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Sandra Castiel

Afinal, o que é o tempo?


Afinal, o que é o tempo? - Gente de Opinião

Quando eu era nova, o tempo não era um tema que eu considerasse instigante. Para mim bastava pensar que a vida é o que é, ou seja, tudo se modifica ao longo das experiências de quem vive. Mas àquela altura eu estava no princípio da minha jornada, focada em planos e objetivos, não havia vivido o bastante para reflexões filosóficas, o sentimento que me movia diante das leis da vida era, em outras palavras, manter a inocência dos ignorantes (sem ter noção desta opção).

 

JUVENTUDE:

Em nossa casa, meu pai vivia a repetir uma frase que me marcou pra sempre. Isto acontecia quando recebíamos a notícia da morte de um conhecido ou amigo, um parente ou pessoa próxima: “- É a Vida! ...-É a Vida!”

Ao repetir esta frase, sua voz mudava, seu rosto se transfigurava em mágoa, em desolação, em raiva, talvez. Refugiava-se em sua rede, com seu maço de cigarros e com seus pensamentos. Não queria conversas. No dia seguinte, voltava aos seus livros de bolso, à leitura das histórias de faroeste americano, mas evitava até sair do quarto. Não conseguia ir a velório, tampouco a sepultamento.

Depois de tantos anos, leio o comportamento de meu pai como o de um homem de meia idade que não aceitava a ideia e a concretude da morte, da finitude de tudo o que é vivo; isto lhe causava um profundo sentimento de indignação e, sobretudo, de ressentimento contra a Vida, contra suas regras, contra a impossibilidade de mudá-las. Ah se pudesse parar o tempo! ... Afinal, sabia que as leis da vida são eternas e imutáveis, isto o incomodava profundamente. 

Hoje minha leitura da mágoa de meu pai diante da finitude tornou-se mais clara. Estar vivo, para ele, significava contemplar e interagir com a natureza, com a simplicidade das cidades minúsculas às margens dos caudalosos rios amazônicos, e com suas filhas, esses eram seu tesouro.

Costumava inventar histórias sobre a floresta e contá-las com uma interpretação incrível, para as filhas crianças. Os personagens das histórias pertenciam sempre a esse universo, inclusive ele próprio. Creio que encarava a morte como uma “sentença” de privação injusta do que lhe era mais caro, privação eterna imposta pelas leis do universo.

 

INFÂNCIA:

“Uma choupana à beira do rio Amazonas, chão de terra batida, teto de palha, no meio da floresta. Um dia, meu pai e seu amigo, cansados de caminhar naquela mata, avistaram a choupana e chegaram até ela. Foram bem recebidos pelo dono da casinha onde passariam a noite; este era um senhor de certa idade, que ali morava com sua filha, Jara, garotinha de 6 anos de idade, descrita como uma caboclinha de aparência frágil, magrinha e de cabelos longos. A história de Jara era triste, sua mãe havia morrido por uma picada da terrível cobra pico-de-jaca.

Todos ataram suas redes no único cômodo que havia. Meu pai só conseguiu cochilar de madrugada. Acordou quando ouviu o seguinte diálogo:

-Jara!

- Siô, meu pai!  

-Si alevanta, minina!

-Já vô, meu pai!

-Vai perpará um café pru meu cumpade Rafaé e pru amigo dele!

Na penumbra do barraco, à luz de uma antiga lamparina, a menina levantou da rede, pegou uma panela velha pendurada em um prego na parede e saiu, descalça, os longos cabelos lisos desgrenhados, em direção ao rio. O dia ainda não havia nascido completamente, quando Jara desceu o barranco, acocorou-se bem à beira, e mergulhou a panela nas água do gigantesco Amazonas.

Eis que um jacaré enorme, nascido e criado naquelas águas barrentas, aproximou-se silenciosamente... (ainda não havia comido nada àquele dia), abriu sua bocarra cheia de dentes pontiagudos e, com um movimento que fez as águas tremerem, atacou a pequena Jara. Da choupana, todos ouviram o grito desesperado da menina.

- Meu pai! Me ajuda, meu pai!

Ao sentir que a filha estava em perigo, o velho pai de Jara teve um passamento (como se falava à época nesta região) e foi amparado pelo amigo de meu pai. Naquele momento, meu pai correu até o rio com sua espingarda, mirou bem e apertou com força o gatilho.   

O tiro certeiro ecoou na mata como uma explosão, espantando os pássaros, que voaram em bandos pra longe: BUM!!!!!!!!

As águas do rio ficaram vermelha do sangue do jacaré, que ainda mantinha a menina presa em sua enorme boca. Os cabelos negros de Jara boiavam sobre as águas iluminadas pelos primeiros raios de sol.  Os três homens arrastaram o bicho pra fora d´agua e com cuidado retiraram a pobre menina. Ela não se mexia, não respirava. Jara estava morta!”

 

Esta história, uma das muitas inventadas por meu pai para encantar a imaginação das filhas, vem-me à memória como a mais linda lembrança de minha infância (apesar de Jara ter morrido no final; acho que a psicologia explica essa morte). É difícil ter que aceitar que aquele tempo está morto, é inútil revisitar lugares para tentar reencontrá-lo, voltando presencialmente aos cenários do passado; nada mais é igual, nem cenários e nem personagens. O tempo leva tudo, como dizia Rubem Braga. Não volte ao passado buscando encontrá-lo, guarde consigo as memórias.

No fundo acredito que o tempo seja linear, isto é apenas uma intuição, não sou filósofa. Gosto de pensar sobre o tempo e imaginar como estará o mundo daqui a cinquenta anos. Algo me diz que já terão inventado uma máquina do tempo, espécie de nave que nos possibilite visitar de verdade o passado, já pensou?!

Uma pena eu não estar mais aqui daqui a cinquenta anos: o tempo já terá aberto sua bocarra cheia de dentes afiados e ... É a Vida! 

 

  sandracastiell@gmail.com

  Professora, escritora, membro da Academia de Letras de Rondônia

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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