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Gente de Opinião

Sandra Castiel

Ensaios literários sobre poetas de Rondônia (III)


Sandra Castiel - Gente de Opinião
Sandra Castiel

A explosão demográfica em Rondônia nos anos de 1980 impactou e evidentemente provocou mudanças significativas no olhar da população local que acompanhou o crescimento do extinto território; quando isto ocorreu, houve um sentimento comum: era como se estivéssemos desterritorizados em nossa própria terra, distanciados que ficamos de nossa cultura, de nossas tradições, de nossas próprias raízes e, cada vez mais, de nosso jeito de falar, de nosso próprio sotaque, o sotaque de quem nasceu e cresceu às margens dos caudalosos rios amazônicos; esse estado de coisas reverberou no fazer literário de alguns poetas da região, fato absolutamente compreensível, vez que a literatura reflete o momento histórico e as transformações das sociedades. 

No cenário da atualidade vivemos em um mundo marcado pela celeridade: as mudanças e transformações ocorrem tão rapidamente que, hoje, neste panorama “futurista”, temos uma nova sociedade, um novo homem, uma nova mulher e uma nova criança; são transformações que envolvem, entre outras coisas, tradições regionais, relações interpessoais, a língua falada e, sobretudo, a língua escrita;

O foco deste preâmbulo é apresentar dois poetas de Rondônia, através de alguns de seus poemas, parte de suas obras, haja vista que este é um ensaio literário, portanto desprovido de cunho acadêmico; trata-se de uma breve análise que envolve a interpretação do texto, o estilo do autor, as formas dos poemas, os esquemas de rimas (se houver), métrica, ritmo, temática, vocabulário etc.  

 Em referência aos parágrafos iniciais desta Introdução, reportamo-nos ao poeta Carlos Drummond de Andrade; este traduziu, magistralmente, a memória das coisas findas, memórias que serão eternas.  

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Memória

                 Carlos Drummond de Andrade

Amar o perdido/deixa confundido/este coração./Nada pode o olvido/contra o sem sentido/apelo do Não./As coisas tangíveis/tornam-se insensíveis/à palma da mão/Mas as coisas findas/muito mais que lindas,/essas ficarão.

 

ANTÔNIO CÂNDIDO DA SILVA

Os poemas de Antônio Cândido, célebre poeta de Rondônia,  apresentam diversidade de temas, destacando-se o amor  à Maria, sua musa, sua esposa e a mulher de sua vida; à religiosidade; à natureza amazônica, cenário onde cresceu e vive até os dias de hoje; à infância longínqua, às tradições regionais que se perderam e continuam plenas em suas lembranças.

 A marca do fazer literário de Antônio Cândido é a singeleza, a pureza de sentimentos e a beleza contida na simplicidade, características que transluzem de seus versos e enlevam o leitor; contudo, alguns poemas trazem crítica social. 

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Imagem de Nareeta Martins-Unsplash - Gente de Opinião
Imagem de Nareeta Martins-Unsplash

PORTO VELHO

                                           Antônio Cândido da Silva

Um dia eu fui chegando de mansinho/e em um velho tronco de aroeira/amarrei minha canoa de itaúba/em um ponto qualquer do teu barranco./

A canoa uma quase montaria/era pequena e muito mal cabiam/meus sonhos de criança retirante/pois nem saudades, dentro do meu peito,/meu pequenino coração trazia./

E setenta e três anos se passaram.../

Teus sonhos de menina, a duras penas,/só alguns hoje estão realizados/porque nasceste com a triste sina,/a triste sorte dos colonizados,/de viver sob o jugo do opressor./Aos que te ofendem abres tua porta/e as ofensas muito pouco importam./É esse gesto que cativa a gente/e me faz ter por ti tamanho amor.../

 

O poeta Antônio Cândido exercita livremente e com maestria os recursos que o fazer poético possibilita. Em dezenove versos, agrupados em três estrofes, canta sua chegada ao cenário ribeirinho de Porto Velho: o barranco, a pequena canoa de itaúba onde não cabiam seus tímidos sonhos de criança retirante, o tronco de aroeira, enfim, versos que remontam ao início de sua jornada e de sua relação de amor com este então pedaço longínquo da Amazônia.

Entre as duas estrofes de nove versos, a presença de uma estrofe constituída de verso único não é aleatória; ela está ali, entre as outras duas, destacada, como recurso poético para marcar a passagem do tempo: setenta e três anos. Um primor!

