“É a repetição do pedido de indulgência para a narração dum médico de hospital, que nunca teve pretensões ao nome de naturalista, seja zoólogo, botânico ou mineralogista." (Lallemant)
- Robert Christian Barthold Avé-Lallemant
Médico, cientista e escritor, nasceu em Lübcek, Alemanha, em 25 de Julho de 1812 e faleceu em 10 de outubro de 1884, aos 72 anos de idade, na sua cidade natal. Cursou medicina em Berlim, Heidelberg e Paris. Concluiu seu doutorado em medicina na Universidade de Kiel, em 1837, e, logo em seguida, mudou-se para o Brasil, onde fixou residência por dezessete anos. Foi diretor de um Sanatório para pacientes de febre amarela, médico da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro e membro do Conselho Nacional de Saúde.
Em 1855, retornou à Alemanha onde Alexander von Humboldt nomeou-o médico da expedição austríaca de Novarra que iria realizar uma viagem de circunavegação do planeta. Em 1857, partiu de Trieste para a América do Sul, no navio ‘Novara SMS’, mas, desentendendo-se com oficiais de bordo, foi obrigado a desembarcar no Rio de Janeiro, abandonando a expedição. Na sua segunda visita ao Brasil, foi nomeado médico do Hospital dos Estrangeiros e passou cerca de dois anos explorando a ‘Terra Brasilis’ com o apoio do imperador Dom Pedro II. Como explorador singular retratava, com fidelidade, observações sobre o solo, paisagem, flora, fauna, homem, economia, vida social, usos e costumes, embora afirmasse, no prefácio de suas obras, que fazia as suas observações apenas como um ‘médico de hospital’.
Em 1859, regressou a Lübeck, onde voltou à pratica da medicina e escreveu diversos livros sobre suas experiências no Brasil, sendo os mais importantes: Viagem pela Província do Rio Grande do Sul - 1858, Viagens Pelas Províncias de Santa Catarina, Paraná e São Paulo - 1858, Jornada através do Brasil em 1859, Viagens pelas províncias da Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe – 1859 e No Rio Amazonas – 1859.
- Rio Negro: 27 de junho de 1859
“... em volta de nós começou a surgir lenta e silenciosamente a grande Natureza das margens do Amazonas ou antes no Rio Negro. Ancoramos num rio de certamente 1500 braças de largura, distinto, à primeira vista, do Rio Amazonas, por uma correnteza muito menor, e de água preta, em lugar de pardacenta, como a do grande rio. Em vastidão, porém, pareceu-nos quase igual ao Amazonas, como o víramos em alguns lugares na tarde anterior. Corria tranquilamente do oesnoroeste, por longos trechos, não formando moldura no seu horizonte na água, e volteando depois uma eminência para o oeste, causava uma impressão de profunda serenidade, certa melancolia, junto a uma expressão de perfeita majestade”.
- Capitão Joaquim Firmino Xavier
Lallemant explorou o Rio Negro apenas em áreas próximas à cidade de Manaus e talvez, com isso, nos tenha privado de importantes relatos da região feitos por um observador privilegiado. Suas anotações ganham força, quando ele reporta o trabalho fantástico do capitão Joaquim Firmino Xavier. O militar, havia ajudado a debelar a Revolução Praieira, movimento separatista que eclodiu em Olinda a 7 de Novembro de 1848. Depois de um pequeno descanso no Rio de Janeiro, foi enviado para as campanhas do Rio da Prata que, depois de resolvidas, permitiram que fosse enviado para comandar o Forte de Macapá e, logo em seguida, para melhorar as condições da fortaleza de Tabatinga. O sucesso no desempenho de cada uma das missões que lhe eram impostas levou as autoridades militares a determinar-lhe uma missão mais desafiadora que era a de colonizar, com indígenas, o Xié e o Içana, afluentes do extremo setentrional do Rio Negro. Os índios da região tinham abandonado as aldeias após a perseguição militar dos adeptos do movimento messiânico de cunho cristão de um líder indígena venezuelano chamado Venâncio. O relatório do capitão Firmino reproduzido por Avé-Lallemant nos permite ter uma idéia dos aldeamentos indígenas da época.
- São José de Marabitanas
“... Durante o ano de 1858, os moradores de Marabitanas, estimulados por mim, começaram a construção de 12 casas com quartos e outros cômodos; algumas delas já estão cobertas e rebocadas. Diversas habitações maiores foram melhoradas, fizeram-se plantações maiores, não só de mandioca como doutros produtos alimentícios. Construíram-se casas nessas roças, a capela foi melhorada, coberta de novo, rebocada e caiada.
... Os moradores de S. José de Marabitanas são alegres e vivem contentes; trabalham de bom grado nos seus campos. Mas a formiga saúva, que come tudo, dá-lhes muito que fazer.
