Segunda-feira, 5 de dezembro de 2022 - 07h41
Bagé, 05.12.2022
Realidade, n° 97
São Paulo, SP – Abril de 1974
Mundo
Perdido – Hamish Mao Innes
[...] Eram os primeiros dias de
outubro e há uma semana andávamos pela floresta chuvosa, num terreno que subia
gradualmente a quase 2.000 metros na base do Roraima. A ideia era chegar ao
topo até meados de novembro.
Acordávamos, diariamente, às
06h00. Uma hora antes do início marcha. Antes de calçarmos as botas, enfiávamos
sacos de plástico sobre meias, para a proteção dos pés. Todos levávamos parte
da carga, embora os carregadores conduzissem, cada um, cerca de 46 quilos
material.
A base dos cientistas foi
localizada no sopé da escarpa de quase 10 metros que levava aos rochedos do
Roraima Foi ali que descobrimos que a maior parte de nossa comida e coisas
importantíssimas para a escalada [as minhas botas, o equipamento profissional
de Don] estavam faltando. Essa deficiência, a princípio apenas desagradável
[não tínhamos café ou chá], tornou-se seríssima quando ficamos reduzidos a três
colheres de arroz por dia.
Ali também verificamos que havia
falta de carregadores: alguns eram adventistas da Igreja do Sétimo Dia e
tínhamos de dispensá-los do trabalho aos sábados. Passamos a fazer uma infusão
folhas, que tinha um sabor delicado, lembrando um pouco o chá-da-china. Mas não
era fácil resolver todos os problemas com os frutos da terra. Philip, o
Caçador, um ameríndio, caçou uma anta e alguns porcos selvagens: pouco, para
27 bocas esfomeadas.
Os Escorpiões Ameaçam a Nossa Escalada
Um oficial do Exército da
Guiana, membro também da Expedição, passou um dia para a capital da Guiana,
Georgetown, pedindo suprimentos. Eles deveriam ser jogados de avião. Mas como
fazê-lo, se o tempo conspirava contra nós e chovia quinze horas todos os dias?
Os cinco alpinistas chegaram às
escarpas que levam à cordilheira do El Dorado, ponto de partida para a segunda
fase da escalada. Com os binóculos, podíamos ver um grande número de rochedos
cobertos de arbustos, onde encontraríamos, sem dúvida, aranhas e escorpiões.
Quanto ao mais, parecia que Roraima ofereceria condições normais de escalada em
rocha. As mais úmidas condições do mundo.
Mo Anthoine e Mike Thompson
começaram a escalar. Fizeram uma volta e depois subiram uns 51 metros de rocha
vertical até um pequeno rochedo. Fixadas as cordas duplas, o próximo passo
seria alcançar um segundo rochedo, que batizamos de “Passagem de Retalhos”, por causa da variedade da vegetação que ali
crescia.
A rotina da escalada é a
seguinte: nós trabalhávamos em pares, determinando um objetivo que nos levaria
ao objetivo imediato. Na hora do cansaço, revezamento. Na medida em que a gente
vai subindo, vai fazendo estacas para passar a corda.
No monte Roraima, isso
significa, algumas vezes, ter que fazer buracos [o que se faz manualmente] na
pedra dura para cravar as argolas onde passará a corda. Havia uma água quase
perpétua pingando ou jorrando sobre nós. Para os objetivos mais difíceis, na
medida em que íamos subindo, frequentemente eram necessários quatro homens para
a execução da tarefa.
No fim do dia, com as nossas
cordas fixadas no ponto mais alto, nós acampávamos, isto é, escorregávamos
usando nosso equipamento até um lugar onde fosse possível armar um acampamento
e passar a noite. Foi acima da Passagem de Retalhos que nós, realmente,
começamos a encontrar os bichos repelentes. “Cada local onde eu devia pôr a mão”, diz Joe Brown, “precisava ser limpo com a minha picareta. E,
mesmo assim, eu esperava ser picado a qualquer momento”.
Em cerca de um terço do caminho
havia uma borda de rochedo em direção à Venezuela, pela face Noroeste do
monte. O rochedo tinha uma largura variável e descia num ângulo de 60 graus.
Era protegido da constante umidade por uma saliência e a ele se agarravam
punhados de escorpiões, centopeias e aranhas.