A partir desse ponto, o poeta humaniza a cidade; esta era uma menina que não realizou seus acalentados sonhos, porque foi explorada pelo jugo do opressor, sina dos colonizados; apesar das  ofensas e do abandono, Porto Velho continua de portas abertas a todos que a procuram; esta é a razão maior do amor do sujeito lírico pela cidade. Nesta estrofe, a crítica social do poeta: a triste sina da cidade perdura, ou seja, a cidade continua sob o jugo dos opressores. A crítica social é uma característica da última fase do Romantismo na literatura brasileira. Também cabe ressaltar a importância dos elementos regionais presentes nos versos: o barranco, a canoa de itaúba, o tronco da aroeira. Além disso, este poema de Antônio Cândido apresenta características da poesia modernista, haja vista a liberdade estética exercitada pelo poeta no esquema de estrofes: entre duas nonas (estrofes de nove versos), há um monóstico, ou seja, estrofe de apenas um verso.

Quanto à métrica, os versos do poema Porto Velho são decassílabos. Este poema não apresenta esquema de rimas definido, portanto é um poema constituído de versos brancos, outra característica da poesia modernista.


    

SÓ PARA LEMBRAR

                     Antônio Cândido da Silva

Quando março retorna a nossa vida/vem-me à lembrança o dia vinte e dois./Você chegando, linda e comovida/para o primeiro encontro de nós dois./

Manhã que ainda hoje revivida/me faz lembrar o que seguiu depois./Uma história de amor foi assumida/e jurando ser eterna se dispôs/

Depois foi seguir juntos, caminhar,/trocando as ilusões e desenganos/por tudo o que juntos conquistamos./

Estou aqui, só para te lembrar,/que hoje faz cinquenta e oito anos/

da vez primeira em que nos encontramos./

 

O poema SÓ PARA LEMBRAR tem como temática a lembrança do primeiro encontro entre o sujeito lírico e sua musa, há cinquenta e oito anos; a partir de então, consolida-se uma história de amor eterno.

Os versos de SÓ PARA LEMBRAR contam a grandiosidade do amor que uniu o poeta e sua musa, um sentimento que se manteve, mesmo diante dos desenganos e tribulações da vida.

SÓ PARA LEMBRAR é um soneto, poema de forma fixa, que possui dois quartetos (duas estrofes de quatro versos) e dois tercetos (duas estrofes de três versos); todos os versos são decassílabos, ou seja, possuem dez sílabas métricas.

Conforme as características do soneto, o tema percorre as quatro estrofes, desde sua abertura (data do primeiro encontro) até a chave de ouro, que é o encerramento; no caso deste poema, a lembrança de cinquenta e oito anos transcorridos a partir desse encontro.

Nas duas quadras, encontramos rimas alternadas (ABAB); do ponto de vista morfológico, as rimas da primeira quadra, vida/comovida (substantivo e adjetivo) e dois/dois (substantivo e substantivo), são rimas ricas e pobres respectivamente; na segunda quadra, temos rimas ricas: revivida/assumida (adjetivo e particípio passado-verbo) e depois/dispôs (advérbio e verbo).

No primeiro terceto, encontramos rimas emparelhadas (BB) e ricas, desenganos/ conquistamos (substantivo e verbo). Do mesmo modo, no segundo terceto, encontramos rimas emparelhadas (BB) e ricas, anos/encontramos (substantivo e verbo). Há transposição de rimas em ABC, do primeiro ao segundo terceto, rimas interpoladas: caminhar/lembrar, desenganos/anos, conquistamos/encontramos.

 

 

   I S Q U E M I A

                  Antônio Cândido da Silva

Hoje é o dia dos namorados/e devo ter cautela ao te falar/  pois o meu velho coração/acostumado as nossas emoções/ameaçou parar./Devo, portanto, a partir de hoje,/medir minhas palavras,/tomar o meu remédio/e esquecer o verbo emocionar./Hoje é o dia dos namorados.../Eu quero te dar uma rosa,/um sonho de valsa/e palavras para reavivar/do nosso amor a eterna fantasia./Mas, eu não devo me emocionar.../E não sei como fazer,/pois só pelos caminhos da emoção,/eu posso te dizer do amor que sinto/ pelos meandros do meu coração./Eu este ano vou ficar calado/pois o Doutor falou, minha Maria,/que existe um problema de isquemia/neste meu coração de trovador/que de tanto te amar/se obstruiu de amor...

O tema do poema ISQUEMIA traz uma espécie de “confidência” do sujeito lírico: como conter tanta emoção, sufocada, sobretudo no dia dos namorados, o dia do oferecimento da rosa, do sonho de valsa e da expressão maior do amor à sua amada?  “... o Doutor falou, minha Maria/, que existe um problema de isquemia/neste meu coração de trovador/ que de tanto te amar/ se obstruiu de amor.../” Leitura deliciosa! Belíssimos versos!

ISQUEMIA é um poema que nos reporta à poesia romântica, sobretudo pela musicalidade conferida pelos versos livres; os versos livres não possuem um padrão de métrica definido; este recurso poético enriquece sobremaneira o poema.

ISQUEMIA apresenta versos soltos, ou brancos, como também são conhecidos os versos que não trazem esquemas de rima. Bastante utilizados desde o século XVIII no Brasil, os versos soltos são bastante comuns em poesias românticas, se fazendo bastante presentes, entretanto, também na literatura moderna e na literatura contemporânea.”(Natália Petrin)

Neste outro poema, intitulado Sem Compromisso, o poeta exalta a liberdade de poetizar livremente, sem compromisso com escolas literárias; tal exaltação à liberdade é legítima. Apreciei sobremaneira este poema.  



SEM COMPROMISSO

                          Antônio Cândido da Silva

Não quero ter compromisso/com escola literária/com antigo ou com moderno./Quero ser fiel devoto/do compromisso com a arte no meu jeito de cantar.

A Literatura, como todas as artes, reflete os momentos  históricos; são contextos que mudam de acordo com as transformações políticas e sociais. Normalmente, a expressão do artista reverbera essas mudanças e elas transparecem em seu olhar sensível. Comumente o artista nem se dá conta de características de determinadas escolas em sua arte, mesmo que haja predominância (na estética e na temática) de um ou outro movimento, até porque, na poesia, assim como na vida, não há elementos estanques; carregamos n’alma um acervo infinito de memórias e essas estão sempre conectadas umas às outras; na obra literária há vozes de parnasianos, românticos, simbolistas, modernistas, contemporâneos, enfim, um misto de sentimentos, sentimentos estes que traduzem a essência humana; o importante é o resultado da obra: a poesia contida no poema.

Antônio Cândido da Silva é um poeta que compõe sonetos, poemas de forma fixa, usados pelos chamados poetas parnasianos, além de poemas com características da poesia romântica, modernista e modernista-contemporânea; portanto sua obra é bastante diversificada. Exercita nos sonetos os recursos poéticos inerentes à métrica poética, sobretudo a elisão e o hiato. Confere a cada verso cadência e musicalidade, instrumentos rítmicos que encantam o leitor.

      

     

VELHICE

       Antônio Cândido da Silva

 

Eu nunca tive medo da velhice/através dos caminhos percorridos/assim pensava em minha meninice/e nos sonhos de jovens destemidos./

Eu nunca importei com quem me disse/que após os momentos decorridos,/chegando o dia que o viver predisse/vamos viver de sonhos já vividos./

Eu sempre tive a naturalidade/ para por alegria em cada idade/e ver que em tudo um lado bom existe./

 

Pra pensar na velhice sempre é cedo./Mas o que eu tenho realmente medo/é de um dia ficar velho... e triste./

 

Destaco o poema VELHICE pela complexidade do tema e pela originalidade com que o poeta discorre sobre os efeitos da passagem do tempo: a sabedoria de atribuir a cada idade a alegria que é intrínseca à vida.

O poema VELHICE é um soneto, portanto um poema constituído de dois quartetos e dois tercetos. Quanto à métrica, todos os versos apresentam dez sílabas poéticas.  

Nas duas quadras observamos rimas alternadas (ABAB ABAB); do ponto de vista morfológico, as rimas da primeira quadra, velhice/meninice (substantivo e substantivo), percorridos/destemidos (adjetivo e adjetivo), são rimas pobres; na segunda quadra, disse/predisse (verbo e verbo), decorridos/vividos (adjetivo e  adjetivo), também são rimas pobres.

No primeiro terceto, encontramos rimas emparelhadas (AA); do ponto de vista morfológico, são rimas pobres, naturalidade/idade (substantivo e substantivo).

No segundo terceto, encontramos rimas emparelhadas (AA) e ricas, cedo/medo (advérbio e substantivo).

