Quinta-feira, 26 de dezembro de 2024 | Porto Velho (RO)

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Gente de Opinião

Sandra Castiel

Ensaios literários sobre poetas de Rondônia IV


Sandra Castiel - Gente de Opinião
Sandra Castiel

“Apenas aqueles que são muito jovens ou muito ingênuos ignoram que obras de arte, sejam literárias ou de qualquer outro gênero, não são entidades universais e autônomas, nascidas do nada ou Nonada (como Guimarães Rosa inicia sua obra máxima) indiferentes às condições históricas que as produzem, aos valores das classes sociais que as canonizam e fruem.” (Renato Rezende- A poesia contemporânea brasileira e sua crítica, Revista virtual Cronópios).

A ideia de que a arte literária possui autonomia, no sentido de ser voltada apenas à beleza e à qualidade da obra, sendo esta livre de quaisquer propósitos, remonta, grosso modo, à Poética de Aristóteles. Porém, tal princípio só emergiu e ganhou força a partir da metade do século XVIII.  Ao longo do tempo, este pensamento evoluiu ao conceito de arte pela arte.

É no campo da filosofia que a ideia da autonomia da arte se começa a delinear na segunda metade do séc. XVIII, conduzindo, a curto prazo, aos posicionamentos próprios do Romantismo e, a mais longo prazo, à teoria da Arte pela Arte. Baumgarten é um dos primeiros filósofos a considerar a arte como uma esfera independente da moral e do próprio prazer, cabendo-lhe o mérito da criação do vocábulo estética em 1750. Kant logo em seguida aprofundou a questão dizendo que o prazer estético é desinteressado e não visa outras coisas além de si mesmo, o que encontrou apoio nas ideias de  Schelling e Hegel. Em 1804, Benjamin Constant sumarizou o debate cunhando a expressão "arte pela arte".

Esta teoria propagou-se sobremaneira na França. Porém, no mesmo país, Théophile Gautier, em prefácio do romance Mademoiselle de Maupin (1835), declara sua rejeição às finalidades de cunho moral e social para a literatura: arte pela arte não significa beleza e utilidade, mas sim beleza e verdade. A partir de 1860 o conceito de arte pela arte é relacionado a esteticismo (ênfase à beleza da arte).

No Brasil, a ideia de arte desvinculada de compromissos morais, sociais e políticos destacou-se no movimento parnasiano, poética produzida durante o realismo; surge como reação ao sentimentalismo exacerbado da poesia romântica: a beleza da arte poética deve ser um fim em si mesmo, ou seja, cabe ao poeta criar beleza. Até que surge o movimento modernista.

A Semana de Arte Moderna, realizada em São Paulo, no ano de 1922, consistiu na promoção em nosso país do chamado movimento modernista, um movimento que surge com força avassaladora; o Modernismo tinha como objetivo romper com o tradicionalismo que servia de base à produção artística brasileira. Esse movimento passou por várias fases, porém o pilar que o sustentou (e de certo modo o perpetuou, na essência) foi a independência e a valorização de nossa cultura, nas artes.

Antes de adentrarmos no universo da poesia brasileira contemporânea, consideramos importante esse brevíssimo olhar ao passado, algo que nos leva à maior compreensão do cenário desta poesia.

Há diversidade de olhares, da parte dos analistas, sobre a poesia contemporânea brasileira: ela ainda estaria centrada nas pretensões modernistas?

A diferenciação entre a produção poética contemporânea e a produção poética modernista, sobretudo quando do surgimento desta, na primeira metade do século XX, é evidente: enquanto a modernista ansiava por originalidade, independência e ruptura com a tradição, a contemporânea possui outros propósitos. Porém, há que se acreditar que esses parâmetros não são suficientes para delinear a configuração de uma nova Escola.

Do Modernismo aos dias de hoje, a nossa poesia passou por uma série de mudanças, algumas efêmeras, outras duradouras, e no caminho percorrido encontram-se, por exemplo, a Geração de 30, a Geração de 45, a Poesia Práxis, o Concretismo, o Tropicalismo, a recriação do Sertão por Guimarães Rosa, merecendo destaque a busca empreendida no sentido de obter-se uma linguagem simples, apoiada no coloquial e nas coisas triviais (José Geraldo Pires de Melo, Contemporaneidade e Poesia).

A poesia contemporânea reflete o olhar do homem atual, um homem que vive em meio à urbe tecnológica, convivendo com a pluralidade de expectativas impostas pela sobrevivência material e pela sobrevivência emocional, um mal de seu tempo; seu olhar é a visão de alguém cujo fazer poético é completamente livre e, com frequência, libertário, tanto no que diz respeito à temática quanto à forma.

