sexo frágil na América
do Sul não se limita às Índias que vivem na mata.
Ele caracteriza também as suas irmãs civilizadas que vivem
nas cidades serranas da costa do Pacífico. As mulheres dos soldados chilenos
seguem-nos na guerra com devoção canina, embora voltem a abandoná-los quando a
paz é concluída. Elas preparam a comida e os abrigos campais, participam das
expedições de saque para acrescentar algum luxo ao seu pobre cardápio e ajudam
a devastar as terras conquistadas.
Também as “rabonas” do Peru, ao mesmo tempo “huarmipamparunacunas” e vivandeiras ([4]), formam
batalhões às vezes mais numerosos que os esquadrões de guerreiros e os precedem
como batedoras ou os seguem como retaguarda. Elas recolhem tributos nos
povoados que atravessam e, quando há oportunidade, saqueiam, pilham e queimam
sem o menor escrúpulo. Elas são, sem dúvida, verdadeiras Amazonas de caráter
forte e selvagem.
No tempo em que Francisco de
Orellana e seus companheiros desceram o Rio, esses fatos eram porém ignorados
pelos europeus; e a visão de mulheres lutando entre os índios, ou incitando-os
à luta foi para os aventureiros tão nova quanto surpreendente.
Quando eles voltaram para a
Espanha, o que contaram a seus compatriotas foi, como já observei, logo
modificado e desfigurado pelo exagero e pelo gosto do maravilhoso que lhes é
natural e que parecem ter herdado dos Mouros, seus antepassados. É a esse
costume de ampliar, enobrecer e idealizar fatos ordinários ‒ um hábito que se
tornou uma segunda natureza para os espanhóis ‒ que as índias do Rio Nhamundá
devem a honra de serem comparadas às célebres mulheres guerreiras da Trácia.
Estando agora cabalmente demonstrado que as viragos de Orellana e suas
descendentes viveram e vivem em todas as partes da América do Sul, elas jamais
existiram em qualquer parte do continente como um corpo governante.
As obras dos sábios que tratam
esse conto romântico como uma história verdadeira não tem mais valor que o
papel velho em que estão escritas, e que seria mais útil para fazer embrulhos
num armazém. (MARCOY)
As “Vivandières” e “Cantinières”
Francesas
“Vivandières” e “cantinières”
é a designação francesa para as mulheres que acompanhavam as Expedições
Militares escoltando oficialmente os exércitos ou mesmo particularmente a seus
cônjuges, parentes e amantes abastecendo-os com alimentos, bebidas e
realizando serviços lavanderia e costura.
Desde as priscas eras havia uma
forte necessidade de apoio logístico para unidades militares acima e além do
que os exércitos podiam aprovisionar.
Na maior parte das vezes esses
auxiliares eram formados pelas esposas e filhos dos soldados, mas
infiltravam-se, na coluna de marcha, prostitutas e uma comitiva bastante
diversificada que Alto Comando precisava identificar e livrar-se dos
indesejáveis. Nos idos de 1780, a maioria dos exércitos europeus proibiu a
presença feminina nos campos de batalha.
A monarquia francesa, por sua vez, tentou regular a sua
presença no Teatro de Operações e oficializar sua categoria, mas estas
reformas foram interrompidas, em 1789, com a eclosão da Revolução Francesa.
A partir de
1792, o Governo Revolucionário Francês envolveu-se em guerra com outros países
europeus e, em consequência, o efetivo do seu exército aumentou drasticamente,
assim como a necessidade destes auxiliares nos acampamento.
Muitas mulheres e crianças seguiam
os exércitos franceses comprometendo as operações militares. O governo francês,
em abril de 1792, aprovou um decreto limitando o número de mulheres nos
exércitos a duas “vivandières”
(fornecedoras de alimentos) ou “cantinières”
(fornecedoras de bebidas), por regimento, que venderiam alimentos, bebidas e
prestariam serviços de costura e lavanderia às tropas.
A lei considerava as “vivandières” essenciais para as operações
militares e o Alto Comando do Exército Francês considerava-as fundamentais para
manter a operacionalidade da Força. As “vivandières”
e “cantinières” prestavam serviços
que o Exército não podia oferecer e ajudavam a evitar a deserção, fornecendo
bebidas, tabaco, refeições caseiras e companhia no campo de batalha.
A determinação de que toda “vivandière” tivesse de ser casada com um
soldado do regimento em que ela servia ajudou a prevenir a prostituição e a
disseminação de doenças venéreas nas tropas. Os filhos do casal que nasciam e
cresciam durante a Campanha se tornavam, normalmente, soldados ou “vivandières” quando atingiam a idade
adulta.
Em 1799, quando Napoleão Bonaparte tomou o poder na França, o exército voltou a se expandir e o número de “vivandières” cresceu. A partir de então os filhos das “vivandières” e “cantinières” tornaram-se “enfants de troupe” ([5]). Os meninos recebiam uniforme, salário e rações dos dois até os dezesseis anos de idade, quando se alistavam como soldados. Esse sistema vigorou, até 1885, fornecendo uma importante fonte de mão de obra já qualificada.
Durante o combate, muitas “vivandières”
se deslocavam até as linhas de frente distribuindo conhaque aos soldados
empenhados no duro combate, fornecendo-lhes um importante aditivo para tomar
coragem de enfrentar o fogo inimigo e, por isso, milhares delas tombaram
derramando seu sangue pela Pátria.
Bibliografia
MARCOY,
Paul. Viagem pelo Rio Amazonas ‒
Brasil ‒ Manaus, AM ‒ Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2006.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia
Brasileira (SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
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