Encontramos transposição de rima em C do primeiro para o segundo terceto; rimas ricas, existe/triste (verbo e adjetivo).

Característica do soneto clássico, o poeta apresenta o tema, discorre sobre ele em todas as estrofes, e a chave de ouro (conclusão) resume lindamente a temática. Este recurso, próprio do soneto, está demonstrado no primeiro e nos dois últimos versos deste belíssimo poema.

“Eu nunca tive medo da velhice.../...Mas o que eu tenho realmente medo/

é de um dia ficar velho... e triste.”/

Ensaios literários  sobre poetas de Rondônia (III) - Gente de Opinião
Ensaios literários  sobre poetas de Rondônia (III) - Gente de Opinião

Antônio Cândido da Silva nasceu em 05.11.1941, na cidade de Humaitá, interior do estado do Amazonas. Poeta, romancista, historiador, compositor, Antônio Cândido é um escritor de renome no meio acadêmico. Licenciado em Letras, pela Universidade Federal de Rondônia e Mestre em História e Estudos Culturais pela mesma universidade, a obra de Antônio Cândido é bastante diversificada: além de poemas e romances, é autor da bandeira do município de Porto Velho, bem como autor do brasão do referido município. Compôs os hinos dos municípios de Costa Marques, Cerejeiras e Jaru, todos no estado de Rondônia; também é sua a autoria da bandeira do município de Costa Marques.

Membro efetivo da Academia de Letras de Rondônia (ACLER) e da União Brasileira de Escritores (UBE), Antônio Cândido possui uma obra considerável: além de vários livros de poesia e romances publicados, guarda um acervo de seis  livros inéditos. O escritor vive em Porto Velho, desde tenra idade.   

Ensaios literários  sobre poetas de Rondônia (III) - Gente de Opinião
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SAMUEL CASTIEL

 

O fazer poético de Samuel Castiel traz a marca de um olhar atento às dores da alma e às reações humanas face ao mundo moderno. Seus versos, livres, são próprios da liberdade modernista. Nos poemas de Samuel, as sensações, emoções, enfim, toda a interioridade do sujeito lírico. Os temas dos poemas de Samuel nascem das paixões, do amor à natureza e das inquietações  do ser humano. Os versos soltos de Samuel traduzem a musicalidade presente em sua vida; revelam a subjetividade como um Raios-X da alma, sua percepção  de médico sobre a existência, através do lírico. 

Ensaios literários  sobre poetas de Rondônia (III) - Gente de Opinião
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CORVOS NEGROS DE SOMOE 

                                                            Samuel Castiel                                                                                                                                  

Corvos negros da Ilha de Somoe/Nessa algazarra festiva que fazeis/Voando sobre os verdes  coqueirais /Com  grunhidos roucos,  estridentes/ Que mais parecem gritar para o homem surdo e intolerante os seus males,/Mostrando-lhe como a vida é bela e simples...

Corvos Negros da Ilha de Somoe/Por que não mandais um representante/ dentre os teus/Como mandastes para Allan Poe/Que repita aos ouvidos desse ateu/Insistentemente/Que o bem maior da vida é a Paz?/Que se não despertar o planeta vai/Morrer desértico na guerra e no fogo sem ter ninguém/Nuca mais/Que chore os seus tristes ais!?.../


Corvos negros da Ilha de Somoe /Por que vós, que sois ave negra e  azarenta/ Marcada por todo preconceito,/Por que  não vindes  logo dizer /
Que o sapiens homo perdeu o senso/No rastro  da soberba e do poder?.../

Corvos negros da Ilha de Somoe/Que representais  o belo, o simples, a natureza /Nesse vosso habitat selvagem e verde/Com o mar azul à  frente, o vento e o farfalhar /Das palmeiras e dos  coqueirais.../Vinde e repeti ao homem quão bela é a vida/Sem guerra, na quietude singela da paz!.../


Corvos negros da Ilha de Somoe/ Dizei-me quando será a terra outra vez/O planeta azul do universo/Explodindo em vida  e  em cores/ Sem o fantasma perverso/Da destruição, da insensatez/-- Ah! Nunca, nunca mais!.../

(Escrito na Ilha de Somoe, em Punta Cana. República)

 

 

 

O belíssimo poema Corvos Negros de Somoe traz versos carregados de angústia, verdadeira explosão de sentimentos que transparece através da  subjetividade do eu lírico. Quanta beleza! Quanto encantamento diante da natureza virgem, natural...  Corvos negros alçando voo sobre o mar azul da ilha de Somoe, santuário natural preservado da destruição causada pela ganância do homem...

