Sábado, 23 de junho de 2012 - 10h48
Em Ilha Nova, no Baixo Madeira, vivia Dona Rosalina, com o marido e os oito filhos. A vida de Dona Rosalina seria igual a das outras caboclas da região, não fosse um fato que a destacava: era rezadeira. Além de rezar para tirar quebranto, espinhela-caída, essas coisas mais corriqueiras, dona Rosalina tinha uma especialidade: resolvia o problema das mulheres que não conseguiam engravidar.
Possuía Dona Rosalina uma pequenina imagem que pertencera a sua avó e que trazia consigo desde a infância; ela a apresentava aos moradores de Ilha Nova como a imagem milagrosa da Beata Santa Catarina. Todo o povo do lugar já conhecia a imagem, a devoção e os cuidados da rezadeira para com a peça.
A imagem era mantida, pela devota, com raríssimo zelo: sobre uma cantoneira forrada com um paninho de adorno rendado e fixada à parede de tábua da casa, reinava absoluta na sala a Beata Catarina.
Feita de gesso pintado em cores pálidas e singelas, a santinha já apresentava os sinais do tempo; um pontinho descascado aqui, outro ali. À sua frente, um pequeno castiçal mantinha sempre uma vela. Se houvesse por quem pedir, a vela era acesa, depois substituída por outra, até se dar o milagre.
As mulheres sem filhos faziam romaria até Ilha Nova para chegar a casa de Dona Rosalina. Era uma casa acanhada e embrenhada no mato. Em frente, ficava o terreiro onde ciscavam as galinhas; ao largo, sob um pé de samaúma, um banquinho tosco onde havia sempre uma mulher esperançosa aguardando para ser atendida pela rezadeira.
Uma vez convidada a entrar na casa, a visitante era conduzida por Dona Rosalina até a sala. Ali, sentava-se em uma banqueta em frente à imagem. A rezadeira fazia as apresentações, dirigindo-se à santinha como a uma velha amiga com a qual estivesse interagindo. Era mais ou menos assim:
-Minha Santa: esta mulher que tá aqui já tem idade, mas ainda não pariu; ela veio de longe falar com a Senhora, porque ela quer muito ficar buchuda, ela quer muito ser mãe.
Então, fervorosamente, ajoelhava-se ao pé da imagem e murmurava:
“Minha Santa Beata Catarina, me responda por aquele que morreu na cruz: ela deve ter esperança de parir uma criança?”
Olhos fechados e concentradíssima, a rezadeira se comportava como se estivesse ouvindo a santa: “Sim, Senhora, vou fazer isso que a Senhora está mandando. Tá bem, minha Santa, vou fazer”.
Findo o diálogo com a santinha, a rezadeira tratava de tranquilizar a visitante, porém, com uma ponta de contrariedade na voz: “Vai embora, manazinha, vai cuidar da tua vida e te deita com teu marido toda noite; faz a tua parte, que a santa vai fazer a dela, e eu agora que vou começar a fazer a minha, obedecer a sua ordem”.
A parte de Dona Rosalina era difícil. Assim que despachava a visita, embrenhava-se na mata, onde mantinha uma grande roça de macaxeira, o abençoado alimento regional. A rezadeira, então, arrancava os pés de macaxeira, com ambas as mãos num puxão vigoroso; separava as raízes, cortava cuidadosamente os galhos, preparando novas mudas. Depois, com a enxada fazia uma grande fileira de covas, onde plantava as mudas de macaxeira.
A cada muda que plantava, repetia, como um mantra: “Assim como vai nascer esta macaxeira, tu, Fulana, vais te tornar uma mulher parideira”.
Esse procedimento, Dona Rosalina, de Ilha Nova, repetia diariamente, à mesma hora, ao longo de uma semana. Passado esse tempo, recolhia-se à modesta cama, onde permanecia por três dias, adoentada. Segundo acreditava, a doença lhe atacava o corpo porque estava contrariando a natureza, que não dera, espontaneamente, filhos às mulheres que a procuravam; bem que a santinha a prevenira disso, porém, conforme ouvira da própria santa, que fosse atendido o pedido, já que havia sido feito com tamanha fé.
Um dia, a cantoneira sobre a qual ficava a santinha despencou da parede e a imagem partiu-se em pedacinhos, restando apenas a cabeça. A rezadeira ficou inconsolável. Tal foi sua prostração que a família e os amigos mobilizaram-se para comprar outra; porém na capital e onde mais procuraram não havia uma imagem da Beata Catarina.
Foi aí que um dos filhos teve uma idéia para acalmar Dona Rosalina: adquiriu a imagem de outra santa que não era conhecida no lugar e levou-a até a mãe, dizendo-lhe que aquela era a Beata Catarina.
Bem que Dona Rosalina estranhou-lhe o jeito e o figurino, mas o filho afirmava que era assim a moderna imagem da santa de sua devoção.
Meio a contragosto, a rezadeira mandou fixar novamente a cantoneira e, sobre o paninho de adorno, colocou a nova imagem. Porém, ao lado desta, o que sobrara da antiga, ou seja, apenas a cabeça.
Na hora de receber a visitante, Dona Rosalina acendia a vela, dirigia-se à cabeça da velha imagem, e sussurrava: “Minha Beata, sei que a senhora não pode mais trabalhar, mas explique a situação pra ela (e apontava para a nova imagem) e peça pra ela atender o meu pedido, tá bom?”
E assim seguiu a vida de Dona Rosalina, de Ilha Nova do Baixo Madeira, a rezadeira cuja fé na Beata Catarina era tão grande que tornava as mulheres sem filhos férteis como uma roça de macaxeira...
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