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Gente de Opinião

Sandra Castiel

A VIDA POLÍTICA NO TERRITÓRIO FEDERAL DO GUAPORÉ/RONDÔNIA - Por Sandra Castiel


A VIDA POLÍTICA NO TERRITÓRIO FEDERAL DO GUAPORÉ/RONDÔNIA - Gente de Opinião
Deputado Renato Medeiros (ao centro) com o Presidente João Goulart.
À direita, o jornalista Vinícius Danin.

Sandra Castiel
                                                                                                     

         No antigo território do Guaporé/Rondônia, a vida política era muito movimentada. Posso dizer, sem medo de errar, que, nas décadas subsequentes à criação do Território, a opção partidária de um cidadão determinava literalmente seu destino e o de sua família. Não havia adversários políticos; havia, sim, terríveis inimigos políticos. Na verdade eram duas facções arquirrivais que se digladiavam (e se digladiaram) não apenas no período das eleições, mas ao longo de toda sua história: cutubas e peles-curtas. O único cargo eletivo era o de deputado federal, cargo determinante à montagem da máquina administrativa do Território.

         O 3 de Outubro, dia destinado às eleições, era festivo. Mal raiava o sol e começava a movimentação de cabos-eleitorais, com seus trajes domingueiros, num ir e vir incessante, ora conduzindo eleitores aos locais de votação (na cidade, a pé mesmo, pois os automóveis na época eram poucos, estes destinados a buscar eleitores em locais mais distantes), ora em embarcações ao longo dos rios regionais, ou ainda fazendo apologia de seus candidatos em rodinhas nos quatro cantos da cidade.

          Cabe ressaltar que a chamada “boca de urna” era uma prática completamente corriqueira. Enquanto esperavam nas filas para votar, os eleitores eram abordados livremente pelos cabos eleitorais, e muitos votos eram conquistados à última hora. Há que se mencionar, também, que o momento da votação envolvia um significado que ia além de eleger ou derrotar alguém nas urnas; as senhoras da cidade encomendavam vestidos novos às costureiras do lugar e mandavam fazer penteados, nos salões de beleza, pois era conveniente estar muito elegante para evento tão grandioso.  Às cinco horas da tarde, encerrava-se a votação e começava outra história: os comentários sobre as atividades e incontáveis episódios ocorridos àquele dia.

          Na residência dos meus pais, Marise e Raphael Castiel, na Rua Afonso Pena, esquina com Rua Campos Sales, faltavam cadeiras para acomodar tantos correligionários, noite adentro, e os discursos eram deveras vibrantes. Politiqueira, minha mãe ouvia tudo com semblante de contentamento, do mesmo modo que, com a mesma empolgação, tecia críticas aos membros do partido adversário. Fôlego era o que não faltava... Mas o grande dia mesmo era o dia seguinte, 4 de Outubro, o dia da apuração dos votos.

           Desde cedo começava a movimentação em direção à Praça Marechal Rondon. Em frente à Praça, ficava o Fórum Rui Barbosa, importante e imponente edificação, demolida há algumas décadas pela falta de sensibilidade de certo governante. Também em frente à Praça, o Cine Resky. Ali, no alto do prédio do cinema, eram instalados alto-falantes para que o povo que lotava maciçamente a Praça Rondon acompanhasse a contagem dos votos, um por um. Era falado o nome do candidato e de seu respectivo suplente. Lembro-me ainda hoje do timbre da voz (meio cavernosa) que anunciava os votos: “Ênio e Chico Torres (cutubas) ou “Renato e Hegel” (peles-curtas).

          Ambulantes, engraxates, pipoqueiros, sorveteiros, piruliteiros e vendedores de caldo de cana com pastel transitavam pela praça em meio ao povo, oferecendo seus produtos. De lápis e caderno na mão, dezenas de cabos eleitorais registravam a contagem de votos. Interessante lembrar que já se previa de antemão o resultado da votação de cada urna; o critério estava relacionado ao local de onde viera. Se fosse urna proveniente do bairro Caiari, por exemplo, o bairro vip da capital, os cutubas seriam vitoriosos; se fosse urna proveniente do bairro do Mocambo, por exemplo, bairro popular, certamente os peles-curtas levariam a melhor. Porém, se a previsão não correspondesse à expectativa, havia um verdadeiro deus-nos-acuda! Cabeças iriam rolar, pois determinadas pessoas eram responsabilizadas pelo fracasso.

         Antes do anúncio dos nomes dos candidatos vencedores, as pessoas cujos candidatos estivessem perdendo começavam a deixar o lugar sorrateiramente. Quando, enfim, era anunciado o nome do candidato eleito e seu suplente, em meio à euforia dos presentes, a multidão saía da praça aos gritos, e logo uma grande passeata era formada pelos simpatizantes e correligionários dos vitoriosos, desfilando pelas ruas da cidade em direção às residências desses candidatos, que eram carregados nos braços pelo povo. A passeata estendia-se por horas, até cumprir todo o itinerário; este obrigatoriamente obedecia a um critério: passar pela frente das casas dos adversários. E nessa hora valia tudo: fogos de artifício, achincalho, provocações, pedradas, tiros para o alto e até varrer as calçadas das casas dos derrotados, gesto que significava: você será banido daqui!

           Aos derrotados restavam duas opções: ou sair correndo da cidade em direção à zona rural (sítios ou lugares bem distantes, o que era mais comum) ou reunir-se com amigos para ouvir passar, de portas e janelas fortemente trancadas, a multidão enfurecida. O clima dentro dessas casas era de verdadeiro terror. A derrota representava mudança de vida para pior. Se fosse funcionário público, perder significava ser transferido para trabalhar no local mais remoto da cidade ou até do interior, além de perdas no salário, ou até mesmo do próprio emprego se não fosse efetivo.

           Algumas vezes, urnas eram impugnadas, geralmente pelo partido da situação. Quando isto ocorria, se a contagem de votos não fosse feita na capital, a urna era encaminhada para o distrito federal (Rio de Janeiro), com pernoite em Cuiabá. Evidentemente, nesse meio termo, havia manipulação por quem detinha poder para tal.

              Há que se comentar a origem de tamanha rivalidade entre as duas grandes facções políticas existentes no Território Federal do Guaporé/ Rondônia. Um panorama dessa realidade precisa considerar que a população, sobretudo a urbana, em período anterior à criação do Território, praticamente vivia em função da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Porém, ao passar a Território Federal, houve um processo de transformação no que concerne à organização social, política e administrativa. Todo esse processo fez emergir em Porto Velho, a capital, outro segmento da população que desempenhou um papel importante na política do Território, haja vista a disputa pelos cargos existentes na estrutura administrativa do governo: o funcionalismo público.

               A cada governador que chegava à capital, as expectativas do funcionalismo público cresciam; afinal, muitos almejavam ocupar cargos na máquina administrativa: os salários eram pequenos à época, e as dificuldades da vida eram agravadas pela distância e pelo isolamento dos grandes centros. Ocupar uma função gratificada, portanto, fazia a diferença na vida das pessoas, não no sentido de enriquecimento, porém assegurava, certamente, melhor qualidade de vida em itens como moradia, alimentação e vestuário. Morar em uma casa de alvenaria em Porto Velho era privilégio de poucos.

                 As pessoas que constituíam a classe média eram sobretudos funcionários graduados da Madeira-Mamoré, bancários, funcionários públicos, comerciantes e profissionais liberais, médicos e advogados. A categoria economicamente poderosa à época era a dos grandes seringalistas.

                Na sociedade de Porto Velho, assim como na de Guajará Mirim, o segundo município do território, havia um número significativo de pessoas capazes e aptas para funções de relevância no setor público.  Como os cargos eram disputadíssimos, era comum o cerco ao governador (sempre indicado pelo deputado federal), ao deputado federal e às pessoas que integravam sua comitiva: convites para almoços, convites para jantares, recepções em clubes etc. eventos que traduziam, na verdade, o objetivo maior: fazer parte do seleto grupo de escolhidos do governador (e do deputado federal, claro) que comporia a equipe administrativa.

                O nome de maior prestígio da região desde os anos de 1940 era Aluízio Pinheiro Ferreira. Ainda hoje o nome de Aluízio gera polêmica entre os que o conheceram e entre os que se debruçam sobre sua história. Porém, um fato é incontestável: a importância do papel de Aluízio Pinheiro Ferreira na criação do Território Federal do Guaporé, seu desenvolvimento, suas conquistas, seus fatos mais marcantes.

           Paraense de Bragança, nasceu em 12 de maio de 1897. Cursou a Escola Militar no Rio de Janeiro e, anos mais tarde, por questões políticas, acabou refugiando-se em um seringal nas redondezas de Guajará Mirim; desenvolveu como poucos um grande conhecimento de nossa região. Antes da criação do Território, foi Censor Geral dos Correios e Telégrafos e Diretor da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Posteriormente, foi nomeado Inspetor Geral de Fronteiras. A visita do Presidente Getúlio Vargas a Porto Velho, em 1940, teria sido realizada a convite do então capitão Aluízio Pinheiro Ferreira. Mais tarde, em 1943, quando foi criado o Território Federal do Guaporé, o major do exército Aluízio Pinheiro Ferreira foi nomeado o primeiro governador. Alguns anos depois, Aluízio pediu exoneração do cargo e licença do exército para candidatar-se a deputado federal. Seria a primeira eleição do recém-criado Território.

            Antes de deixar o cargo de governador e lançar-se candidato a deputado federal (único), Aluízio conseguiu que fosse nomeado para governar o Território o Tenente-coronel Joaquim Vicente Rondon, seu aliado e pessoa de sua confiança.

           Até então não havia partidos políticos no Território. Para lançar-se candidato, Aluízio instalou aqui o PTB, o mesmo partido do presidente Getúlio Vargas; instalou, também, o PSD. O PTB uniu-se ao PSD com o objetivo de chegar à câmara federal com um candidato único.

           A vitória de Aluízio era tida como certa. Porém, nesse contexto aparentemente de unanimidade com relação a Aluízio, emerge um grupo de descontentes; entre os líderes do grupo dissidente estavam: Oswaldo Pianna (pai do ex-governador Oswaldo Pianna Filho), Ruy Cantanhede, Abnatal Bentes de Lima (pai do historiador Abnael Machado de Lima), Eduardo Evangelista de Souza e Emídio Feitoza.  Surpreendentemente, o governador Joaquim Vicente Rondon uniu-se ao grupo dissidente e tornou-se opositor de Aluízio Pinheiro Ferreira. A UDN-União Democrática Nacional, partido liderado por Carlos Lacerda, era a maior oposição a Getúlio Vargas na época. Com esta sigla partidária, os dissidentes do grupo aluizista lançaram seu próprio candidato a deputado federal: Paulo Cordeiro da Cruz Saldanha.

            Após uma eleição marcada pela polêmica e controvérsias (até hoje há quem diga que o vencedor daquele pleito foi Paulo Saldanha), Aluízio Pinheiro foi eleito o primeiro deputado federal do Território. Em 1950, na eleição seguinte, Aluízio venceu, derrotando seu adversário e antigo aliado, Joaquim Vicente Rondon. Portanto foram dois mandatos consecutivos como deputado federal, o que significou a nomeação de governadores que integralmente o apoiavam. Porém, o pleito de 1954 foi diferente; a campanha nos dois municípios e distritos foi bastante acirrada. A oposição a Aluízio se fortalecera e um nome ganhara destaque, o do médico Renato Clímaco Borralho de Medeiros, suplente de Joaquim Vicente Rondon. Rondon e Renato  acabaram vencendo Aluízio Ferreira.  

            Médico bastante popular, homem simples e acessível a todos, Renato Medeiros angariava a passos largos a simpatia das camadas mais humildes da população do Território. Nascia, assim, do embate entre essas duas forças antagônicas, as facções cutubas e peles-curtas. Os cutubas representavam a elite, a alta sociedade local, as pessoas de maior poder aquisitivo. Os peles-curtas eram a facção da massa popular, constituída esta de muita gente do povo. Porém, em ambas as facções havia homens intelectualizados e idealistas.