 

O poema é constituído de cinco  estrofes que apresentam diferenças entre  si, quanto ao número de versos: duas sextilhas (primeira e terceira estofes), uma décima (segunda estrofe) e duas septilhas (as duas últimas estrofes).

 

Os versos não apresentam um padrão com relação à métrica, portanto são os chamados versos livres, assim denominados porque não possuem o mesmo número de sílabas métricas; na teoria da literatura são definidos como heterométricos. Cabe ressaltar que os poemas constituídos de versos livres ressaltam a musicalidade, característica primordial das poesias.

 

O poema Corvos Negros de Somoe não apresenta esquema de rimas, característica bastante frequente na literatura moderna e na literatura contemporânea; são os chamados versos soltos ou versos brancos.

 

 Observamos a presença de anáfora, figura de linguagem, na repetição do verso “Corvos negros da ilha de Somoe”, no primeiro verso de todas as estrofes. Esta invocação repetida enfatiza e confere emoção ao clamor do sujeito lírico.

 

Refletindo sobre a temática de Corvos Negros de Somoe e sobre a estrutura mesma do referido poema, consideramos que este apresenta características da literatura contemporânea brasileira; isto se dá, não apenas pela forma, mas, sobretudo, pelo tema, tema este que reflete a preocupação e a angústia do homem contemporâneo face às agressões ao meio-ambiente. Corvos Negros de Somoe é uma pérola da literatura de Rondônia.


 

 

 

ESFINGE E FÊNIX

 

Samuel Castiel

 

Boca escancarada, língua de fogo/Que tudo devoras com insaciável fome!/ Engoliste faminta o meu sonho todo/Minha quimera que arde e o abutre come!.../

 

Boca escancarada, cheia de dentes/És a esfinge, o teu olhar penetrante/

 

Tudo transforma em pedras ardentes/ Fizeste-me estátua num Sol brilhante !/

 

Boca escancarada de fome voraz/Lançaste-me   ao solo na areia quente,/ Trituraste  meus sonhos, todos meus ais/Tornando-me assim infeliz Duende!...

 

Boca escancarada de sopro abrasador/Te enganaste pensando que foi o meu fim,/Pois sou eu a Fênix que das cinzas do amor/Renasce forte aos turbilhões em mim!  .../

 

Destaco este poema Esfinge e Fênix, não apenas pela beleza do significado e da construção poética, mas também porque algumas de suas características reportam-me à poesia simbolista.

O movimento simbolista literário surge na França, no século XIX, com a publicação de As Flores do Mal, obra do renomado escritor francês Charles Baudelaire (1821-1867), numa espécie de reação ao realismo e ao naturalismo na literatura.

A poesia simbolista se caracteriza pelas temáticas misteriosas, sombrias, além de religiosas e sensuais. No caso em pauta, o título do poema traz a esfinge e a fênix, dois substantivos que, semanticamente, reportam a mistérios; enquanto a Esfinge representa o indecifrável, o que não se pode desvendar, portanto, o definitivo, o fim de quaisquer possibilidades, a Fênix representa o renascimento, a vida que ressurge das cinzas, ressurge da morte.

Observamos aqui um mergulho à imaginação e à criatividade, elementos presentes na poesia simbolista, bem como, de certa forma, alusão ao místico e ao transcendental, imagens sombrias...  “Presença comum de antíteses e oposições, graças às tentativas de encarnar o que é divino e espiritualizar o que é terreno: o poema é a forma de conciliação entre os planos material e espiritual” (Sobre a poesia simbolista, Literatura/Brasil/Escola).

Outra característica simbolista no poema Esfinge e Fênix é o uso da sinestesia, figura de linguagem que mistura elementos relativos aos sentidos do corpo humano. Na segunda estrofe, “olhar penetrante” (visão e tato); “pedras ardentes” (visão e tato); na terceira estrofe, “areia quente” (visão e tato/paladar), além de outros elementos sinestésicos, como “sopro abrasador”, “língua de fogo” etc. Além da presença da sinestesia, encontramos outra característica da poesia simbolista, como o uso das chamadas letras maiúsculas alegorizantes, para enfatizar o poder simbólico das palavras: na segunda estrofe, Sol; na terceira, Duende, ambos os elementos impalpáveis.

