Sábado, 8 de fevereiro de 2025 - 08h00
Quisera
eu ser psicanalista… Poder desvendar os complexos meandros da mente, até onde a
limitada capacidade humana alcança.
Saber que
há um acervo de sentimentos, pensamentos e memórias inacessíveis à consciência;
por algum motivo, nós os reprimimos no que Freud chamou de Inconsciente.
Penso que
essas memórias normalmente vêm à tona (ou não) através da psicanálise, ou por
outras causas, como o sujeito viver algo semelhante ao que o traumatizou no
passado, por exemplo.
Fico curiosa com o HD de memórias que são
inacessíveis à minha consciência. Sei que guardo em mim lembranças das várias
fases de minha existência: a menininha que anda com sua boneca, a
pré-adolescente, a adolescente problemática, a jovem adulta, a mulher de meia –
idade, a mulher mais velha, enfim, um conglomerado de “personagens”, de tudo o
que fui até chegar ao que me tornei hoje.
E aí vem o mais surpreendente: de vez em
quando, reproduzimos pensamentos, memórias, atitudes de qualquer fase de nossas
vidas, situações que viviam “recalcadas”
nas profundezas do inconsciente (isto se aplica a todos os seres humanos).
Às vezes
penso que se o tempo não houvesse distanciado de mim essas personagens, eu
poderia interagir com qualquer uma delas, isto seria muito bom. Já pensou ver a
si mesma, criança, plena de inocência, como eram as crianças da época?
Se eu pudesse ver a criança que eu fui, diante
de mim, caminhando na calçada da casa onde nasci e cresci, iniciaria uma
conversinha:
—Oi garotinha,
pra onde vai com essa boneca tão bonita?
—Ele não
é uma boneca, ele é um menino, não vê que ele não tem cabelo?
Bem que pensei em explicar à menina que
alguns bebês nascem sem cabelo e são meninas, depois o cabelo cresce. Mas, como
a garotinha parecia emburrada, achei melhor mudar de assunto.
—Você
gosta de passear? —Perguntei à criança. Esta então respondeu, os olhinhos
brilhando:—Gosto, sim, gosto de passear de carro. — É mesmo? — Mas só tem dois
carros na cidade! – Falei. Como você passeia?
—Sabe
aquela rural azul e branca? — é do amigo do papai, ele leva a gente pro sítio
dele; o que mais gosto de ver lá no sítio são os patinhos no lago, a gente joga
farelo de pão pra eles.
E
continuou a criança: —Quando eu crescer, vou ter um lago bem grande, cheio de
patinhos! Eles são tão bonitinhos... A mãe vai na frente, e os patinhos seguem
ela.
Àquela hora resolvi encerrar a conversa;
acabei de descobrir de onde vem minha grandiosa afeição por patos e lagos, ou
lagos e patos, coisas assim.
Depois de
um salto quântico no tempo, tento lembrar-me da adolescente que fora um dia; as
lembranças parecem vagas: a mais forte é
aos quinze anos de idade, a terrível timidez que me torturava.
Adentro
no mais profundo de minha mente e sinto
o quão aquele estado de espírito me incomodava. Ficara curiosa com relação à
minha persona adolescente. Até que a vejo. Está bem à minha frente.
Reconheço-a
pelo vestido (de sair) amarelo, pelas sandálias de saltinho que amava e pelo
meio-sorriso de Monalisa.
— Oi, há
quanto tempo não a vejo…— falo, tentando iniciar uma conversa com a mocinha que
me olha com curiosidade.
— A
senhora me conhece? — pergunta a adolescente, mascando seu chiclete de bola.
—Sim, desde que nasceu; sou amiga de sua mãe—prossigo. São sete irmãs, não é?
A jovem
responde com um sinal afirmativo.
Olhando-a
melhor, percebo um ar de tristeza em seu olhar. Então, pergunto:— Você tem
namorado?
A jovem
demora a responder; quando o faz, sua voz está fraca:
—Não,
nunca tive; minhas irmãs dizem que não tenho namorado porque sou muito magra,
no Colégio também falam isso.
Familiarizada
com o impacto da lembrança cruel, olhei-a de cima abaixo: o que vi foi seu
rosto harmonioso, seu sorriso bonito, seus cabelos escuros, à altura dos
ombros; reparei, sobretudo, em seus grandes olhos cor de mel. Sua figura
longilínea, alta e magra, encantaria as pessoas de hoje; porém, o padrão de
beleza da época era muito diferente: as mulheres consideradas belas em geral
eram “cheinhas”.
A conversa
se estendeu um pouco mais: a mocinha falou de seu amor pelos livros e de como
sua mãe parecia feliz com esta preferência.
Já lera Dom Quixote, Dom Casmurro, Vidas Secas, O Pequeno Príncipe,
Senhora, Vinte Mil Léguas Submarinas, Odisseia e Ilīada, e estava finalizando
Os Lusíadas. Contou que, quando era menor, conseguiu decorar quase todos os
poemas de Olavo
Bilac.
.
Fiquei
emocionada e gratificada em saber que aquela adolescente cheia de complexos já
encontrara sentido para sua vida, um sentido que permanecerá até o fim de sua
existência.
Nos dias
subsequentes, as noites foram longas e insones; no fundo sabia por que. Era
importante, àquela altura, pelo menos mais um encontro comigo mesma: o que a
mulher jovem-adulta que fora em passado remoto teria a lhe dizer?
Penso
nela e lembro-me vagamente que, naquela fase de minha vida, eu já “vencera”
alguns complexos.
Ao entrar
em meu quarto para tentar dormir, o susto fora inevitável. Ela estava ali,
sentada na poltrona em frente à cama:
— Boa
Noite, — diz a jovem adulta, cumprimentando-me, antes de levar o cigarro à
boca. — Você fuma? — pergunto-lhe em tom de reprovação.
— Claro
que fumo, por quê?
-— Os
médicos alertam sobre os danos que o cigarro causa à saúde. — Falo à moça,
preocupada.
Ato contínuo,
ela apaga o cigarro, no meu belo pires de porcelana inglesa, usando-o como
cinzeiro; reparei a mancha de batom na pontinha do cigarro; na hora, lembrei-me
de Agatha Cristie.
Olhei-a
com curiosidade e achei que se tornara uma bela mulher; cabelos muito longos e
brilhantes, cílios enormes nos olhos delineados à la “gatinho” e um batom
suave, cuja marca deixara na ponta do cigarro. Sua voz firme e agradável
certamente refletia sua personalidade forte. Lembrou-me minha mãe.
Diante
daquela jovem adulta, tão segura de si, restou-me achar que era bem mais segura
do que sou, hoje, na atual fase de minha vida.
Já em
minha cama, sorrio para ela meu melhor sorriso, mando--lhe um beijo, viro- me
para o lado e procuro dormir. Estou exausta. Sinto que ela não precisa de
conselhos. Aprendeu a se defender e a perseguir seus objetivos. Contudo,
gostaria de ter interagido mais com elas.
Faltaram tantas! Uma pena. Enfim, vencida pelo cansaço e pelo sono, penso que carrego nas sombras do inconsciente todas as mulheres do mundo.
Sandra Castiel- professora,
escritora, membro efetivo da Academia de Letras de Rondônia.
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