Segunda-feira, 28 de dezembro de 2020 - 08h01
A explosão demográfica em Rondônia nos anos de 1980 impactou e
evidentemente provocou mudanças significativas no olhar da população local que
acompanhou o crescimento do extinto território; quando isto ocorreu, houve um
sentimento comum: era como se estivéssemos desterritorizados em nossa própria terra,
distanciados que ficamos de nossa cultura, de nossas tradições, de nossas
próprias raízes e, cada vez mais, de nosso jeito de falar, de nosso próprio
sotaque, o sotaque de quem nasceu e cresceu às margens dos caudalosos rios
amazônicos; esse estado de coisas reverberou no fazer literário de alguns poetas
da região, fato absolutamente compreensível, vez que a literatura reflete o
momento histórico e as transformações das sociedades.
No cenário da atualidade vivemos em um mundo marcado pela celeridade: as
mudanças e transformações ocorrem tão rapidamente que, hoje, neste panorama
“futurista”, temos uma nova sociedade, um novo homem, uma nova mulher e uma
nova criança; são transformações que envolvem, entre outras coisas, tradições
regionais, relações interpessoais, a língua falada e, sobretudo, a língua
escrita;
O foco deste preâmbulo é apresentar dois poetas de Rondônia, através de alguns
de seus poemas, parte de suas obras, haja vista que este é um ensaio literário,
portanto desprovido de cunho acadêmico; trata-se de uma breve análise que
envolve a interpretação do texto, o estilo do autor, as formas dos poemas, os esquemas
de rimas (se houver), métrica, ritmo, temática, vocabulário etc.
Em referência aos parágrafos
iniciais desta Introdução, reportamo-nos ao poeta Carlos Drummond de Andrade;
este traduziu, magistralmente, a memória das coisas findas, memórias que serão
eternas.
Memória
Carlos Drummond de Andrade
Amar
o perdido/deixa confundido/este coração./Nada pode o olvido/contra o sem
sentido/apelo do Não./As coisas tangíveis/tornam-se insensíveis/à palma da mão/Mas
as coisas findas/muito mais que lindas,/essas ficarão.
ANTÔNIO
CÂNDIDO DA SILVA
Os poemas de Antônio Cândido, célebre poeta de
Rondônia, apresentam diversidade de temas,
destacando-se o amor à Maria, sua musa,
sua esposa e a mulher de sua vida; à religiosidade; à natureza amazônica,
cenário onde cresceu e vive até os dias de hoje; à infância longínqua, às
tradições regionais que se perderam e continuam plenas em suas lembranças.
A marca do fazer
literário de Antônio Cândido é a singeleza, a pureza de sentimentos e a beleza
contida na simplicidade, características que transluzem de seus versos e
enlevam o leitor; contudo, alguns poemas trazem crítica social.
PORTO VELHO
Antônio Cândido da
Silva
Um dia eu fui chegando de mansinho/e em um velho
tronco de aroeira/amarrei minha canoa de itaúba/em um ponto qualquer do teu
barranco./
A canoa uma quase montaria/era pequena e muito mal cabiam/meus
sonhos de criança retirante/pois nem saudades, dentro do meu peito,/meu
pequenino coração trazia./
E setenta e três anos se
passaram.../
Teus sonhos de menina, a duras penas,/só alguns
hoje estão realizados/porque nasceste com a triste sina,/a triste sorte dos
colonizados,/de viver sob o jugo do opressor./Aos que te ofendem abres tua
porta/e as ofensas muito pouco importam./É esse gesto que cativa a gente/e me
faz ter por ti tamanho amor.../
O poeta Antônio Cândido
exercita livremente e com maestria os recursos que o fazer poético possibilita.
Em dezenove versos, agrupados em três estrofes, canta sua chegada ao cenário
ribeirinho de Porto Velho: o barranco, a pequena canoa de itaúba onde não
cabiam seus tímidos sonhos de criança retirante, o tronco de aroeira, enfim,
versos que remontam ao início de sua jornada e de sua relação de amor com este
então pedaço longínquo da Amazônia.
Entre as duas estrofes
de nove versos, a presença de uma estrofe constituída de verso único não é
aleatória; ela está ali, entre as outras duas, destacada, como recurso poético
para marcar a passagem do tempo: setenta e três anos. Um primor!
A partir desse ponto, o
poeta humaniza a cidade; esta era uma menina que não realizou seus acalentados
sonhos, porque foi explorada pelo jugo do opressor, sina dos colonizados; apesar
das ofensas e do abandono, Porto Velho
continua de portas abertas a todos que a procuram; esta é a razão maior do amor
do sujeito lírico pela cidade. Nesta estrofe, a crítica social do poeta: a
triste sina da cidade perdura, ou seja, a cidade continua sob o jugo dos
opressores. A crítica social é uma característica da última fase do Romantismo
na literatura brasileira. Também cabe ressaltar a importância dos elementos
regionais presentes nos versos: o barranco, a canoa de itaúba, o tronco da
aroeira. Além disso, este poema de Antônio Cândido apresenta características da
poesia modernista, haja vista a liberdade estética exercitada pelo poeta no
esquema de estrofes: entre duas nonas
(estrofes de nove versos), há um monóstico,
ou seja, estrofe de apenas um verso.
Quanto à métrica, os versos do poema Porto Velho são decassílabos. Este poema não apresenta esquema de rimas definido, portanto é um poema constituído de versos brancos, outra característica da poesia modernista.
SÓ PARA LEMBRAR
Antônio
Cândido da Silva
Quando março retorna a
nossa vida/vem-me à lembrança o dia vinte e dois./Você chegando, linda e
comovida/para o primeiro encontro de nós dois./
Manhã que ainda hoje
revivida/me faz lembrar o que seguiu depois./Uma história de amor foi assumida/e
jurando ser eterna se dispôs/
Depois foi seguir
juntos, caminhar,/trocando as ilusões e desenganos/por tudo o que juntos
conquistamos./
Estou aqui, só para te
lembrar,/que hoje faz cinquenta e oito anos/
da vez primeira em que
nos encontramos./
O poema SÓ PARA LEMBRAR tem como temática a
lembrança do primeiro encontro entre o sujeito lírico e sua musa, há cinquenta
e oito anos; a partir de então, consolida-se uma história de amor eterno.
Os versos de SÓ PARA LEMBRAR contam a grandiosidade
do amor que uniu o poeta e sua musa, um sentimento que se manteve, mesmo diante
dos desenganos e tribulações da vida.
SÓ PARA LEMBRAR é um soneto,
poema de forma fixa, que possui dois
quartetos (duas estrofes de quatro versos) e dois tercetos (duas estrofes de três versos); todos os versos são
decassílabos, ou seja, possuem dez sílabas métricas.
Conforme as características
do soneto, o tema percorre as quatro estrofes, desde sua abertura (data do primeiro encontro) até a chave de ouro, que é o encerramento; no caso deste poema, a
lembrança de cinquenta e oito anos transcorridos a partir desse encontro.
Nas duas quadras,
encontramos rimas alternadas (ABAB);
do ponto de vista morfológico, as rimas da primeira quadra, vida/comovida (substantivo e adjetivo) e
dois/dois (substantivo e substantivo), são rimas ricas e pobres respectivamente;
na segunda quadra, temos rimas ricas:
revivida/assumida (adjetivo e particípio passado-verbo) e depois/dispôs (advérbio e verbo).
No primeiro terceto,
encontramos rimas emparelhadas (BB) e ricas, desenganos/ conquistamos (substantivo e verbo). Do mesmo modo, no
segundo terceto, encontramos rimas emparelhadas
(BB) e ricas, anos/encontramos (substantivo e verbo). Há transposição de rimas em
ABC, do primeiro ao segundo terceto,
rimas interpoladas: caminhar/lembrar, desenganos/anos, conquistamos/encontramos.
