Sábado, 10 de dezembro de 2011 - 10h17
Estava eu digitando algumas mal traçadas linhas, quando minha alma ouviu um chamado curioso. Pelo sotaque peculiar, achei que a voz vinha das Minas Gerais, mas depois, ao ouvi-la com mais atenção, percebi que vinha mesmo era de Goiás.
Quanta honra... Era a querida escritora Cora Coralina, com certeza, pois sua figura é inconfundível: cabecinha branca, de cabelos presos com pentes antigos, vestido simples feito em casa, na sua máquina de costura, e sorriso franco.
O que poderia ter para dizer-me essa notável escritora, logo a mim, apenas uma professorinha, uma cabocla da região amazônica?
Com tantas cabeças ilustres, com tantas penas de ouro, com tantos nomes célebres, justo eu? Justo eu que, afinal, nem tenho no currículo grandes causas, não nasci em pobreza extrema, não fui presa nem torturada pela ditadura militar, não fui garota de programa na juventude, nunca usei drogas, sequer pertenço às minorias discriminadas mais significativas... Ou seja, minha vida não daria um livro ou um filme.
Se eu fizesse parte de algum desses grupos, certamente se explicaria o interesse de alma tão sábia por minha pessoa: talvez ela me ditasse um discurso enobrecendo os marginalizados da sociedade, ou recitasse um belíssimo poema composto na hora para as mulheres analfabetas do mundo, coisas do gênero...
Atendi ao chamado, e o encontro aconteceu em frente a sua casa, para onde minha alma, curiosíssima, deslocou-se. A viagem não foi tão rápida, pois é certo que carrego em mim o peso do mundo, portanto, tenho a alma lenta como uma tartaruga, mas cheguei lá. De longe, avistei seu vulto na janela, a janela da Velha Casa da Ponte.
Assim que me viu, Cora veio ao meu encontro. E ali, no meio da ponte sobre o Rio Vermelho, deu-me um abraço caloroso, ao qual eu correspondi, emocionada.
Ela então me falou que de vez em quando costuma chamar para uma conversa almas de mulheres brasileiras que pensam nela e em seus escritos. De acordo com a intensidade do pensamento, ela o ouve, lá de onde está. E faz questão de que as convidadas não sejam pessoas ilustres, gosta de receber mulheres simples, assim como ela própria se considera. Modesta como sempre, disse que acha até engraçado o fato de causar tanta admiração nas pessoas. Ao que eu retruquei:
- Você é unanimidade, Cora, não seja tão modesta assim, ora. Afinal, seus versos e suas histórias são únicos, levam os leitores às lágrimas!...
Ela sorriu com aquele sorriso maravilhosamente sincero e doce e apontou para a casa - a velha casa da ponte tão decantada em seus versos. -Você não quer entrar? – Convidou-me. –Que tal uma xícara de chá com biscoitinhos de nata?
Achei o convite encantador e, quando me dei conta, estava eu na sala da velha casa da ponte tomando chá de hortelã com Cora Coralina. Conversamos sobre temas verdadeiramente importantes da vida, tais como: o pôr do sol que ela gosta de apreciar todos os dias, a beleza do amanhecer, o delicioso barulhinho da água corrente sob a ponte, o canto dos pássaros brasileiros, as peculiaridades dos sotaques regionais, coisas assim.
A essa altura da conversa, ela quis saber sobre os pássaros da Amazônia. Então falei do amor que sinto por eles, de como seu canto me enleva o espírito, e da dor que me causam as queimadas. Pedi desculpas e expliquei que não sou conhecedora da grande diversidade de espécies, o que, aliás, é uma vergonha - assenti. Porém, conduzi o assunto à hidrelétrica de Santo Antônio, no rio Madeira, e às transformações ambientais de tão esplendoroso ecossistema. Ela demonstrou sua tristeza, dizendo que compreendia nossa angústia diante desse fato. Percebi-lhe uma lágrima no canto do olho.
A conversa estava chegando ao fim, Cora tinha muitos compromissos, outras convidadas a receber. Então me levantei, abracei-a e aproveitei para pedir-lhe que esquecesse o quanto fora rejeitada na infância. Disse-lhe que pensasse na história do patinho feio, que sofrera a mesma discriminação e, para espanto de todos, tornara-se um cisne. Talvez sem o sofrimento por que passara como a menina desengonçada que havia sido - dizia-lhe eu, hoje a humanidade não teria sua obra maravilhosa - conclui, após esta simplória e ingênua argumentação.
Ela agradeceu com um sorriso terno e sincero. Já na porta, pedi para ver, por um instante que fosse, o prato azul-pombinho que fora de sua bisavó. -Era importante para mim - acrescentei.
- Certamente! - respondeu ela. Então deu alguns passos até a velha cristaleira, abriu-a e retirou lá de dentro a relíquia. Com as duas mãos pude segurar por alguns segundos objeto de tão rica memória. Em seguida, depositei cuidadosamente a louça sobre a mesa gasta e dei dois beijinhos em Cora.
– Adeus! - disse-lhe, comovida. E voltei, com a alma renovada, para minha escrivaninha.
Assim que cheguei, tratei de escrever-lhe um bilhete, grata que estava pela oportunidade que me dera de receber-me em sua casa:
Minha Querida Cora Coralina,
Sua poesia tem cheiro de roupa branca, lavada com sabão em pedra, engomada, e passada a ferro de carvão; tem cheiro de café fumegando no coador de pano e no bule antigo. Seus versos têm o gosto da hóstia de minha infância recebida nas missas de domingo, cinco horas da manhã, em meio a velas queimando e a santos de olhar perdido. Obrigada pelo inesquecível encontro.
Sandra Maria
P.S.: Se puder, mande-me a receita dos biscoitinhos de nata, são deliciosos.
Fonte: Fonte: Sandra Castiel - sandracastiell@gmail.com
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