Sábado, 4 de fevereiro de 2012 - 17h07
Desde criança brincava de observar a vida. De manhã cedo, sentadinha no muro baixo da casa simples em que vivia, espiava as pessoas que passavam, homens e mulheres a caminho do trabalho; seus passos deixavam um rastro sinuoso no capim úmido. Cada um com seus pensamentos, com seus afazeres. Assim distinguia os tristes dos felizes de acordo com minha simplória capacidade de análise: os felizes eram atentos, prestavam atenção no entorno; os outros, os tristes, eram ensimesmados, olhavam apenas para dentro.
Tive a sorte de nascer e crescer em uma cidade pequena, num tempo em que não havia televisão, e só os ricos andavam de carro. Na Amazônia de minha infância, ricos eram os seringalistas, mas também era considerado rico quem vivesse em uma casa melhor, de alvenaria, e fosse filho de professor, engenheiro, dentista, médico etc.
Os professores eram respeitadíssimos e faziam jus ao título; em seu ofício, desenvolviam o intelecto dos alunos com os recursos que dispunham: instrução, dedicação, disciplina e nenhuma tecnologia.
Os engenheiros de antigamente costumavam realizar seu trabalho individualmente e tornavam-se conhecidos pela competência. No canteiro de obras lia-se, por exemplo, Engenheiro José Otino de Freitas. Isso já imprimia o devido respeito; um único engenheiro era responsável por obras monumentais que estão de pé até hoje: nenhuma caía por erros de cálculo ou coisas do tipo.
O médico era tudo numa cidade pequena: espécie de sacerdote, espécie de conselheiro, além de, eventualmente, professor e, sempre, salvador. Os consultórios geralmente eram instalados nos fundos das farmácias, em minúsculos cômodos. Fico imaginando hoje como os médicos de então sobreviviam, já que só pagava consulta quem podia pagar mesmo assim, se o médico fosse amigo da família, não cobrava. Aliás, não cobrava os inúmeros atendimentos em domicílio - Criança com febre e convulsão? - Chama o Dr. Aarão. E alguém da casa tratava de ir correndo, literalmente correndo, até onde estava o médico.
O olhar de criança que tínhamos sobre as coisas, sobre o cotidiano e sobre as pessoas configurava a vida. E a vida era lúdica até na morte, pois os velórios eram um acontecimento na cidade pequena, ocasião para ouvir histórias sobre o sobrenatural e os mistérios da existência.
Existiam as decepções, claro, mas estas pareciam acanhadas e rápidas, pois quando Deus fechava uma porta, tratava de abrir uma janela bem grande pra deixar o sol entrar e os ânimos se renovarem.
Hoje, muitas décadas depois, andei a pé pela rua onde vivi minha infância. A casa continua lá, o muro baixo ainda é o mesmo, e a grande maioria das casas antigas foi transformada em prédio. Fiquei ali, parada, enquanto a alma se transportava à dimensão dos tempos idos: muitas árvores, muito capim, largos espaços entre as casinhas de tábua encravadas uma aqui outra ali na terra avermelhada. Das janelas pequenas e toscas, a pacata vizinhança acompanhava a vida lá fora: crianças brincando, mulheres de salto alto e saia rodada, driblando buracos e poças d’água, homens a caminho de algo que provesse o pão daquele dia. Tudo tão diferente...
Na dimensão do passado nos despojamos das amarguras, nos despojamos das agruras, nos despojamos das frustrações, nos despojamos das vaidades, enfim, nos despimos de quem nos tornamos ou do que nos tornaram, e viramos todos personagens. O meu personagem é a garotinha curiosa que gostava de ver a vida passar, e aí se leia um desfile de galinhas, patos, cães, gatos, bois, cavalos, carneiros, bodes, carroças, ciclistas com flâmulas no guidom da bicicleta, uma rural Williams de vez em quando, além de todo tipo de gente, é claro.
A maior vantagem de se envelhecer, além de poder ver os filhos adultos e também de saber como são os netos, é se dar ao luxo de sentar de novo no muro baixo da vida e dali contemplar suas verdadeiras belezas: árvores com frutas no pé, passarinhos, flores, sol brilhando, céu azul, céu estrelado, lua cheia, casinhas humildes no meio do nada, cheiro de terra molhada, muita sombra e água fresca, e tudo mais que se fotografou com a memória e se registrou na alma.
Há que se aproveitar a velhice, pois ela nos traz de volta as maravilhosas descobertas da infância, há muito esquecidas nas demandas e nas urgências da vida adulta...
A cena mais marcante de minha vida é a da garotinha que continua lá, na mesma rua, no mesmo posto, sentada no muro baixo a espiar o movimento.
- E não é que a danada, quando me viu passar, olhou-me como se me conhecesse de algum lugar?... Sorriu e até acenou pra mim, antes de entrar em casa e fechar a porta.
- Deve ter ido cuidar da vida, fiquei a pensar, com uma pontinha de inveja. Afinal, havia um futuro a sua frente. Assim matutando, entrei no carro e parti.
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Ela não era fumante, nunca foi, e se casou com meu pai, que fumava desde a meninice. Ela passava mal com o cheiro forte do cigarro impregnado nos le
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