Convivemos com a diversidade no que se refere à poesia na contemporaneidade; alguns ousam na temática e mantêm a métrica e o ritmo, como é o caso deste poema de Antônio Cícero, poeta, filósofo e letrista carioca, que aborda com irreverência a questão da homossexualidade; considero este poema lindo, a cara da contemporaneidade:

 

 

Onda

Conheci-o no Arpoador,

garoto versátil, gostoso,

ladrão, desencaminhador

de sonhos, ninfas e rapsodos.

Contou-me feitos e mentiras

indeslindáveis por demais:

eu todo ouvidos, tatos, vistas,

e pedras, sóis, desejos, mares

E nos chamamos de bacanas

e prometemo-nos a vida:

Comprei-lhe um picolé de manga

e deu-me um beijo de língua

e mergulhei ali à flor

da onda, bêbado de amor.

Comumente nos deparamos com poetas contemporâneos que diversificam seu fazer poético levando-nos a tradições literárias do passado, seja na forma do poema, seja no uso de características de determinadas escolas.

José Geraldo Pires de Melo (Contemporaneidade e Poesia), ao citar o soneto Transubstanciação, do poeta mineiro Anderson Braga Horta, ressalta a forte influência simbolista no referido soneto, aliás, belíssimo. Trata-se de um poeta da contemporaneidade cujo versejar nos remonta à tradição também na forma: soneto constituído de  versos decassílabos.

 

Um dia hei de chorar todo esse pranto,

que arrasará com todas as comportas.

E um mundo de águas más e folhas mortas

escoará, deixando espaço ao canto.

 

Um dia, imerso em vinho, envolto em canto,

hei de arrombar estas arcaicas portas

que me confinam nas planícies mortas,

e ascenderei às solidões do espanto.

 

Galgarei os degraus da etérea altura,

 e acima, acima da terrena vaia,

das amplidões haurindo a linfa pura,

 

cego de êxtase, e tonto de vertigem,

contemplarei, do alto deste himalaia,

– transfeito em sonho – o vórtice da origem.

 

Há que se ressaltar a principal característica do fazer poético contemporâneo: a diversidade. Com frequência ouvimos a comparação da poesia contemporânea com a arte do mosaico, arte esta que consiste em reunir uma gama de pedaços de azulejos das mais variadas estampas, épocas e procedências, juntá-los de tal modo que surjam novas configurações.

Em Rondônia temos alguns poetas contemporâneos que retomam aqui e ali características de escolas tradicionais; outros há em cujos poemas não conseguimos vislumbrar referências a essas escolas.

Cabe ressaltar que este trabalho não tem pretensões acadêmicas; trata-se de um ensaio literário, portanto, desprovido do cunho e do rigor acadêmico. Apresentamos aqui apenas alguns poemas de poetas de Rondônia, conhecidos e não conhecidos dos leitores, dos amantes de poesia: versos que nos tocam a alma.

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MARCUS VINICIUS DANIN

 

Marcus Vinicius Danin é autor de uma poesia única! Sua inspiração é comovente, bem como a construção de belíssimas figuras de estilo, recursos poéticos que adornam como pequenas flores cada letra de seus versos. Marcus é um poeta do quotidiano; seu olhar percebe a grandiosidade contida nas coisas simples da vida, em tudo o que é eterno; a natureza é sua musa maior.

 

ALMA DE LAGO

 

minha alma de lago     

se alaga em algo

que só no céu há igual

no amálgama da alga

que a lágrima salga

no doce da água 

nada tão desigual

nessas nuvens que

a alma galga

o dia não morre

ele se incorpora

ao esplendor lacustre

da placidez do arrebol!

 

O título deste poema remete à serenidade, à mansidão de um lago, eis o que está subjacente a esta tão bela metáfora, através da qual o sujeito lírico define sua alma, a natureza de seu ser. Porém, percebe-se certa melancolia na expressão desse sujeito poético, sentimento este que transparece da subjetividade do poeta: somente além das nuvens, em um ponto abstrato, o eu lírico pode desnudar sua alma de águas plácidas e derramá-la em meio às outras, que vivem nesse ponto celestial? Nesse lugar idealizado pelo eu poético, não existe a morte, sequer o dia morre; apenas incorpora-se à grandiosidade do crepúsculo.

