Domingo, 24 de novembro de 2024 | Porto Velho (RO)

×
Gente de Opinião

Sandra Castiel

A POSSUÍDA DO BAIXO MADEIRA - Por Sandra Castiel


Nos idos de 1970, viva numa localidade denominada Terra Caída, no Baixo Madeira, Dona Zequinha, com o marido João e oito filhos, quatro deles com menos de seis anos de idade.

A casa da família ficava embrenhada no mato, o que dificultava a vida. Cada um tinha sua rede pra dormir e seu mosquiteiro, pois a malária não perdoava.

A uma distância de uns três quilômetros da residência, caminhando mata adentro, havia duas casas, eram as mais próximas; numa delas morava a comadre Aleixa; na outra, seu Chico, uma espécie de curandeiro do lugar. Seu Chico vivia sozinho, cultivava ervas e costumava peregrinar pelo Madeira atendendo aos inúmeros chamados que recebia.

A vida no sítio de Dona Zequinha era muito simples. A pesca e a caça garantiam a refeição do dia e isto ficava a cargo do Seu João. O pai saía antes do amanhecer para pescar.

No jirau de madeira tosca na janela da casa, Dona Zequinha tratava o peixe para o almoço: piraíba, piramutaba, pacu, curimatã, dourado, tambaqui ou jatuarana; pequeno ou grande, pouco ou muito, o peixe era temperado com chicória e pimenta da boa. A farinha d'água era feita ali mesmo, na casa de farinha que seu João mantinha no terreiro. Leite ali não tinha não. Só quando a família ia na taberna, no povoado, uma vez no mês. Como a fome era muita, o rancho acabava logo. Por isso na maioria dos dias, o café da manhã era servido preto, com beiju.

Para lavar a roupa da família, Dona Zequinha arrumava tudo numa trouxa, dava um nó vigoroso, e caminhava até a beira do rio. Costumava levar consigo um dos filhos para ajudar a carregar a trouxa que transportava na cabeça; afinal, as redes e os mosquiteiros pesavam.

Quase todo dia, lá ia Dona Zequinha em direção ao rio. Ali chegando arriava a trouxa e, peça por peça, ia lavando, esfregando os panos, quarando sobre uma pedra. Como saía assim que amanhecia, no meio da manhã já estava de volta, preparando o almoço da família. O dia na mata começava muito cedo e mal a noite chegava, todos iam dormir.

Um dia, Dona Zequinha teve que sair mais tarde para lavar roupa; o caçula tivera febre durante a noite, uma trabalheira danada: chá de capim santo, pano molhado sobre o corpo, e até um melhoral infantil que mantinha guardado como uma relíquia. Enfim, quando chegou à beira com sua trouxa, o sol já estava ardendo na pele.

De repente, no meio da função, um mal-estar súbito, e Dona Zequinha teve um desmaio: o corpo projetou-se para frente, a cara ficou sobre a pedra ensaboada, e ela permaneceu ali, inerte.

O filho que a acompanhava tentou reanimá-la, mas ela não respondia. O que fazer? O pobre garoto, desesperado, resolveu buscar ajuda e, pé na carreira, entrou aos gritos na casa de seu Chico; o curandeiro acorreu imediatamente ao local. Assim, Dona Zequinha foi colocada em uma rede, inconsciente, e levada devagar até o lar, onde o marido e os filhos a rodearam preocupados.

Em casa, o curandeiro tratou de fazer suas rezas, tempo que Dona Zequinha voltou à consciência e ouviu o diagnóstico: ”A amiga passou do meio-dia na beira, sem a devida proteção; mulher, em certos dias do mês, tem que levar alho e sal, esfregar na pedra de lavar roupa, senão pode acordar alguma coisa ruim que dorme lá no fundo do rio; se fosse só pra espantar boto, bastava levar o alho; mas o rio é lugar de mistério, tem muita coisa escondida no fundo, por isso é bom levar também o sal.” Dito isso, deu o assunto por encerrado e foi tratar da vida.

Depois do acontecido, Dona Zequinha passou a levar alho e sal junto com a trouxa de roupa para a beira do rio.

Ocorre que um dia, com dois mosquiteiros sujos e uma rede muito encardida, a mulher partiu para sua função de lavar aquilo tudo e ainda voltar a tempo de preparar o peixe para o almoço. Consigo, um dos filhos maiores, de quatorze anos de idade. De cócoras, bate, esfrega, mergulha a roupa dend'água, peça por peça. De repente lembrou-se que não trouxera o alho e o sal; deu de ombros. A pilha de roupa era enorme.