I S Q U E M I A
Antônio Cândido da Silva
Hoje é o dia dos namorados/e devo ter cautela ao te
falar/ pois o meu velho coração/acostumado
as nossas emoções/ameaçou parar./Devo, portanto, a partir de hoje,/medir minhas
palavras,/tomar o meu remédio/e esquecer o verbo emocionar./Hoje é o dia dos
namorados.../Eu quero te dar uma rosa,/um sonho de valsa/e palavras para
reavivar/do nosso amor a eterna fantasia./Mas, eu não devo me emocionar.../E
não sei como fazer,/pois só pelos caminhos da emoção,/eu posso te dizer do amor
que sinto/ pelos meandros do meu coração./Eu este ano vou ficar calado/pois o
Doutor falou, minha Maria,/que existe um problema de isquemia/neste meu coração
de trovador/que de tanto te amar/se obstruiu de amor...
O tema do poema ISQUEMIA traz uma espécie de “confidência”
do sujeito lírico: como conter tanta emoção, sufocada, sobretudo no dia dos
namorados, o dia do oferecimento da rosa, do sonho de valsa e da expressão
maior do amor à sua amada? “... o Doutor
falou, minha Maria/, que existe um problema de isquemia/neste meu coração de
trovador/ que de tanto te amar/ se obstruiu de amor.../” Leitura deliciosa!
Belíssimos versos!
ISQUEMIA
é um poema que nos reporta à poesia romântica, sobretudo pela
musicalidade conferida pelos versos livres; os versos livres não possuem
um padrão de métrica definido; este recurso poético enriquece sobremaneira o
poema.
ISQUEMIA apresenta versos soltos, ou brancos, como
também são conhecidos os versos que não trazem esquemas de rima. “Bastante utilizados desde o
século XVIII no Brasil, os versos soltos são bastante comuns em poesias
românticas, se fazendo bastante presentes, entretanto, também na literatura
moderna e na literatura contemporânea.”(Natália Petrin)
Neste outro poema, intitulado Sem Compromisso, o poeta exalta a liberdade de poetizar livremente, sem compromisso com escolas literárias; tal exaltação à liberdade é legítima. Apreciei sobremaneira este poema.
SEM
COMPROMISSO
Antônio Cândido da Silva
Não quero ter compromisso/com escola literária/com
antigo ou com moderno./Quero ser fiel devoto/do compromisso com a arte no meu
jeito de cantar.
A Literatura, como todas as artes, reflete os momentos
históricos; são contextos que mudam de
acordo com as transformações políticas e sociais. Normalmente, a expressão do
artista reverbera essas mudanças e elas transparecem em seu olhar sensível.
Comumente o artista nem se dá conta de características de determinadas escolas
em sua arte, mesmo que haja predominância (na estética e na temática) de um ou
outro movimento, até porque, na poesia, assim como na vida, não há elementos
estanques; carregamos n’alma um acervo infinito de memórias e essas estão
sempre conectadas umas às outras; na obra literária há vozes de parnasianos, românticos,
simbolistas, modernistas, contemporâneos, enfim, um misto de sentimentos, sentimentos
estes que traduzem a essência humana; o importante é o resultado da obra: a
poesia contida no poema.
Antônio Cândido da Silva é um poeta que compõe
sonetos, poemas de forma fixa, usados pelos chamados poetas parnasianos, além
de poemas com características da poesia romântica, modernista e
modernista-contemporânea; portanto sua obra é bastante diversificada. Exercita
nos sonetos os recursos poéticos inerentes à métrica poética, sobretudo a elisão e o hiato. Confere a cada verso cadência e musicalidade, instrumentos
rítmicos que encantam o leitor.
VELHICE
Antônio
Cândido da Silva
Eu nunca tive medo da
velhice/através dos caminhos percorridos/assim pensava em minha meninice/e nos
sonhos de jovens destemidos./
Eu nunca importei com
quem me disse/que após os momentos decorridos,/chegando o dia que o viver
predisse/vamos viver de sonhos já vividos./
Eu sempre tive a
naturalidade/ para por alegria em cada idade/e ver que em tudo um lado bom
existe./
Pra pensar na velhice
sempre é cedo./Mas o que eu tenho realmente medo/é de um dia ficar velho... e
triste./
Destaco o poema VELHICE pela complexidade do tema e
pela originalidade com que o poeta discorre sobre os efeitos da passagem do
tempo: a sabedoria de atribuir a cada idade a alegria que é intrínseca à vida.
O poema VELHICE é um soneto, portanto um poema constituído de dois quartetos e dois
tercetos. Quanto à métrica, todos os versos apresentam dez sílabas poéticas.
Nas duas quadras
observamos rimas alternadas (ABAB ABAB);
do ponto de vista morfológico, as rimas da primeira quadra, velhice/meninice (substantivo e
substantivo), percorridos/destemidos
(adjetivo e adjetivo), são rimas pobres; na segunda quadra, disse/predisse (verbo e verbo), decorridos/vividos (adjetivo e adjetivo), também são rimas pobres.
No primeiro terceto,
encontramos rimas emparelhadas (AA);
do ponto de vista morfológico, são rimas pobres, naturalidade/idade (substantivo e substantivo).
No segundo terceto,
encontramos rimas emparelhadas (AA)
e ricas, cedo/medo (advérbio e
substantivo).
Encontramos transposição
de rima em C do primeiro para o
segundo terceto; rimas ricas, existe/triste
(verbo e adjetivo).
Característica do soneto
clássico, o poeta apresenta o tema, discorre sobre ele em todas as estrofes, e a chave de ouro (conclusão) resume
lindamente a temática. Este recurso, próprio do soneto, está demonstrado no
primeiro e nos dois últimos versos deste belíssimo poema.
“Eu nunca tive medo da velhice.../...Mas o que eu tenho realmente medo/
é de um dia ficar velho... e triste.”/
Antônio Cândido da Silva nasceu em 05.11.1941, na
cidade de Humaitá, interior do estado do Amazonas. Poeta, romancista,
historiador, compositor, Antônio Cândido é um escritor de renome no meio
acadêmico. Licenciado em Letras, pela Universidade Federal de Rondônia e Mestre
em História e Estudos Culturais pela mesma universidade, a obra de Antônio
Cândido é bastante diversificada: além de poemas e romances, é autor da bandeira
do município de Porto Velho, bem como autor do brasão do referido município.
Compôs os hinos dos municípios de Costa Marques, Cerejeiras e Jaru, todos no
estado de Rondônia; também é sua a autoria da bandeira do município de Costa
Marques.
Membro efetivo da Academia de Letras de Rondônia (ACLER)
e da União Brasileira de Escritores (UBE), Antônio Cândido possui uma obra
considerável: além de vários livros de poesia e romances publicados, guarda um
acervo de seis livros inéditos. O
escritor vive em Porto Velho, desde tenra idade.
SAMUEL
CASTIEL
O fazer poético de Samuel Castiel traz a marca de
um olhar atento às dores da alma e às reações humanas face ao mundo moderno.
Seus versos, livres, são próprios da liberdade modernista. Nos poemas de
Samuel, as sensações, emoções, enfim, toda a interioridade do sujeito lírico.
Os temas dos poemas de Samuel nascem das paixões, do amor à natureza e das
inquietações do ser humano. Os versos
soltos de Samuel traduzem a musicalidade presente em sua vida; revelam a
subjetividade como um Raios-X da alma, sua percepção de médico sobre a existência, através do
lírico.