Este poema traz várias e belas figuras de linguagem: no título, uma metáfora,  alma de lago; na sequência, hipérbole, exagero poético intencional: “se alaga em algo que só no céu há igual”, ou seja, algo tão grandioso que não existe no mundo; segue reportando-nos aos sentidos, sinestesia/ antítese?,   no amálgama da alga que a lágrima salga, no doce da água, nada tão desigual”; na sequência, temos uma metáfora lindamente construída: “nessas nuvens que a alma galga”; os últimos versos seguem a mesma linha de construção metafórica; como um artesão da palavra, alguém familiarizado com sua multiplicidade semântica, o poeta encerra esse majestoso poema, com a imagem do crepúsculo ao qual o dia incorpora-se, ou seja, não se trata apenas da ampliação de sentido de um significado, mas de uma verdadeira tela poética, que permite ao leitor esta visão mágica.

Alma de lago é um poema contemporâneo; comumente os poetas contemporâneos não usam esquemas de rimas e de métrica; porém, não acidentalmente, nos dois primeiros versos temos rimas externas e paralelas (AA) bem como no quarto e quinto versos, rimas internas e externas; em quatro dos versos temos rimas internas ou coroadas.

Considero este uso das rimas e da repetição de palavras, bem como a aliteração em g e l, água, lago, alaga amálgama, alga, galga, recursos poéticos, usados para marcar o ritmo dos versos; observe que essas palavras são paroxítonas, tonicidade que, neste caso, imprime aos versos um  ritmo que reporta o leitor ao movimento contínuo e marcado da água, água que invade o poema e a alma da gente. Lindo!

Selecionamos para o leitor o poema Pássaro e Flor, título que, de pronto, nos remete à temática da natureza. Porém os versos de Marcus trazem um sentido completamente conotativo, é a natureza da pluralidade literária.    

 

PÁSSARO E FLOR

Ser um
passarinho
despindo tuas manhãs

Alvorecendo
alvoroçado
alvissareiro

Eriçando
tuas pétalas
roçando tuas sépalas

Mitigando
minha
sede

No orvalho
sagrado e
divino

Que a aurora em
tua Inflorescência
aflora

Nesse receptáculo
espetáculo
do belo

Na efemeridade
onde a vida
voa

A grandeza de ser
pássaro

e flor!


            Passarinho e flor são na verdade metáforas usadas pelo sujeito lírico para expressar, poeticamente, o encontro entre homem e mulher: personificação delicada e belíssima composição, poesia mágica e erótica; através de elementos da natureza, o eu lírico narra este encontro, “colhido” da subjetividade do poeta.

O poema é constituído de nove estrofes de três versos (tercetos), todos os versos são curtos, não acidentalmente; o ritmo reporta-me ao voo e aos movimentos de um colibri, saltitando aqui e ali. Não há esquema de rimas e de métrica, os versos são brancos e livres, marca da poesia contemporânea. 

Marcus Vinicius Danin é um poeta cujo olhar é vasto; sua alma sensível enxerga a poesia contida nas pequenas e grandes coisas da vida, valoriza-as e as eterniza em versos; é o que veremos neste magnífico poema que certamente toca a alma, sobretudo dos amantes desta região:

 

CHEGUEI

 

Cheguei, trouxe solavanco de estrada

de chão, deslize bucólico de canoa,

balouçar embanzeirado de batelão...

Trouxe mansidão de peixe-boi,

espreito de boiúna, pitiú nas vestes,

tuíra na pele, ferroada de pium...

Trouxe uma fieira de mandi e bico-de-pato,

fiz uma caldeiradinha de fato...

Muito cheiro verde, chicória, farinha

d'água e limão...

Pimenta, odor aguçado, escorrendo

da venta, tucupi

Nada de mágoa, só água que passarinho

não bebe, travo de caju...

Cheguei, do reino das barbatanas, caldos

de cana, beira piscosa de rio, sol e langor

Meus olhos repletos de asas e escamas,

mergulhos de gaivotas, peripécias marotas

de boto, pedras negras, flutuo de flor

Trouxe os pés nus, lama, Calama,

gosma de candiru...

Rio acima, rio abaixo descendo Madeira

Beradeirice e lânguidez que dura a vida inteira...

Cheguei, desbarrancando de amor...

 

O poema Cheguei é um hino de amor a sua musa, a Amazônia; o  sujeito lírico está presente  na exaltação de tudo que uma viagem à floresta propicia: solavanco de estrada de chão, canoa deslizando suavemente na imensidão do (rio) Madeira, batelão agitando as águas, banzeiros, e alguns dos  animais que vivem no rio:  peixe-boi, mandi e bico de pato, boto, candiru.