Passamos a chamá-lo de “Terraço da Tarântula” e não encontramos
consolo quando os cientistas disseram que o escorpião marrom, ali muito
encontrado, poderia ser de uma nova e desconhecida espécie... Joe Brown era um
hábil colecionador de insetos e ficava feliz quando apanhava escorpiões pelos
ferrões. Ele, como qualquer de nós, não desconhecia que uma simples ferroada
daquele bichinho, uma picada de qualquer daqueles pequenos e venenosos
habitantes, poderia transformar nosso avanço em retirada em pânico, na busca
desesperada de assistência médica.
Seis Horas sob Vegetação, Água e Insetos Perigosos
Na verdade,
não havia alternativa senão escolher o Terraço da Tarântula como base para o
nosso próximo estágio na escalada: O “Terraço
da Tarântula” era uma enorme saliência de rocha, aquela que havíamos visto,
pelos binóculos, quando estávamos em “El
Dorado”: tinha quase a forma que a África apresenta no mapa. Havia apenas
um lugar, muito pequeno para pôr o pé naquela saliência, e levamos dois dias
para chegar lá em cima e mais um para Mo dar a volta na saliência de 5 m, onde
havia um jardim suspenso habitado por papagaios.
Uma noite, vivemos uma
experiência terrível no Terraço da Tarântula. Don tentou dormir diretamente na
rocha e ficou a noite inteira desafiando o exército de insetos nojentos, com
gritos de “eu pego você, seu nojento”
ou “este não vai mais morder ninguém”.
Pela manhã, todos os dias, era
preparada, uma bebida feita com algumas plantas e água de chuva e a ela
recorríamos indiferentes aos micróbios. Nossa refeição matutina era meia xícara
de chá dessas plantas e um pouco de macarrão.
Pegávamos comida e equipamentos
suficientes e eles eram colocados nas sacolas para as escaladas do dia. Mo e
Joe iam à frente, no rumo do “Rochedo da
África”.
Eu usava braçadeiras para me
içar atrás dos outros. E foi numa dessas vezes que vi, horrorizado, que bem
acima de mim a corda estava para rebentar. Eu me equilibrava na ponta da grande
saliência e, quando puxei a braçadeira, ela não apertou a corda como deveria
fazer.
O revestimento da corda de
náilon desceu com ela e a sua parte interna começou a se partir junto à rocha. Não
pude deixar de gritar e Don ficou inclinado no seu mini-rochedo, logo acima: “Pelo amor de Deus, suba depressa antes que a
corda se rompa”, ele disse.
Havia uma
corda de segurança ao meu lado, mas ela também estava em péssimo estado.
Desesperado, transferi o meu peso para um estribo atado à corda e após 5
penosos minutos, pude colocar um pé numa fenda de 4 cm de largura. Fiquei preso
ali durante seis horas, enquanto Joe e Mo procuravam escalar a “Chaminé Molhada”, uma ranhura vertical e
sem fundo, que canalizava a água da chuva que vinha de cima e irrigava as
plantas. Durante o dia inteiro, vegetação, água e insetos jorravam sobre mim.
Às 17h00, quando já estava tudo escuro, Joe avisou: “Vamos descer. Não tem saída”. O vento havia aumentado e soprava
violentamente. Cansados e quase impossibilitados de falar uns com os outros,
por causa do barulho do vento, voltamos ao “Terraço
da Tarântula”.
Monte Roraima, um Osso Duro de Roer
Era uma situação desesperadora:
uma noite escura tempestuosa, duas cordas que não ofereciam segurança alguma,
sacolas que balançavam ao vento como morcegos monstruosos. Mas, finalmente,
alcançamos a [relativa] segurança do terraço.
O vento soprou a noite inteira
Enquanto a chuva continuava a cair, chegava até nós o ruído das cachoeiras que
se formavam ao longo da face do rochedo. Desistir? Naquele momento não tínhamos
certeza de nada. E apenas uma convicção: ninguém queria subir novamente. Eu
escrevi no meu diário naquela noite:
O objetivo principal
da experiência está em jogo. Nós estamos cansados e o Monte Roraima é um osso
duro de roer. Quando a neblina deixar a face da rocha e puder reestudar a
parte superior da parede, talvez vejamos uma outra ranhura vital onde
poderemos passar a noite.
