Quinta-feira, 31 de janeiro de 2019 - 21h22
Nos idos anos sessenta,
Porto Velho era uma cidade pacata. Não
havia buzinas de carros, ruídos de freadas de ônibus, o som de fundo de um
comércio agitado, coisas assim...
O silêncio que pairava no ar só era
quebrado por dois apitos característicos, que deixavam a população toda em
alerta: o primeiro era o apito da Madeira-Mamoré, reconhecido por todo o povo,
inclusive pela criança que eu era; de manhã cedo, sabia que era hora de ir à
escola; no meio do dia, ou no fim da tarde, sabia que era hora de a aula
terminar, pura alegria!
O segundo apito trazia sentimentos
ambíguos de alegria e tristeza: ou era da chegada do navio, ou era da partida.
Os confortáveis navios de minha infância e
depois de minha juventude, Leopoldo Peres, Augusto Montenegro, Lobo D’Almada e
Lauro Sodré significavam mais do que meios de transporte de passageiros e encomendas;
eram o máximo!
Para as crianças, pura magia! A grande diversão era lançar, da popa da
embarcação, farelos de pão aos botos, e havia muitos, centenas, milhares deles!
Além do glamour das viagens, o bom
tratamento dispensado aos passageiros fazia toda a diferença. Cabe frisar um
detalhe importante: o glamour do dia-a-dia existia na primeira classe, ou seja,
no andar mais alto do navio, destinado à acomodação dos passageiros.
Para quem não se recorda, havia três
categorias de passagens: a primeira classe dava direito a belos camarotes,
pelos quais as pessoas pagavam mais caro; lembro-me especialmente de dois
detalhes da primeira classe que me encantavam sobremaneira: no banheiro,
sabonete PHEBO! Para os moradores desta região (pelo menos para mim) era algo
de outro mundo; pretinho e muito cheiroso, um luxo! O outro detalhe era uma espécie de ventilador
embutido em cada leito dos beliches desses camarotes; eu considerava aquilo o
máximo da modernidade e do conforto!
A segunda classe ficava no andar logo
abaixo do primeiro; apesar de na segunda classe os passageiros também
desfrutarem de camarotes, esta categoria de passagens não proporcionava os
confortos da primeira. Aliás, ficou-me entranhado na memória uma lembrança
inesquecível: o forte odor de fritura que impregnava todo este andar. Ficaria
ali a cozinha? Creio que sim.
Finalmente havia a terceira classe: um grande
espaço abaixo da segunda classe, com dezenas de redes atadas; assim viajavam os
passageiros da terceira classe: ventilação natural e, da popa do navio, vista
noturna para a imensidão do Madeira e para a imensidão do infinito!
Apesar de distanciados por esta
espécie de pirâmide social ou econômica, tudo isto acabava durante as festas
proporcionadas pela tripulação aos passageiros; nelas, as pessoas passavam a
conhecer umas às outras e grandes amizades nasciam desses momentos.
Foi assim que minha irmã Ana Maria, na
época, uma beldade regional, passou por uma incrível experiência em uma viagem
de Pôrto-Velho (era assim que se
escrevia àquele tempo) a Belém do Pará.
Minha irmã era realmente uma lindeza: a
baixa estatura (nasceu mignon como nossa mãe) em nada comprometia sua beleza
exótica; era uma Cleópatra amazônida a virar a cabeça dos rapazes e senhores,
por onde transitasse sua bela figura.
Pele de seda branca, cabelos negros, finos,
sedosos e muito lisos caíam-lhe sobre os ombros bem definidos; corpo perfeito,
pernas torneadas e belo semblante: sobrancelhas fartas e longas que emolduravam
(a exemplo das tradicionais egípcias dos filmes de Hollyood) os olhos escuros e
muito bem maquiados; traços harmoniosos que compunham sua formosura. Assim era
minha irmã Ana Maria, no esplendor de seus dezoito anos.
Ao longo de sua viagem no navio
Leopoldo Peres, acompanhada de nossa irmã mais velha, comprou de um mascate, em
uma das paradas do navio, um conjuntinho de saia e blusa de algodão que achou
uma beleza!
Hoje, lembra-se, rindo muito, dos
detalhes do traje: a blusa era xadrez,
quadriculada e colorida como uma toalha de mesa das pensões de antigamente, as
quais forneciam refeições; a saia era de cor única, porém, à altura da bainha,
trazia uma espécie de barra, no mesmo padrão da blusa, para combinar. Deixou a
roupa preparada para uma ocasião especial. E a ocasião chegou.
A noite no navio prometia ser primorosa:
festa para os passageiros aproveitarem o céu estrelado, as bebidas, a visão do
rio e a música, claro. Diante disso tudo, minha irmã caprichou no visual.
Gastou quase uma hora na maquiagem (delineador
negro traçando “gatinho” nos olhos, estilo egípcia) e mais tempo ainda nos
cabelos. Para vestir, não teve dúvida: lançou mão do conjunto xadrez, das joias
que possuía, calçou as meias finas da época, (com costura atrás, puro glamour),
sapatos de saltos altíssimos e partiu para o cenário maravilhoso onde acontecia
a festa.
Assim que entrou, os olhares
voltaram-se para sua figura, claro! Foi abordada por um dos tripulantes que a
convidou, em nome da tripulação, para ser candidata ao posto de Rainha do
Leopoldo Peres. A eleição seria àquela noite mesmo e ela iria concorrer com
mais duas candidatas.
De olho na beleza masculina do
tripulante, minha irmã (muito namoradeira) aceitou na hora.
À certa altura, a música foi interrompida,
os pares pararam de dançar e todos sentaram-se para ouvir o anúncio da eleição
da Rainha.
As três moças foram apresentadas aos
passageiros presentes à festa, numa espécie de desfile individual, para que
todos pudessem avaliar sua beleza e simpatia.
Sobre o balcão do bar, foram colocadas
três pequenas cestas; cada cesta trazia o nome de uma candidata.
As pessoas presentes foram convocadas,
pelo representante da tripulação, a depositar qualquer quantia em dinheiro na
cesta de sua candidata preferida. Assim foi feito. Venceria a cesta com maior
valor.
Depois de cerca de uma hora, as cestas
foram recolhidas e os respectivos valores foram contados. Desse modo, minha
irmã Ana Maria tornou-se Rainha do Leopoldo Peres. Sua cesta estava cheia de
dinheiro! Assim, foi coroada, sob aplausos, com uma espécie de guirlanda
(espalhafatosa) feita de flores de plástico. As outras duas moças foram
coroadas princesas, com uma “coroa” mais acanhada.
Parece que o traje de toalha de mesa (aliado
à sua simpatia e à sua beleza) impressionou a todos.
Tenho outra história interessante para contar
sobre as festas nos navios de minha infância e juventude, esta sobre uma
experiência incrível que vivi numa dessas festas, quando fui pedida em namoro, com
propósito de casamento, por uma figura recém-chegada a Pôrto-Velho que eu sequer conhecia.
Mas esta é outra história.
Bons e velhos tempos!
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