Samuel
Castiel
Corvos negros da Ilha de
Somoe/Nessa algazarra festiva que fazeis/Voando sobre os verdes
coqueirais /Com grunhidos
roucos, estridentes/ Que mais parecem gritar para o homem surdo e
intolerante os seus males,/Mostrando-lhe como a vida é bela e simples...
Corvos Negros da Ilha de Somoe/Por que não mandais
um representante/ dentre os teus/Como mandastes para Allan Poe/Que repita aos
ouvidos desse ateu/Insistentemente/Que o bem maior da vida é a Paz?/Que se não
despertar o planeta vai/Morrer desértico na guerra e no fogo sem ter ninguém/Nuca
mais/Que chore os seus tristes ais!?.../
Corvos negros da Ilha de Somoe /Por que vós, que sois ave negra e
azarenta/ Marcada por todo preconceito,/Por que não vindes
logo dizer /
Que o sapiens homo perdeu o senso/No rastro da soberba e do poder?.../
Corvos negros da Ilha de
Somoe/Que representais o belo, o simples, a natureza /Nesse vosso
habitat selvagem e verde/Com o mar azul à frente, o vento e o
farfalhar /Das palmeiras e dos coqueirais.../Vinde e repeti ao homem
quão bela é a vida/Sem guerra, na quietude singela da paz!.../
Corvos negros da Ilha de Somoe/ Dizei-me quando será a terra outra vez/O planeta
azul do universo/Explodindo em vida e em cores/ Sem o fantasma
perverso/Da destruição, da insensatez/-- Ah! Nunca, nunca mais!.../
(Escrito
na Ilha de Somoe, em Punta Cana. República)
O belíssimo poema Corvos Negros de Somoe traz versos carregados de angústia, verdadeira
explosão de sentimentos que transparece através da subjetividade do eu lírico. Quanta beleza!
Quanto encantamento diante da natureza virgem, natural... Corvos negros alçando voo sobre o mar azul da
ilha de Somoe, santuário natural preservado da destruição causada pela ganância
do homem...
O poema é constituído de cinco estrofes que apresentam diferenças entre si, quanto ao número de versos: duas
sextilhas (primeira e terceira estofes), uma décima (segunda estrofe) e duas
septilhas (as duas últimas estrofes).
Os versos não apresentam um padrão com relação à
métrica, portanto são os chamados versos
livres, assim denominados porque não
possuem o mesmo número de sílabas métricas; na teoria da literatura são
definidos como heterométricos. Cabe
ressaltar que os poemas constituídos de versos
livres ressaltam a musicalidade, característica primordial das poesias.
O poema Corvos
Negros de Somoe não apresenta esquema de rimas, característica bastante
frequente na literatura moderna e na literatura contemporânea; são os chamados versos soltos ou versos brancos.
Observamos a
presença de anáfora, figura de
linguagem, na repetição do verso “Corvos negros da ilha de Somoe”, no primeiro
verso de todas as estrofes. Esta invocação repetida enfatiza e confere emoção
ao clamor do sujeito lírico.
Refletindo sobre a temática de Corvos Negros de Somoe e sobre a estrutura mesma do referido poema, consideramos que este apresenta características da literatura contemporânea brasileira; isto se dá, não apenas pela forma, mas, sobretudo, pelo tema, tema este que reflete a preocupação e a angústia do homem contemporâneo face às agressões ao meio-ambiente. Corvos Negros de Somoe é uma pérola da literatura de Rondônia.
ESFINGE
E FÊNIX
Samuel
Castiel
Boca
escancarada, língua de fogo/Que tudo devoras com insaciável fome!/ Engoliste
faminta o meu sonho todo/Minha quimera que arde e o abutre come!.../
Boca
escancarada, cheia de dentes/És a esfinge, o teu olhar penetrante/
Tudo
transforma em pedras ardentes/ Fizeste-me estátua num Sol brilhante !/
Boca
escancarada de fome voraz/Lançaste-me ao solo na areia quente,/ Trituraste
meus sonhos, todos meus ais/Tornando-me
assim infeliz Duende!...
Boca
escancarada de sopro abrasador/Te enganaste pensando que foi o meu fim,/Pois
sou eu a Fênix que das cinzas do amor/Renasce forte aos turbilhões em
mim! .../
Destaco este poema Esfinge e Fênix, não apenas pela beleza do significado e da
construção poética, mas também porque algumas de suas características reportam-me
à poesia simbolista.
O movimento simbolista literário surge na França, no
século XIX, com a publicação de As Flores
do Mal, obra do renomado escritor francês Charles Baudelaire (1821-1867),
numa espécie de reação ao realismo e ao naturalismo na literatura.
A poesia simbolista se caracteriza pelas temáticas misteriosas,
sombrias, além de religiosas e sensuais. No caso em pauta, o título do poema
traz a esfinge e a fênix, dois substantivos que,
semanticamente, reportam a mistérios; enquanto a Esfinge representa o indecifrável, o que não se pode desvendar,
portanto, o definitivo, o fim de quaisquer possibilidades, a Fênix representa o renascimento, a vida
que ressurge das cinzas, ressurge da morte.
Observamos aqui um mergulho à imaginação e à criatividade,
elementos presentes na poesia simbolista, bem como, de certa forma, alusão ao
místico e ao transcendental, imagens sombrias... “Presença
comum de antíteses e oposições, graças às tentativas de encarnar o que é divino
e espiritualizar o que é terreno: o poema é a forma de conciliação entre os
planos material e espiritual” (Sobre
a poesia simbolista, Literatura/Brasil/Escola).
Outra característica
simbolista no poema Esfinge e Fênix
é o uso da sinestesia, figura de linguagem que mistura elementos relativos
aos sentidos do corpo humano. Na segunda estrofe, “olhar penetrante” (visão e tato); “pedras ardentes” (visão e tato); na terceira estrofe, “areia quente” (visão e tato/paladar), além de outros elementos sinestésicos, como “sopro
abrasador”, “língua de fogo” etc. Além da presença da sinestesia, encontramos outra característica da poesia simbolista,
como o uso das chamadas letras maiúsculas
alegorizantes, para enfatizar o poder simbólico das palavras: na segunda
estrofe, Sol; na terceira, Duende, ambos os elementos
impalpáveis.
O poema Esfinge e Fênix apresenta quatro quartetos,
estrofes de quatro versos. Com relação à métrica, os versos são os chamados versos livres, não seguem um padrão de
métrica definido; na teoria da literatura são denominados versos
heterométricos; esta característica imprime musicalidade aos versos e ao poema
como um todo.
Com relação às rimas, encontramos
aqui o seguinte esquema de rimas: rimas cruzadas e ricas, na primeira estrofe: ABAB fogo/todo
(substantivo e pronome) , fome/come
(substantivo e verbo). Na segunda estrofe, também rimas cruzadas e ricas, ABAB, dentes/ardentes (substantivo e adjetivo) e pobres, penetrante/ brilhante (adjetivo e
adjetivo). Na terceira estrofe, há rimas cruzadas e ricas, ABAB, voraz/ais (adjetivo e substantivo) e ricas,
quente/Duende (adjetivo e
substantivo); na quarta estrofe, o mesmo esquema de ricas cruzadas ABAB e
ricas, abrasador/amor (adjetivo e substantivo)
e fim/mim (substantivo e pronome).
Observamos a presença de anáfora, ou
seja, a repetição das palavras “Boca escancarada” no primeiro verso de todas as
estrofes.
Apesar de não apresentar
uma estética integralmente simbolista, o poema Esfinge e Fênix traz algumas características desse movimento que se
fez forte na literatura brasileira através dos poemas de Cruz e Souza, Alphonsus
de Guimaraens e Augusto dos Anjos, estes os mais conhecidos.
PRA FALAR COM DEUS
Samuel
Castiel
Inerte, nu e sem nenhuma
emoção/ Quero ficar assim mudo, estático/ feito cadáver
estirado sobre a pedra fria./Sem pensamento algum a transgredir a minha
mente/Deixando apenas o ar úmido e morno /Insuflar os meus pulmões
suavemente .../
Não quero ninguém por perto
desse morto/
Nenhum residente ou legista ateu/Não quero o incômodo das orações /Nem
mesmo a luz tosca das velas.../Assim talvez possa eu longe das minhas
quimeras/Não ter sonho algum, violação ou pesadelo/
Assim talvez possa eu falar comigo mesmo,/
Talvez assim possa eu falar com Deus!.../
Destaco o poema PRA FALAR COM DEUS, pela originalidade
temática, pela beleza poética e por uma característica curiosa, característica
esta que me reportou ao tom pessimista, depressivo e macabro da Segunda Geração
do Romantismo brasileiro; o egocentrismo, a exacerbação sentimental, o
sofrimento do sujeito lírico e o desejo de fugir da realidade são algumas
marcas dos poemas da fase ultrarromântica. A expressão do eu lírico sugere
desilusões, sonhos perdidos (amores?), ausência de perspectivas, enfim, diria
eu que este poema contemporâneo demonstra que a essência humana vive em cada
ser independentemente do seu tempo e da forma como se expressa.
O poema PRA FALAR COM DEUS apresenta duas
estrofes: a primeira é uma estrofe com seis versos (sextilha); a segunda é uma
estrofe com oito versos (oitava). Este poema não apresenta esquema de rimas,
portanto, temos aqui versos brancos ou
soltos; o mesmo com relação à métrica, os versos são livres, ou seja, heterométricos,
não apresentam o mesmo número de sílabas métricas.
Samuel Castiel
Clausura
escura e sufocante/Cânticos sagrados gregorianos/A um só tempo o paraíso santo/ Ou
os grilhões ferrenhos dos porões/
Penitências, castigos e Orações/Misturam-se nas cândidas mãos/
Quando a noite desce com seu negro manto/ A espreitar incautos infiéis em
arrependido pranto/Na leitura de um Breviário Santo...
Em uníssono os monges cantam/ Num coro de celestial beleza/ Gregorianos
cânticos que tocam a alma /Enchem o espírito de maior pureza!.../Mesmo antes do
raiar do dia /De longe se ouve a Santa cantoria/
Embora distantes deste mundo louco/Dão os monges exemplo do mais puro amor:/é
possível viver na alegria santa/ Em clausura, sim, mas com a mente sana,/Enlevadas a Deus, nosso
Pai Criador.../
Observamos que a austeridade presente na temática
de Aos Monges pode ser encontrada em
vários outros poemas da lavra de Samuel. O poeta utiliza palavras fortes e
contundentes para descrever o universo ao qual se refere; no caso do poema Aos Monges, o claustro: mosteiro
fechado, sufocante, grilhões, porões, enfim, imagens que nos reportam às
clausuras da Idade Média. Porém, ao mesmo tempo em que essa ambientação sufoca,
o interior dos seres que ali vivem é santificado pelo cântico gregoriano, algo
que liberta, eleva e enleva a alma, ideias que reportam a paradoxos e
antíteses; do mesmo modo, “Penitências...
castigos... orações... arrependimento... paraíso santo... pureza... celestial
beleza...”
O poema Aos
Monges apresenta quatro estrofes: uma quadra, dois quintetos (segunda e última estrofes) e um sexteto. Com relação à
métrica, não há um padrão, os versos são heterométricos,
os chamados versos livres.
Observamos aliteração (em u) no primeiro verso da primeira estrofe; esta figura de linguagem
enfatiza sobremaneira a imagem descrita pelo sujeito lírico.
