Quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023 - 06h00
Bagé, 01.02.2023
Eu não acredito em caridade. Eu acredito em
solidariedade. Caridade é tão vertical: vai de cima para baixo. Solidariedade é
horizontal: respeita a outra pessoa e aprende com o outro. A maioria de nós tem
muito o que aprender com as outras pessoas.
(Eduardo Hughes Galeano)
15.08.2019 (Caracaraí / AC 02)
Choveu a noite toda. São Pedro
fechou as comportas do céu exatamente na hora em que começamos a transportar o
caiaque, com auxílio das rodinhas, para o portão dos fundos da Agência Fluvial
que, como não poderia deixar de ser, tem acesso direto à margem do Rio. Parti
da Agência Fluvial de Caracaraí, às 06h00, com o apoio de nossos valorosos
marinheiros.
O tempo estava nublado, mas sem
nenhum prenúncio de chuva. O Deslocamento foi tranquilo graças aos formidáveis
guarda-sóis naturais disponibilizados por São Pedro. Fui observando as margens
e as ilhas que, na sua quase totalidade tinham-se transformado em extensos
igapós. Para minha surpresa, a uns 15 km de Caracaraí uma pequena ilha exibia
um pequeno barranco a um metro da água, aproximei-me curioso e me deparei com
um jacaré-açu de uns 4 metros, de boca aberta, curtindo a canícula que ao notar
minha presença atirou-se lá de cima e partiu em desabalada carreira.
Embora a cheia altere significativamente o panorama, já que as
fotografias aéreas do Google, que eu dispunha eram da estiagem consegui fazer
um leitura tranquila sem ter de lançar mão do GPS.
Por volta das 13 horas, depois de
percorrer 75 km (12,5 km/h), comecei a prestar a atenção nos locais de
acampamento. Avistei um barranquinho numa das ilhas que devia ter um palmo
acima da linha d’água e cujo terreno parecia adequado à montagem do
acampamento, entusiasmado apontei minha proa para lá.
A ilha que na sua maior parte era,
agora, um igapó, tinha grandes árvores, a maioria parcialmente submersas. Já me
imaginava descansando naquele aprazível local, mas descartei-o, logo em seguida,
em virtude das enormes pegadas de jacarés-açus.
Estava muito cansado, tinha
empreendido inúmeras e desafortunadas tentativas de achar um local para
acampar quando avistei um barco de pescadores com um gentil casal a bordo.
Imediatamente o Sr. Claudicei e a Srª Rita Lúcia me convidaram para subir à
bordo e comer um peixe assado com farinha. Insistiram para que pernoitasse no
barco, mas como eu não tinha rede para dormir à bordo eles me informaram,
então, que logo à frente, à margem direita, tinha um igarapé onde os pescadores
acampavam. Agradeci a fidalguia do hospitaleiro casal a parti para o local
indicado.
O igarapé era um verdadeiro
labirinto, mas achei terra firme para montar o acampamento (01°09’50,64”N /
61°20’21.30”O). Bandos de macacos pregos pulavam com extrema habilidade de uma
árvore para outra provocando uma verdadeira chuva de galhos e folhas que
aproveitei na pequena fogueira.
Montado o acampamento, depois de um
simulacro de banho redigi este diário me preparando para descansar.
Deixei a lona da barraca à prova d'água aberta para arejar a
pequena barraca até começar uma garoa fina, lá pelas 21h00, e que continuou até
o alvorecer.
O acampamento, os sons da mata me
faziam engarupar na memória do tempo e relembrar o estagiário 01 do Curso de
Operações na Selva, lá para as bandas do Puraquequara, pernoitando, pela
primeira vez na vida, sozinho em uma rede de selva armada nos ermos dos sem fim
impressionado com a curiosa sinfonia entoada por gargantas de espécies tão variadas.
Hoje não era diferente, outras
plagas, diversa sinfonia, diferentes animais, mas um mantras igualmente
encantador. De madrugada, uns passinhos curtos e leves sobre as folhas secas me
despertaram. Sem acender a luz abri com cuidado a lona impermeável e avistei
duas pequenas cotias que por ali perambulavam, um sinal de que não havia
grandes predadores na área.
Total 3° Dia ‒ Caracaraí /
AC 02 = 77,0 km
Total Geral ‒ Ponte dos
Macuxis / AC 02 = 214,0 km
16.08.2019 (AC 02 / AC 03)
Parece que S. Pedro estava mais
atento e desta feita e fechou as comportas do céu pouco antes que eu iniciasse
o aprestamento externo ‒ desmontagem da barraca e carregamento do caiaque. Sai,
às 06h10, do igarapé que mais parecia um tortuoso labirinto grego.
As copas dos arbustos e das
palmeiras estavam à flor d’água obrigando-me a manobrar o Argo I
constantemente. Logo que iniciei a jornada, uns 500 metros à jusante, passei
pelo Igarapé que o Sr. Claudeci e a Sr.ª Rita Lúcia tinha mencionado, nas
coordenadas: 01°09’33,4” N e 61°20’17,0” O. A área era mais ampla permitindo
embarcações de maior porte adentrar na mesma sem dificuldades e o local para o
acampamento espaçoso e limpo.
A brisa que se iniciou fraca e agradável no início da manhã
intensificou-se prejudicando a navegação e travando a correnteza. As
possibilidades de acampar em solo seco simplesmente sumiram depois do meio-dia
e uma única alternativa tinha sido aventada, em Caracaraí, pelo Sgt Felipe da
Marinha de Guerra ‒ na Boca do Igarapé Água Boa e para alcançá-lo eu precisava
superar a marca do dia anterior navegando mais de 90 km. O deslocamento lento
em virtude do vento não facilitava em nada minha meta, mas aportei, às 16h20
nas ruínas de uma antiga base AMAPU, na foz do Água Boa. Montei a barraca sob
as ruínas de um barraco abandonado, tomei um bom banho lavei a roupa, e, às
18h30, estava pronto para descansar.
Noite extremamente tranquila. Sem chuva e a sinfonia animal ao
longe embalava meu sonho. Eu estava exausto tinha remado 92 km, o ombro direito
incomodava um pouco, acho que mais em virtude da falta de preparo físico do que
da cirurgia. Não coloquei o relógio para despertar, deitei cedo, às 18h30 e
certamente acordaria cedo.
Total 4° Dia ‒ AC 02 / AC 03 = 92,0 km
Total Geral ‒ Ponte dos
Macuxis / AC 03 = 306,0 km
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia
Brasileira (SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
Galeria de Imagens
* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
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