Sábado, 17 de setembro de 2011 - 13h39
O ano era 1958. Meus pais, que eram militantes cutubas desde que chegaram a Porto Velho na década de quarenta, desentenderam-se com o líder Aluízio Ferreira e passaram para outro partido. Em seguida, perderam a eleição. Na época, isso significava uma tragédia, pois aqui não havia adversários políticos, e sim inimigos políticos. Desse modo, a situação ficou tão feia que meus pais resolveram sair de cena por um tempo. Venderam a casa onde vivíamos na Rua Afonso Pena e buscaram abrigo em Belém onde residia nossa avó materna.
Transcorridos longos meses em Belém, a temporada esgotara-se, era hora de voltar. Ademais, meu pai sentia saudades de sua rotina em Porto Velho, sobretudo das idas diárias ao Mercado Central nas primeiras horas da manhã. Ali se fazia um desjejum dos deuses: mingaus - de banana, milho, tapioca e arroz; tapioquinha com coco ralado servida na folha da bananeira; beiju, cuscuz e pamonha, sem contar a infinidade de broas caseiras, delícias feitas na hora. Mas o que meu pai gostava mesmo era de conversar com os amigos que encontrava no Mercado. Isso, antes de seguir para o trabalho na prefeitura. Era uma época em que só se andava a pé, todos se conheciam e tudo ficava muito próximo.
Decidido o retorno para Porto Velho, era preciso providenciar um local para receber nossa numerosa família: pai, mãe e sete filhas das mais variadas idades. Onde iríamos morar, se nossa casa havia sido vendida? Então meu pai voltou na frente para tomar as medidas necessárias. Assim que pôde, telegrafou avisando que havia alugado uma ótima casa na Rua Campos Sales. O mesmo telegrama vinha com uma informação a mais: as meninas vão adorar.
A viagem de volta no navio Leopoldo Perez foi inesquecível. Nós, crianças, passávamos o dia inteiro jogando guloseimas aos botos que, festeiros, rodeavam a embarcação. E repetíamos frases provocativas que viravam um refrão: - Putirum, putirum! Boto encantado! Quer ser meu namorado?
O trajeto de Belém a Manaus e de Manaus a Porto Velho era impressionante. Ficaram-me na memória alguns momentos impagáveis, como a passagem pelo Estreito de Breves - uma espécie de túnel verde, paradisíaco; as compras - essência de patchuli, ventarolas perfumadas feitas de lindas penas, bolsas, sacolas e uma infinidade de objetos típicos; petiscos da culinária regional etc. Tudo isso vendido no navio aos passageiros durante as paradas. Apesar de longa, a viagem era agradabilíssima.
Depois de cerca de quinze dias de viagem, chegamos a Porto Velho. Lembro-me que fomos acordadas ao amanhecer, eu e minhas irmãs, com os carinhos de nosso pai que, animado, entrara no navio e ajudava nossa mãe a recolher a bagagem para o desembarque no porto da cidade. Pouco depois, com a mesma empolgação, apresentou-nos nosso novo lar: a casa da Rua Campos Sales.
Na verdade, era uma casa muito antiga, com janelões de frente para a rua e alpendre na lateral. Este dava para um jardim. Entramos na casa e ficamos impressionadas com a altura do pé direito, com as sancas imponentes, com os portais altíssimos e com as portas duplas. Do teto pendiam grossos cordões que sustentavam as lâmpadas fracas de então. Além da sala de visitas - como se chamava o estar à época - a casa tinha sala de jantar, copa, cozinha e sala de banho separada do toalete. Todos esses cômodos eram altos e estreitos, com exceção do local para o banho, que era mais largo. A maior parte do piso da casa era composta de mosaicos antigos. À direita da sala ficavam os quartos; portas igualmente altas faziam as ligações entre eles, não havia corredor de circulação.
A vida seguiu seu curso e pouco tempo depois já brincávamos no enorme quintal do casarão. A rica variedade de fruteiras representava o paraíso para nós, crianças, e para o grande número de passarinhos que passava por ali: figueira, pitangueira, goiabeira, jaqueira, mangueira, além de outras que já não me recordo. O fato é que havia muita sombra, e o solo vivia coberto por um tapete de folhas secas.
Tudo ia muito bem, até que um dia a cozinheira da casa - a extrovertida e tagarela D. Alice - relatou, assustada, ter ouvido sons de crianças pequenas brincando na cozinha. Mas não havia mais crianças pequenas na família... Alguns dias depois, lembro-me que estava deitada em minha cama, de olhos fechados, e uma pessoa adulta aproximou-se e sentou-se na cama, ao lado de onde ficava meu travesseiro. Achei que fosse minha mãe. Porém, para minha surpresa, não havia mais ninguém no cômodo além de mim. Na semana seguinte, uma de minhas irmãs mais velhas acordou no meio da noite com um barulho estranho e forte, como se algo tivesse caído em seu quarto. Ao abrir os olhos, pôde ver que havia uma sombra escura e alta ao seu lado. Desde então, passou a apresentar crises de asma terríveis...
Cada vez que acontecia um fenômeno dessa natureza, o caso era levado a quem acreditávamos que podia explicá-lo e resolvê-lo: nosso pai. Todas nós achávamos que ele realmente entendia do assunto, talvez por ser o grande contador de histórias de nossa infância - transformava qualquer casinho em uma epopeia. Quando o clima de medo se instaurava na casa, principalmente na hora de deitar, ele tomava uma providência drástica. Teatral, repetia solenemente, em voz muito alta e forte, talvez para que os espíritos pudessem ouvi-lo, uma frase que se tornou remédio para tudo: - NINGUÉM PODE MAIS DO QUE DEUS!... Feito isso, todos íamos dormir sossegados, era pura magia.
Assim, vivemos vários anos no sombrio casarão da Rua Campos Sales, onde o quintal era um capítulo à parte em matéria de assombrações. Ouvia-se choro e risos vindos dali. Uma silhueta feminina de longos cabelos negros, carregando uma criança no colo, era vista andando em meio às fruteiras e pisando nas folhas secas do chão. Apesar de eventualmente podermos vislumbrá-la rapidamente com o canto do olho e intuir quando estava por perto, sabíamos que não era uma pessoa real. Certo dia minha mãe avistou a tal mulher passando pelas portas que faziam a ligação entre os quartos da casa.
Depois de tantos anos morando no antigo casarão, meus pais receberam uma casa que pertencia à União, no bairro Caiari. E ali começou outra fase de nossa vida. Mas a família não esqueceu a velha casa assombrada da Rua Campos Sales. Aliás, ela foi demolida há alguns anos. Até hoje, não construíram nada no local. Vai ver a dama misteriosa de cabelos longos e negros ainda está por lá, amassando com os pés as folhas secas do chão...
Fonte: Fonte: Sandra Castiel - sandracastiell@gmail.com
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