Alguns poemas apresentam rimas misturadas, ou seja, são as chamadas rimas mistas; isto ocorre quando o poema apresenta diversas
combinações, não há um esquema fixo de rimas, é o caso de Aos Monges. Esta característica é encontrada principalmente na
poesia modernista. Neste poema, temos, na segunda estrofe, rimas emparelhadas manto/santo/pranto (na verdade as
emparelhadas ou paralelas são constituídas de dois versos); na terceira
estrofe, temos rimas cruzadas no segundo e quarto versos, beleza/pureza e rimas emparelhadas no quinto e sexto versos: dia/cantoria; na última estrofe há rimas
interpoladas, segundo e quinto versos, amor/criador.
Enfim, não há um padrão definido.
Samuel Castiel
Vão-se
longe os sonhos meus/Da infância pueril/Restou-me só tu, oh! deus ateu.../Com
esse escárnio vil/A queimar o meu jardim/Numa escalada louca que vai/Arrastando
tudo de mim/Minha fé, minha luz, meu amor/No triste lamento que sai/Num pranto
que se chama dor! .../
Considero Deus
Ateu um poema de temática bastante original e interpretação complexa: o
sujeito lírico, cuja infância era plena de sonhos, possivelmente, nutrindo a fé
em um Deus presente, é tomado pela decepção e pelo desencanto face à solidão,
ao vazio, ao sentimento de desamparo em que se encontra. Teria Deus
desacreditado do eu lírico que expõe sua dor? Em um fenômeno inverso, teria
Deus caído na descrença com relação a esse sujeito lírico, levando-o a perder
os sonhos e a própria esperança na vida?
O poema Deus Ateu
apresenta características modernistas, tanto na temática (ousada), quanto na
estética. Poema de estrofe única, apresenta versos
livres e soltos, ou seja, sem
padrão definido de métrica e rimas respectivamente.
DADOS BIOGRÁFICOS
Samuel Castiel
nasceu em 11 de maio de 1947 na pequena
cidade de Gurupá, no estado do Pará.
Veio com pais e irmãos para Porto Velho aos 4 anos de idade. Médico
formado pela UFPA é especialista em
Radiologia e Diagnóstico por Imagem ( PUC-RJ).
Poeta, contista e cronista, com várias obras publicadas, é Membro Efetivo
da Academia de Letras de Rondônia- ACLER, e da Academia Brasileira de Médicos
Escritores- ABRAMES. Além da Medicina e das Letras, Samuel tem outra paixão: a
Música. Ao longo de sua vida, tornou-se um músico conhecido e requisitado;
costuma prestigiar eventos culturais, com seu inseparável Saxofone. Samuel é uma personalidade ilustre
em Rondônia, tanto pelos serviços prestados na área médica, quanto pelo talento
musical e poético. Samuel Castiel vive em Porto Velho.
Sobre a autora: Sandra Castiel é professora
de Literatura Brasileira e Língua Portuguesa, formada na Universidade Santa
Úrsula, na cidade do Rio de Janeiro. Pós Graduada em Língua Portuguesa (SOMLEI,
RJ) e em Didática do Ensino Superior, pela Faculdade da Cidade, Rio de Janeiro;
Mestre em Educação e Cultura Contemporânea, pela Universidade Estácio de Sá,
também no Rio de Janeiro. Membro Efetivo da Academia de Letras Sde Rondônia.
Escritora de contos, crônicas e peças teatrais para crianças deficientes
visuais, possui vários livros publicados.
Quando eu era nova, o tempo não era um tema que eu considerasse instigante. Para mim bastava pensar que a vida é o que é, ou seja, tudo se modifica
Ela não era fumante, nunca foi, e se casou com meu pai, que fumava desde a meninice. Ela passava mal com o cheiro forte do cigarro impregnado nos le
O mundo em que nasci não é este que Deus está me permitindo ver e viver. Em um mundo analógico, as mudanças eram lentas; as crianças obedeciam às r
Porto velho: natureza em chamas
Era madrugada de quinta-feira quando despertei; minha respiração estava difícil, as vias respiratórias pareciam ter dificuldade em cumprir sua funçã