O poema Esfinge e Fênix apresenta quatro quartetos, estrofes de quatro versos. Com relação à métrica, os versos são os chamados versos livres, não seguem um padrão de métrica definido; na teoria da literatura são denominados versos heterométricos; esta característica imprime musicalidade aos versos e ao poema como um todo.   

Com relação às rimas, encontramos aqui o seguinte esquema de rimas: rimas cruzadas e ricas, na primeira estrofe:  ABAB  fogo/todo (substantivo e pronome) , fome/come (substantivo e verbo). Na segunda estrofe, também rimas cruzadas e ricas, ABAB, dentes/ardentes (substantivo e adjetivo) e pobres, penetrante/ brilhante (adjetivo e adjetivo). Na terceira estrofe, há rimas cruzadas e ricas, ABAB, voraz/ais (adjetivo e substantivo) e ricas, quente/Duende (adjetivo e substantivo); na quarta estrofe, o mesmo esquema de ricas cruzadas ABAB e ricas, abrasador/amor (adjetivo e substantivo) e fim/mim (substantivo e pronome). Observamos a presença de anáfora, ou seja, a repetição das palavras “Boca escancarada” no primeiro verso de todas as estrofes.

Apesar de não apresentar uma estética integralmente simbolista, o poema Esfinge e Fênix traz algumas características desse movimento que se fez forte na literatura brasileira através dos poemas de Cruz e Souza, Alphonsus de Guimaraens e Augusto dos Anjos, estes os mais conhecidos.

 

                            

                  PRA FALAR COM DEUS

Samuel Castiel

Inerte, nu e sem nenhuma emoção/ Quero  ficar assim mudo, estático/ feito cadáver estirado sobre a pedra fria./Sem pensamento algum a  transgredir a minha mente/Deixando apenas o ar úmido e morno /Insuflar os meus pulmões suavemente .../

Não quero ninguém por perto desse morto/
Nenhum residente ou legista ateu/Não quero o incômodo das orações /Nem mesmo a luz tosca das velas.../Assim talvez possa eu longe das minhas  quimeras/Não ter sonho algum,  violação ou pesadelo/ 
Assim talvez  possa eu falar comigo mesmo,/
Talvez assim  possa eu  falar com Deus!.../

 

Destaco o poema PRA FALAR COM DEUS, pela originalidade temática, pela beleza poética e por uma característica curiosa, característica esta que me reportou ao tom pessimista, depressivo e macabro da Segunda Geração do Romantismo brasileiro; o egocentrismo, a exacerbação sentimental, o sofrimento do sujeito lírico e o desejo de fugir da realidade são algumas marcas dos poemas da fase ultrarromântica. A expressão do eu lírico sugere desilusões, sonhos perdidos (amores?), ausência de perspectivas, enfim, diria eu que este poema contemporâneo demonstra que a essência humana vive em cada ser independentemente do seu tempo e da forma como se expressa.          

O poema PRA FALAR COM DEUS apresenta duas estrofes: a primeira é uma estrofe com seis versos (sextilha); a segunda é uma estrofe com oito versos (oitava). Este poema não apresenta esquema de rimas, portanto, temos aqui versos brancos ou soltos; o mesmo com relação à métrica, os versos são livres, ou seja, heterométricos, não apresentam o mesmo número de sílabas métricas.   

 

AOS MONGES

                                                                                          Samuel Castiel

Clausura escura e sufocante/Cânticos sagrados gregorianos/A um só tempo o paraíso santo/ Ou os grilhões ferrenhos  dos porões/

Penitências, castigos e Orações/Misturam-se nas cândidas  mãos/ 
Quando a noite desce com seu negro manto/ A espreitar incautos infiéis em arrependido pranto/Na leitura de um Breviário Santo...

Em uníssono os monges cantam/ Num coro de celestial beleza/ Gregorianos cânticos que tocam a alma /Enchem o espírito de maior pureza!.../Mesmo antes do raiar do dia /De longe se ouve a Santa cantoria/

Embora distantes deste mundo louco/Dão os monges exemplo do mais puro amor:/é possível viver na alegria santa/ Em clausura, sim,  mas com a mente sana,/Enlevadas a Deus, nosso Pai Criador.../

Observamos que a austeridade presente na temática de Aos Monges pode ser encontrada em vários outros poemas da lavra de Samuel. O poeta utiliza palavras fortes e contundentes para descrever o universo ao qual se refere; no caso do poema Aos Monges, o claustro: mosteiro fechado, sufocante, grilhões, porões, enfim, imagens que nos reportam às clausuras da Idade Média. Porém, ao mesmo tempo em que essa ambientação sufoca, o interior dos seres que ali vivem é santificado pelo cântico gregoriano, algo que liberta, eleva e enleva a alma, ideias que reportam a paradoxos e antíteses; do mesmo modo, “Penitências... castigos... orações... arrependimento... paraíso santo... pureza... celestial beleza...”

 

O poema Aos Monges apresenta quatro estrofes: uma quadra, dois quintetos (segunda  e última estrofes) e um sexteto. Com relação à métrica, não há um padrão, os versos são heterométricos, os chamados versos  livres.

Observamos aliteração (em u) no primeiro verso da primeira estrofe; esta figura de linguagem enfatiza sobremaneira a imagem descrita pelo sujeito lírico.

Alguns poemas apresentam rimas misturadas, ou seja, são as chamadas rimas mistas; isto ocorre quando o poema apresenta diversas combinações, não há um esquema fixo de rimas, é o caso de Aos Monges. Esta característica é encontrada principalmente na poesia modernista. Neste poema, temos, na segunda estrofe, rimas emparelhadas manto/santo/pranto (na verdade as emparelhadas ou paralelas são constituídas de dois versos); na terceira estrofe, temos rimas cruzadas no segundo e quarto versos, beleza/pureza e rimas emparelhadas no quinto e sexto versos: dia/cantoria; na última estrofe há rimas interpoladas, segundo e quinto versos, amor/criador. Enfim, não há um padrão definido.

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DEUS ATEU

                                                                       Samuel Castiel

Vão-se longe os sonhos meus/Da infância pueril/Restou-me só tu, oh! deus ateu.../Com esse escárnio vil/A queimar o meu jardim/Numa escalada louca que vai/Arrastando tudo de mim/Minha fé, minha luz, meu amor/No triste lamento que sai/Num pranto que se chama dor! .../

 

Considero Deus Ateu um poema de temática bastante original e interpretação complexa: o sujeito lírico, cuja infância era plena de sonhos, possivelmente, nutrindo a fé em um Deus presente, é tomado pela decepção e pelo desencanto face à solidão, ao vazio, ao sentimento de desamparo em que se encontra. Teria Deus desacreditado do eu lírico que expõe sua dor? Em um fenômeno inverso, teria Deus caído na descrença com relação a esse sujeito lírico, levando-o a perder os sonhos e a própria esperança na vida?

O poema Deus Ateu apresenta características modernistas, tanto na temática (ousada), quanto na estética. Poema de estrofe única, apresenta versos livres e soltos, ou seja, sem padrão definido de métrica e rimas respectivamente. 

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DADOS BIOGRÁFICOS

Samuel Castiel nasceu em 11 de maio de 1947 na pequena cidade de Gurupá, no estado do Pará.  Veio com pais e irmãos para Porto Velho aos 4 anos de idade. Médico formado pela UFPA  é especialista em Radiologia e Diagnóstico por Imagem ( PUC-RJ).  Poeta, contista e cronista, com várias obras publicadas, é Membro Efetivo da Academia de Letras de Rondônia- ACLER, e da Academia Brasileira de Médicos Escritores- ABRAMES. Além da Medicina e das Letras, Samuel tem outra paixão: a Música. Ao longo de sua vida, tornou-se um músico conhecido e requisitado; costuma prestigiar eventos culturais, com seu inseparável  Saxofone. Samuel é uma personalidade ilustre em Rondônia, tanto pelos serviços prestados na área médica, quanto pelo talento musical e poético. Samuel Castiel vive em Porto Velho.

Sobre a autora: Sandra Castiel é professora de Literatura Brasileira e Língua Portuguesa, formada na Universidade Santa Úrsula, na cidade do Rio de Janeiro. Pós Graduada em Língua Portuguesa (SOMLEI, RJ) e em Didática do Ensino Superior, pela Faculdade da Cidade, Rio de Janeiro; Mestre em Educação e Cultura Contemporânea, pela Universidade Estácio de Sá, também no Rio de Janeiro. Membro Efetivo da Academia de Letras Sde Rondônia. Escritora de contos, crônicas e peças teatrais para crianças deficientes visuais, possui vários livros publicados. 

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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