... Descendem dos Bambos, Baris e Aeroquenas. Quase todos falam mal o português; entre as mulheres poucas falam esta língua. Falam comumente a língua geral (Nheengatú). As crianças não falam português e vivem entregues às leis da natureza, sem rudimentos de civilização e religião. A maior parte das crianças precisa dum professor elementar, que deverá ser virtuoso e digno”. (Capitão Firmino)
- São Marcelino
“No fim de dezembro de 1857, esta povoação na embocadura do Rio Ichié foi abandonada e invadida pelo mato.
... Quando, a 1º de janeiro, os habitantes já tinham voltado para suas casas, a povoação foi limpa e as casas melhoradas.
... A povoação prosperou. Os moradores melhoraram as casas e amanharam (cultivaram) os campos; o tuxaua Diogo, dos Aeroquenas, começara sua aldeia quando enviados de Frei Manuel de S. Ana Salgado espalharam a notícia de que eu queria prende-los e matá-los todos. O medo e o terror apoderou-se dos nativos, que deixaram a povoação, se esconderam na floresta ou emigraram. A esse tempo, apareceu um desertor, Basílio Melgueiro, que se dizia um novo Cristo e repetiu as cenas de Venâncio. Os índios abandonaram o trabalho e entregaram-se a uma vida relaxada de preguiça.
... Os habitantes de S. Marcelino e do Ichié pertencem à tribo dos Aeroquenas; os homens falam o português; algumas das mulheres falam a língua geral, o resto um jargão (gíria particular).
A facilidade com que se pode ir do Rio Ichié para a Venezuela é a causa de não se poder contar com esses índios desse rio para um fim geral ou particular. Plantam apenas alguma mandioca para seu sustento; pescam e caçam para sua alimentação quotidiana. Poucos andam vestidos, e isso mesmo só diante de brancos. O comum entre eles é uma pequena tanga de tururi ou casca de pau do comprimento dum palmo.
Pouco se pode esperar dessa gente, graças à sua preguiça, moleza e indolência inatas”. (Capitão Firmino)
- Nossa Senhora da Guia
“A povoação de Nossa Senhora da Guia, num terreno elevado ao norte da embocadura do Içana, compunha-se, em outubro de 1857, de 15 casas e uma capela cobertas de palha e bastante arruinadas.
... Durante o ano de 1858, fiz melhorar as casas da povoação e construir outras nas plantações de mandioca.
... Os homens todos falam português, as mulheres, porém, não. Descendem de Barés, Aeroquenas e Banibas. Pescam e plantam o estritamente necessário para sua alimentação diária. As mulheres tecem redes de tucum e caroá, vendem-nas, porém, por uma ninharia aos ambulantes, seus conselheiros preferidos, para que não se deixem levar por outros compradores melhores, e fiquem sempre à mercê desses atravessadores”. (Capitão Firmino)
- São Filipe
“A povoação de S. Felipe, um pouco ao sul da embocadura do Içana, fica em terreno baixo e contava, em outubro de 1857, nove casas pequenas e uma capela, todas cobertas de palha e arruinadas.
... Os homens são quase todos mamelucos e falam bem o português; as mulheres, ao contrário, são bronzeadas e falam a língua geral.
... Tinham seguido o conselho de Frei Salgado e abandonado a povoação. Pouco tempo depois, reuniram-se nos igarapés e entregaram-se, escondidos neles, à bebida, à libertinagem e danças selvagens. Com muito trabalho fi-los voltarem para suas habitações E teriam ficado nelas, se Basílio, o desertor, não os tivesse reunido novamente em Santa Ana, para as mesmas danças, como Venâncio. Tirei-lhes as cruzes e dispersei-os. Alguns fugiram para a Venezuela, outros para o Rio Vaupez, de maneira que hoje poucos habitantes existem ali”. (Capitão Firmino)
- Santa Ana
“A povoação de S. Ana fica um pouco abaixo de S. Filipe, na margem fronteira. A 17 de outubro de 1858, fora abandonada; só havia duas pequenas casas velhas. Os habitantes tinham-se mudado para S. Felipe, e só haviam conservado suas terras”.
- Carmo
“Esta é a primeira aldeia do Içana, situada em terreno elevado, na sua margem direita, a dois dias de viagem de sua embocadura.
... Reuni 12 homens, 9 mulheres e 14 crianças, todos da tribo Baniba, sob seu tuxaua, o índio Marco Antônio, que fala português.
... O tuxaua não tinha força moral; os índios não lhe queriam obedecer, nem construir casa na aldeia, nem se ocupar dos trabalhos públicos mais necessários;...