             Os embates entre as duas forças eram terríveis; comumente as pessoas trocavam ofensas através de cartas - abertas publicadas nos jornais locais, Alto Madeira e O Guaporé. Outros jornais, estes bem pequenos, surgiam no cenário como instrumento de achincalho e provocações de toda natureza. Episódios terríveis aconteceram na cidade, como um incêndio criminoso na Catedral de Porto Velho (ocasião em que a santa presenteada por Aluízio Ferreira à paróquia local foi destruída) e a invasão de uma caçamba da prefeitura de Porto Velho sobre os participantes de um comício de Renato Medeiros (candidato a deputado em 1962), episódio que matou um e feriu outros tantos.

               As passeatas eram assustadoras. Em uma época que não havia lei contra o racismo, a figura do Dr. Renato Medeiros, homem negro, era representada e ridicularizada pelos oponentes através de um grande boneco de pano preto que fazia a festa dos cutubas; haviatambém, nas passeatas e comícios, caixões de madeira com nome e sobrenome simulando enterro dos adversários; assim foi o último comício de Ênio Pinheiro, candidato de Aluízio no pleito de 1962. 

               A origem dos nomes cutubas e peles-curtas intriga muita gente. Um grande amigo de meu pai (meu pai era pele-curta) e frequentador de nossa casa foi o autor da expressão cutuba. Este autor não era uma pessoa inculta, aliás, era amante das letras e gostava de satirizar pessoas e acontecimentos.

            Havia um senhor, muito conhecido em Porto Velho que se tornara um dos mais apaixonados correligionários de Aluízio Ferreira. Este senhor possuía trejeitos femininos, característica que motivou  musiquetas, achincalho e toda a sorte de ofensas ao referido senhor.

              Um dia o amigo de meu pai começou a espalhar uma história que envolvia a cidade de Araçatuba e uma fantasiosa escala que um voo com destino a São Paulo fora obrigado a fazer naquela cidade.

               Inventou o amigo de meu pai que o referido senhor de trejeitos femininos estava viajando com destino a São Paulo, quando seu avião pousou em Araçatuba. Era verão e a temperatura estava alta. Dirigiu-se então o referido senhor ao balcão da companhia aérea e, abanando-se com um leque, perguntou à recepcionista da companhia:

_”Diga-me uma coisa, mocinha: por que esta cidade se chama Araçatuba?”

A moça teria respondido: -“A cidade tem esse nome porque aqui havia muita goiaba araçá. Os índios que viviam na região chamavam essa fruta de Araçatuba, pois tuba na língua tupi significa doce. Daí a nova palavra Araçatuba (araçá doce)”.

          De acordo com a narrativa do amigo de meu pai, o cidadão de trejeitos femininos teria ficado encantado com a história, tanto que respondeu de pronto à moça : _”Ah! Agora sei por que lá em Porto Velho, onde moro, todo mundo me chama de cutuba!”

         História espalhada pelos quatro cantos da cidade, os partidários de Aluízio Ferreira e Ênio Pinheiro passaram a ser chamados de cutubas.

          Ouvia-se,  à época em que a rivalidade estava no auge, que os cutubas passaram a chamar peles-curtas os rondonistas e renatistas, porque esta era uma gente tão pobre, tão bronca e tão coitada que sua pele era curta, essa gente não podia sequer sorrir, porque se sorrisse , faltar-lhe-ia pele para cobrir o ânus, e o resultado seria terrível, pois o que sairia dali não cheirava nada bem. Este era o nível dos xingamentos entre os adversários políticos da época.

            Assim era a política no Território. E desse jeito  continuou até a vitória gloriosa e posterior cassação do mandato do Dr. Renato Medeiros e da prisão de muitos  peles-curtas.  Veio o golpe militar de 1964 e calaram-se todos, cutubas e peles-curtas, ou, mais do que isso, foram todos de certa maneira simplesmente silenciados.  

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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