Sexta-feira, 27 de janeiro de 2023 - 06h02
Bagé,
27.01.2023
13.08.2019 (Ilha S.
Vicente / Caracaraí)
Acordei às 4h30, acondicionei a tralha no caiaque, comi cinco
bananas, hidratei-me e parti às 05h50.
Nada de chuva, sem nuvens, o Sol castigava a dupla de
navegadores (eu e o Argo I). A comparação com o terreno era facilitada pela
mata secundária que na fotografia aérea se apresentava como campo, um varadouro
aqui, outro acolá, as curvas...
Minha preocupação se concentrava apenas nas Corredeiras do Bem
Querer. Felizmente a cheia submergira a maioria dos penedos e o tempo limpo
permitiria que eu escolhesse a melhor rota. Ontem a chuva torrencial e o forte
vendaval limitaram a visibilidade a menos de 100 metros o que em águas
turbulentas seria um ingrediente extremamente perigoso.
Fui ultrapassando, lance a lance cada um dos obstáculos sem
maiores problemas. Já no final das corredeiras, relaxado e descontraído retirei
a saia do caiaque e colado na margem direita passei por uma Pousada chamada do
Bem Querer, homônima das corredeiras, e estava admirando a construção e seu
entorno quando o marulhar das corredeiras interrompeu meu devaneios.
Junto à margem algumas rochas bloqueavam a passagem
ruidosamente, logo à esquerda delas outro grupo de penedos complementavam o
magnífico obstáculo. Graças ao meu descuido não havia tempo para desviar pela
esquerda, a solução ao enfrentar águas turbulentas é o ataque frontal e a
velocidade.
Os Lusíadas
(Luís de Camões)
Já na água
erguendo vão, com grande pressa,
Com as argênteas
caudas branca escuma;
Cloto com o peito
corta e atravessa
Com mais furor o
mar do que costuma;
Salta Nise,
Nerine se arremessa
Por cima da água
crespa em força suma;
Abrem caminho as
ondas encurvadas,
De temor das Nereidas apressadas.
Lembrei-me do então Major Hiram que
enfrentara as águas desafiadoras dos Rios Aquidauana e Formoso no Mato Grosso
sem titubear jamais. A diferença é que lá fazíamos previamente um estudo de
situação, analisávamos as diversas opções, lançando objetos flutuantes para
analisar o comportamento dos mesmos. Agora não tinha tempo para isso e a
energia de 40 anos atrás já há muito se dissipara. Piquei a voga e parti
resoluto, um grupo de pescadores exclamou:
‒ Tá
doido!!!
A força da correnteza era muito grande, o caiaque enterrou por
três vezes a proa nas águas revoltas, compensei atirando o corpo para trás, mas
mesmo assim as águas varreram o convés e entraram no cockpit (eu estava sem a
saia), continuei picando a voga e gingando corpo para compensar a ação das
águas.
O Argo I corcoveava mais do que potro xucro mas o amazônico
parceiro com mais de 12.000 km na Amazônia e seu piloto com mais de 60.000 km,
pilotando os Argos I e II, saíram-se airosamente deixando para trás os boquiabertos
pescadores. Aportei, às 12h50 (9,7 km/h), nas imediações da Agência Fluvial de
Caracaraí. O Capitão-Tenente Jerry Kenned Sabino, Cmt da Agência Fluvial de
Caracaraí, e sua equipe me resgataram e fui instalado no impecável camarote do
Comandante.
Mesmo tendo navegado sete horas sem parar, percorrendo 68 km,
tratei primeiro do meu Amigo Argo I, limpei-o, sequei-o e depois de organizar,
secar e limpar toda a tralha, botar para lavar a roupa suja é que fui tomar
meu banho. Costume dos tempos de pontoneiro quando só se liberava a tropa
depois de manutenir todo o material de pontes, viaturas e armamento.
Partirei somente no dia 15 de agosto (quinta-feira), pretendo
descansar um dia em Caracaraí. A velha carcaça reclama.
A próxima parada e possível comunicação é em Santa Maria do
Boiaçu, daqui a 287 km, onde pretendo chegar daqui a uma semana, chegando lá,
no máximo, no domingo que vem, dia 18, comunicação, então, deverá ser apenas
pelo rastreador, mas se houver alguma mudança comunicarei aos familiares e pessoal do apoio
imediatamente.
Total 2° Dia ‒ AC 01 / Caracaraí = 68,0
km
Total Geral ‒ P. Macuxis /
Caracaraí = 137,0 km
14.08.2019 (Agência Fluvial de Caracaraí)
Ontem à noite saímos para jantar com o CT Kenned Sabino e alguns
membros da Agência. Neste curto espaço de tempo pude observar o ritmo frenético
de trabalho dos nossos valorosos marinheiros.
As Agências Fluviais tem uma dotação de apenas 12 homens e o que
se verifica é que nos primeiros anos de sua instalação estes militares precisam
dar vazão à uma demanda reprimida enorme, gerando excesso de trabalho e
desgaste desnecessário da equipe, é pois necessário que nos quatro primeiros
anos este efetivo seja ampliado dando preferência a militares solteiros para
evitar problemas de moradia.
Considerando que as Corredeiras do Bem Querer represam um pouco
a torrente do rio Branco e que as águas ao ultrapassá-las chegam a atingir 8
nós (14,5 km) meu deslocamento até Santa Maria do Boiaçu deve ser um pouco mais
célere.
O único inconveniente é a dificuldade de achar locais para
acampar.
A cheia imprimia uma velocidade adicional ao deslocamento do
caiaque, cuja velocidade média desde Boa Vista foi de 10,5 km por hora. Vou
alterar, então, minha rotina diária e a partir do meio-dia, depois de remar uns
70 km, começo a procurar um local seco para pernoitar ou uma embarcação de
pescadores.
Em Santa Maria do Boiaçu, vou ter apoio da Polícia Militar do Estado de Roraima (PMRR). Dali pretendo picar a voga para chegar em Moura onde terei apoio da Força Aérea Brasileira.
Renascimento II
(Jayme Caetano Braun)
[...] O Deus que
eu tinha ‒ o meu Deus,
Pra o que chegou
‒ não servia,
Às crenças da
geografia
Fizeram que eu
desse adeus;
Aos descampados ‒
só meus
Tive de olhar
mais de longe,
Rezar frente à
cruz do monge,
Noutros rituais ‒
noutras naves
E ‒ em vez do
canto das aves,
O som dos sinos
de bronze! [...]
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia
Brasileira (SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
Galeria de Imagens
* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
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