... Os trabalhos da construção da Cucuí, para a qual as aldeias fornecem pessoal, são a causa de os índios fugirem e esconderem-se nas nascentes dos igarapés, onde não é possível apanhá-los, senão recorrendo à força... Trabalhariam, porém, de bom grado, se não prestassem ouvidos a certos ambulantes, que, para se utilizar deles em proveito próprio, e tirar disso enormes proventos, os aconselham a irem à floresta apanhar salsaparrilha e resinas, que trocam por ninharias.
... Esses ambulantes são cancros, que infestam as margens do Rio Negro, e causadores do atraso dos índios. O que sucede na aldeia do Carmo, acontece também nas demais”. (Capitão Firmino)
- Nazaré
“A aldeia de Nazaré fica num terreno elevado, na margem direita. Em dezembro de 1857, contava cinco casas em bom estado, duas em ruínas e uma capela prestes a concluir-se.
... os índios da aldeia, todos da tribo dos mutuns.
... Os moradores desta aldeia são bastante ativos e trabalhadores”. (Capitão Firmino)
- Santo Antônio de Tunuí
“A aldeia de Santo Antônio de Tunuí, na margem direita do rio e acima de sua maior cachoeira, fora totalmente destruída pelo fogo, e em de dezembro de 1857, quando por lá passei, encontrei apenas os restos de 12 casas.
... Disse-me que grande número de índios de sua tribo – Acaiacas – estavam escondidos nas selvas, sem querer construir casas nas aldeias, porque não querem ser governados por ninguém”. (Capitão Firmino)
- Santa Ana de Coari
“A aldeia de Santa Ana de Coari, na embocadura do rio Coari, habitada por índios da tribo Sisucis, consistia em dezembro de 1857, de 11 casas, 3 em ruínas e, além do tuxaua Ângelo Simão, de 17 homens, 18 mulheres e 6 crianças... O tuxaua é respeitado pelos seus, mas não pode ainda reunir grande número de índios de sua nação, que habitam as nascentes dos igarapés vizinhos e afluentes do Coari, porque não querem fazer trabalho, segundo me dissera muitas vezes o próprio tuxaua”. (Capitão Firmino)
- São Luís
“... Os índios desta nova aldeia são trabalhadores e tem grandes plantações de mandioca”. (Capitão Firmino)
- São Lourenço
“... O tuxaua Ebidão, que veio com o sargento, explicou-me que muitos índios de sua tribo (Iandu) viviam na selva e ao longo dos rios Guaraná e Pamari, em numerosas malocas, mas não queriam sujeitar-se à vida nos aldeamentos”. (Capitão Firmino)
- São Francisco
“... no entanto, há ainda muita gente que não quer ir para a aldeia, sobretudo a que mora no lado Gavião, onde se vêem numerosas malocas juntas e habitadas, cujos habitadas”. (Capitão Firmino)
- Sucesso dos aldeamentos, segundo Firmino
A contestação por parte das lideranças dos tuxauas é justificada, uma vez que os mesmos eram nomeados pelo capitão Firmino. O processo de aldeamento só tinha êxito, quando os tuxauas tinham sua autoridade reconhecida pelos seus. Firmino apontava uma solução para a situação de ruína das aldeias e povoações que haviam experimentado uma certa prosperidade no tempo do governador Manuel da Gama: “na minha opinião, poder-se-ia alcançar extraordinário surto de povoações e aldeias se o Governo estabelecesse depósitos de objetos de que os índios mais necessitassem, e mesmo que lhes incitam a vaidade. Teriam então de levar a esses depósitos seus produtos, drogas e trabalhos artísticos para que os comprassem aí, e obtivessem em troca os objetos de que precisam. Desta maneira não seriam logrados, veriam o fruto do seu trabalho e rivalizariam uns com os outros, porquanto o mais trabalhador adquiriria os melhores artigos”.
- Sucesso dos aldeamentos, segundo Lallemant
Justifica a dificuldade de atrair o aborígene para a civilização tendo em vista que as atividades de coletor-caçador necessitam de muito espaço afirmando: “O bucolismo da vida solitária nas florestas, a vida do pescador é a nota tônica na existência do índio. Está inconscientemente ligado a ela por todas as fibras do seu ser, e arrancar-lha é operação perigosa, que põe a vida em perigo."
Outro grande obstáculo para sua inclusão seria a língua. A existência de dezenas de etnias diferentes aponta como solução a utilização da língua geral (Nheengatú) que seria considerada uma boa opção de transição, futuramente, para o português o que permitiria, a curto prazo, sua integração à sociedade moderna.
Avé-Lallemant, Robert. No Rio Amazonas (1859) - Brasil - São Paulo, 1980 - Ed. Da Universidade de São Paulo.
Fonte: Coronel de Engenharia Hiram Reis e Silva
Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS)
Acadêmico da Academia de História Militar Terrestre do Brasil (AHIMTB)
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS)
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional