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Sandra Castiel

A MORENA DOS SETE BOTINHOS


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Eu era menina já crescida em Porto Velho. Àquela época, era comum chegarem à cidade moças provenientes do Beiradão, que é como o povo se referia às localidades ribeirinhas, à procura de trabalho. Foi assim que uma cabocla falante e expressiva empregou-se em nossa casa; chamavam-na, desde criança, de Morena.

Morena era uma pessoa carismática. Em poucos dias, a vizinhança inteira a conhecia. Prestativa e trabalhadora, era solicitada pelos vizinhos com frequência: - Morena, bate um bolo pra mim? – Lá ia Morena, alegre e satisfeita, bater o bolo. - Morena, faz a bainha da minha saia? – Prontamente, Morena tomava da agulha e da linha e costurava como bordados, em ziguezague, metros de bainha. Mas o que Morena fazia melhor, mesmo, era contar história.

Toda noite a garotada das imediações reunia-se em frente a nossa casa para ouvir suas histórias. Então, depois que lavava a louça do jantar, e a criançada estava devidamente acomodada na extensa calçada à luz do límpido luar de então, a história começava.

As histórias tinham sempre o mesmo cenário - o universo onde Morena nascera e crescera: o mato, o rio e suas cachoeiras. Mas os personagens... Esses eram completamente inusitados: pessoas reais que se tornavam encantadas, pássaros agourentos que viravam mulher e peixe que virava homem. Claro que ouvimos diversas vezes casos de botos que engravidavam as mocinhas, mas nesse particular Morena foi mais longe.

Nenhuma história foi tão impressionante quanto a história da vida de Morena. Esta ela contou, reservadamente, às crianças maiores da casa e desta vez no quintal, ao pé de nossa frondosa mangueira.

Vivia Morena em Bom Jardim, localidade ribeirinha, no baixo Madeira, com os pais e cinco irmãos mais novos. Morena tinha um namorado, com quem pretendia se casar, assim que ele terminasse de fazer a casinha que prometera ao pai dela. Pois Seu Ranunfo, o pai, só permitia o casamento depois que o casal tivesse sua própria casa.

Estava pois, Morena, noiva, de um rapaz sério e trabalhador, quando conheceu o Boto, a perdição de sua vida.

Era sábado. Assim que o dia amanheceu, Morena juntou a roupa suja de sua família, colocou-a numa bacia de alumínio e dirigiu-se até o rio. Consigo, carregava uma barra de sabão. Esta era uma das tarefas que fazia para ajudar a mãe, que estava de barriga.

Enquanto ensaboava a roupa, de cócoras na beira do rio, notou um movimento n'água, como se alguém estivesse boiando. Olhou na direção do ruído e nada viu, além de algumas bolhas que rapidamente se dissiparam. Logo depois, porém, percebeu uma presença às suas costas. Virou-se e deparou-se com um homem.

O homem era jovem e queimado de sol. Nu da cintura para cima, exibia um torso forte e musculoso. Sorriu para Morena com seus dentes perfeitos e afastou-se rapidamente dali. – De onde viera aquele homem? A moça ficou intrigada, pois conhecia todos os rapazes do lugar e nunca vira aquele sujeito em sua vida. Dando de ombros, voltou a esfregar a roupa suja.

Mais tarde, a mãe de Morena avisou-lhe que àquela noite haveria um arrasta-pé na casa de sua madrinha, Comadre Santinha. Como não estava muito bem, pois lhe doíam os quartos - Dizia-lhe a mãe -, era bom que Morena comparecesse mais o Benê, seu irmão do meio.

Morena, contudo, argumentou que o noivo estava em Porto Velho, trabalhando na estiva, não ficava bem ir a uma festa sem ele. Porém a mãe insistia que fosse, afinal iria acompanhada de seu irmão. - Chato seria não ir a afilhada, ainda mais que a Comadre mandara um mensageiro para avisar da festança.