O filho, que estava no alto de uma mangueira colhendo mangas, enquanto a mãe lavava roupa, escutou seu grito. Desceu da árvore e encontrou Dona Zequinha no chão debatendo-se: mãos fechadas na direção do próprio peito, pés virados para dentro, olhos girando nas órbitas, uma cena tenebrosa.

O rapaz ainda tentou segurar a mãe, mas foi inútil. Então correu desesperado em busca de socorro: curandeiro, rezas, família, ervas; todo o povoado acudiu.

Médico não havia no lugar; tinha sim um enfermeiro que foi até a casa tentar ajudar, mas Dona Zequinha não voltava à consciência. Ficou ali, no fundo da rede, corpo hirto, olhos e dentes cerrados; os dias se passaram, e nada. Isso levou quase um ano, tempo ao longo do qual a comadre Aleixa desdobrou-se para mantê-la viva, fazendo com que engolisse um caldo da caridade, bem fininho, único recurso que dispunha.

Uma noite, o filho mais velho acordou a casa inteira com um grito; espantara-se ao ver a silhueta de Dona Zequinha, empertigada, sentada na rede, na penumbra do quarto, iluminado apenas pela luz do luar que entrava pela janela.

Todos tentaram conversar com ela, mas ela não respondia. O marido acendeu uma lamparina e aproximou-se dela, porém recuou, assustado: sua fisionomia estava diferente, transformada, endurecida. O que se seguiu, então, deixou a família apavorada: Da boca torta da mulher, uma voz masculina, muito grave, sussurrou em tom áspero e gutural: - Sai daqui!

A família não reconhecia mais Dona Zequinha; ela se transformara em outra pessoa. Em vão os filhos e o marido insistiam em conversar com ela; ouviam apenas a frase de sempre, dita entre dentes, com voz de alguém endemoniado : -Sai daqui!

De manhã, quando a família acordava, já não encontrava a mãe em casa; esta se embrenhava na mata e só voltava com o sol se pondo. Um dos filhos resolveu segui-la sem ser visto; para onde iria a mãe? O que fazia o dia inteiro na mata?

Assim, descobriu que Dona Zequinha, ou a pessoa em que se transformara, punha-se de cócoras à beira do rio, afundava a mão na água até o cotovelo e dali colhia, como capim, um peixe atrás do outro. O rapaz mal acreditou no que viu: a mulher comia os peixes vivos, que ficavam com parte do corpo pra fora da boca, enquanto ela os devorava rapidamente. Depois, sentava-se sob uma castanheira, tirava tabaco do bolso do vestido simples, mascava e cuspia de lado, como um homem.

Assim viveu aquela família durante uns dois anos, convivendo com a mãe que não era mais a mãe; estava possuída. Num domingo, quando o pai cuidava do café da manhã, ouviu uma voz de homem às suas costas, que dizia:

- Agora vou deixar vocês em paz. Adeus!

Daquele momento em diante, Dona Zequinha voltou a ser a mãe e esposa meiga e amorosa de sempre. Nunca mais quis saber de voltar à beira do rio; a roupa passou a ser lavada em casa, nas bacias que o marido tratou de comprar.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

Gente de OpiniãoDomingo, 24 de novembro de 2024 | Porto Velho (RO)

VOCÊ PODE GOSTAR

Afinal, o que é o tempo?

Afinal, o que é o tempo?

Quando eu era nova, o tempo não era um tema que eu considerasse instigante. Para mim bastava pensar que a vida é o que é, ou seja, tudo se modifica

O quarto de minha mãe

O quarto de minha mãe

Ela não era fumante, nunca foi, e se casou com meu pai, que fumava desde a meninice. Ela passava mal com o cheiro forte do cigarro impregnado nos le

De mãos dadas

De mãos dadas

O mundo em que nasci não é este que Deus está me permitindo ver e viver.  Em um mundo analógico, as mudanças eram lentas; as crianças obedeciam às r

Porto velho:  natureza em chamas

Porto velho: natureza em chamas

Era madrugada de quinta-feira quando despertei; minha respiração estava difícil, as vias respiratórias pareciam ter dificuldade em cumprir sua funçã

Gente de Opinião Domingo, 24 de novembro de 2024 | Porto Velho (RO)