Nós tivemos
um susto quando Mike Thompson, nosso alpinista antropólogo, que havia descido para
tentar desvendar o mistério das provisões que faltavam, tropeçou num arbusto e
feriu o pé. Ele teve que abandonar a Expedição e ficamos reduzidos a quatro
alpinistas ‒ o mínimo necessário para completarmos a missão. Durante três dias
– depois da tempestade e de nossa vergonhosa retirada daquele local da rocha
descemos. Fomos encorajados por uma entrega “via aérea” de pacotes de alimentos e cigarros. O Major Chan-A-Sue
voou com o seu Islander sobre nós, baixou o mais que conseguiu e jogou os
pacotes num alvo próximo ao nosso acampamento.
Descansado e fortificado pelo
chocolate, tentei novamente subir a parede e consegui ir além da “Chaminé Molhada” – apenas uns 6 m, mas o
suficiente para que a gente ficasse fora da rocha úmida e de lá Joe Brown e Mo
pudessem retornar ao ataque. Eles escalaram mais de 9 m em 4 horas e chegaram à
“Torre Verde”, a única ranhura em
quilômetros e quilômetros. Don e eu chegamos até eles em 2 dias.
Armamos uma barraca tosca ao
lado deles e passamos uma noite... miserável. No dia seguinte, domingo, iríamos
fazer a derradeira tentativa. Até então, já havíamos passado dezesseis dias
escalando o rochedo de mais de 450 m, dando uma média de mais de 21 m por dia.
Era uma média que refletia as enormes dificuldades que estávamos vivendo e o
tempo terrível que tivemos que enfrentar.
Enfim o pico... pela primeira
vez – Ficou decidido que, pela manhã, Don e eu iríamos até o ponto mais alto, a
uns 60 m do pico.
Às 11h00, atingimos aquele
ponto, uma pequena ranhura a partir da qual começava outra... “Chaminé Molhada”. A situação não era
animadora. Entusiasmo não havia mais. Olhei com desânimo o meu companheiro. E
quando Don juntou-se a mim, eu disse:
̶ Isto
poderá ser pura perda de tempo.
Nós só
tínhamos aquele dia para alcançar o pico. Desesperado para subir rapidamente,
decidi arriscar a sorte e atirei uma pedra com uma corda amarrada nela, na
esperança de que se enroscasse em alguma fenda lá em cima. Deu certo e nós
recomeçamos a escalada. O pico estava animadoramente próximo.
A parede
vertical tinha uma profusão de plantas e já nos preocupavam de novo as aranhas
e os escorpiões, toda vez que tínhamos de afundar braços e mãos na densa
folhagem da subida. Mo Anthoine ficou encarregado do último “objetivo”, alcançando o pico às 13h30. O
resto de nós juntou-se a ele logo em seguida. Soltamos um foguete e, por um
transmissor-receptor, transmitimos mensagem a ser levada a Georgetown. O Sol
brilhava pela primeira vez em vários dias e os únicos sinais de vida eram as
borboletas e os sapos, uns e outros pretos. O planalto era de rocha sólida
contornada por uma formação fantástica de arbustos em forma de cogumelos e
depressões que formavam jardins naturais. Andávamos por ali como se
sonhássemos. Cada um estava exausto após tantos dias escalando-a parede. Logo
depois de nossa chegada, a chuva caiu com tal intensidade que, em pouco tempo,
a água subia aos tornozelos. Descobrimos que o pico tinha rachaduras muito
profundas e largas, que só poderiam ser atravessadas com o auxílio de escadas.
A alegria
era geral: a batalha havia sido ganha. Havíamos superado um obstáculo bem
superior ao que imaginávamos. Conseguíamos o objetivo final, quando,
desanimados, já não acreditávamos em sucesso. Às 17h00, deixamos o platô e
descemos à “Torre Verde”, onde
passamos uma noite molhada No dia seguinte, voltamos ao sopé do penhasco,
deixando todas as cordas fixas em posição, exceto para os últimos 30 ou 40 m.
Empacotamos nossas coisas e fomos embora do Monte Roraima. (REALIDADE, n° 97)
Bibliografia
REALIDADE,
n° 97. Mundo Perdido – Hamish Mao Innes
– Brasil – São Paulo, SP – Realidade, n° 97, 1974.
(*)
Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas,
Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira
(SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
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