Sem outro remédio, Morena preparou-se para a festa: vestidinho vermelho estampado de flor, cabelo solto no meio da cintura, pó de arroz e batom. Nos pés, as alpercatas cheirando a novo. Para completar, o perfume de jasmim. Estava pronta.

Habilidoso na condução da canoa, Benê, apesar da pouca idade, conhecia as curvas do rio como poucos. Depois de uns quarenta minutos remando, chegaram à casa da Madrinha. Lamparina na mão, subiram o barranco e entraram na casa.

No terreiro da Comadre Santinha, a festa estava animada. O sanfoneiro era dos bons, e a comida, farta. Isto sem falar na bebida... Tinha até leite de tigre para as damas!... Os homens gostavam mesmo era da cachaça.

De repente os olhos cor de mel de Morena iluminados pela luz dos candeeiros encontraram os olhos negros e amendoados do rapaz da beira do rio. Ele sorriu e veio ao seu encontro. Enlaçou-a pela cintura com força e levou-a para dançar no meio do terreiro. Naquele instante, Morena sentiu que estava perdida. Passou a festa inteira agarradinha nele: rosto colado, corpo colado, rodopiando, dançando, abraçando, beijando...

Quando Morena deu por si estava sozinha na beira do rio com o rapaz, à luz do luar. Enfeitiçada por seus carinhos, a moça entregou-lhe a donzelice.

- Preciso ir agora - Disse ele, assim que tirou os sapatos, a camisa branca e molhou os pés nas águas do rio. Foi nessa hora que Morena estranhou o moço. Tentou segurá-lo pelos ombros, mas notou que seu corpo estava liso como sabão, liso como pele de peixe.

- Fica triste comigo não!... – Disse-lhe o homem – Contigo foi diferente! Tu vais ver daqui a nove meses...

Dito isso, saltou com impressionante agilidade para dentro do rio e desapareceu nas águas turvas. Solitária, Morena chorou sob o céu estrelado.

O tempo passou e a moça percebeu a gravidez.

Enquanto trocava os cueiros do irmãozinho de três meses, pensava na vida e no que lhe acontecera.

Na verdade, não se sentia culpada de nada, isso ela já havia explicado para o noivo e para a família toda. Ainda bem que sua madrinha, Dona Santinha, testemunhara tudo: o homem que estava na festa era Boto. Vai ver esse Boto já estava de olho nela, desde cedo àquele sábado, quando levara a roupa para lavar na beira do rio. E à noite, apareceu por lá, o safado, só para seduzi-la e tirar-lhe a donzelice.

O noivo fora compreensivo e não duvidara de sua honestidade. Sabia que nenhuma mulher resiste aos encantos do peixe que vira homem. Criaria, pois, o filho do Boto como se fosse seu, fazer o quê? - Ela não era a primeira nem seria a última naquela região - afirmava enfaticamente o noivo.

As dores do parto duraram três dias, e Morena só conseguia suportá-las se mergulhasse os pés nas águas do rio. Foi assim que, deitada à beira d’água e segurando a mão da madrinha, Morena deu à luz sete botinhos. À medida que nasciam, os botinhos entravam no rio e partiam.

Atônita, lembrou-se das palavras do homem: - Fica triste comigo não, contigo foi diferente, tu vais ver daqui a nove meses...

- Então era isso!...- Pensava Morena... - Boto dando! Não lhe fizera um filho, mas sim, sete botinhos... Será que lhe entregara de verdade seu amor de peixe-homem, por isso nasceram-lhe os botinhos? Isto nunca saberia.

O caso de Morena ficou conhecido em Bom Jardim do baixo Madeira. Sempre que a moça ia atravessar o rio, ou deslocar-se para outra localidade, sua canoa era rodeada por sete botos a lhe fazer a festa... Todos no lugar sabiam que eram seus filhos.

O noivo de Morena, envergonhado com a história dos sete botinhos, viajou para Manaus e nunca mais deu notícias. Morena passou a viver em Porto Velho, onde se casou e seguiu contando suas histórias.

 

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Fonte: Fonte: Sandra Castiel - sandracastiell@gmail.com
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