Este hino de amor à Amazônia traz as impressões que o eu lírico (narrador da subjetividade do poeta) carrega em si, na volta do mergulho ao interior da floresta amazônica, algo prazeroso aos habitantes locais. Através de versos fortes e linguajar caboclo, percebemos a mata, o rio Madeira, os seres misteriosos de suas águas, os peixes, os insetos que atacam a pele humana, o cheiro de peixe cru nela entranhado, o trajeto na estrada de terra e seus solavancos, a refeição que é preparada na volta, os ingredientes, os temperos...  Enfim, tudo que faz parte do universo dos beradeiros compõe este poema belíssimo, um marco na poesia amazônida e brasileira sobre esta fascinante e majestosa região.

Há figuras de estilo (linguagem) ricamente construídas ao longo do poema; destacamos algumas, para comentar: Cheguei, trouxe solavanco de estrada/ de chão, deslize bucólico de canoa,/ balouçar embanzeirado de batelão.../Trouxe mansidão de peixe-boi,/ espreito de boiúna, pitiú nas vestes,/tuíra na pele, ferroada de pium.../ Esses versos nos reportam a um misto de sensações expressas pelo eu lírico; um ajuntamento de sentidos, que nos remetem à metonímia e à sinestesia; “Meus olhos repletos de asas e escamas”, figura de estilo elaborada com mãos de artesão, nesta sinédoque, belíssima:  (parte pelo todo) asas e escamas, para descrever aves e peixes; “Muito cheiro verde, chicória, farinha/d'água e limão.../Pimenta, odor aguçado, escorrendo da venta, tucupi...”/;  figura de linguagem que nos remete aos sentidos: sinestesia;  peripécias marotas de boto,”: temos aqui outra figura de linguagem, a personificação, pois o sujeito lírico atribui comportamento humano ao boto,  animal aquático;  “Cheguei, desbarrancando de amor...”. Clímax da expressão poética neste último verso: o eu lírico compara a intensidade de seu amor pela região, com os barrancos ribeirinhos, desmoronados pelo impacto da vigorosa força d’água.  Realmente, há que se deter nesse emocionante exagero poético intencional: hipérbole.

Mergulhando mais profundamente na leitura desses versos, entendemos que esse poema é uma grande metáfora: o eu lírico colheu a essência da floresta amazônica, depositou-a em um frasco com cheiro de peixe no tucupi e a trouxe consigo. Tudo isso está impregnado em sua alma.  

Cheguei é um poema completamente modernista-contemporâneo; traz a valorização da brasilidade contida no sotaque caboclo, na flora, na fauna existente nos caudalosos rios e na cultura amazônica. Não possui esquema de rimas e métrica, é constituído de estrofe única. 

 

ORAÇÃO PRA ASAS

Ave Maria

Cheia de

Graça

Protegei

As árvores

Cheias de

Garças...

Jesus menino

Filho da luz

Abençoai

Os sagrados

Ninhais...

Os cabeças-secas

Os colhereiros

Os tuiuiús...

Salvai as

Araras-azuis...

 

Através da temática deste poema, o sujeito lírico revela a subjetividade, os sentimentos colhidos da sensibilidade e da alma do poeta; transparece aqui a religiosidade e o amor infinito pela natureza, a preocupação com as aves e com os pássaros que habitam as florestas brasileiras e vivem à mercê da ignorância, do descaso e da crueldade humana, muitos deles ameaçados de extinção.

Observamos o uso de figuras de linguagem usadas com maestria para enfatizar a ideia, como no título, Oração pra Asas. O poema, na verdade é uma prece poética, o título identifica o tema; logo no título temos uma figura de estilo, a metonímia; aqui, a parte (asas) representa o todo: pássaros; em seguida, nos versos: “Cheia de/ Graça” / “Cheia de Garças...”/ temos o uso da anáfora, a repetição da palavra Cheia, no início de dois versos, e de letras ,nas palavras g- a- r- ç –a-s / g- r –a- ç- a-s; no verso /Filho da luz/, sagrados ninhais /temos metáforas.

Oração Pra Asas é um poema de estrofe única e versos curtos, estrutura poemática bastante usada na poesia contemporânea; neste caso, não por modismo ou tradição; trata-se de um recurso poético para acelerar o ritmo dos versos, assim como no título: porque não usou oração para asas, ao invés de Oração pra Asas? Acredito que isto se deu, também para conferir rapidez ao verso, ao número de sílabas métricas; tudo reporta o leitor à brevidade do momento em que se vê um pássaro em pleno voo. O poema não apresenta esquema de rimas nem de métrica: os versos são quase todos brancos e livres; contudo, observamos alguns aspectos a ressaltar: a homogeneidade de alguns sons em versos distintos, Graça e Garças, Jesus e luz, tuiuiús e azuis (nestes dois últimos, rimas ricas com as quais o poeta encerra esta pérola poética).

Escolhi o poema PROCURO para encerrar a leitura deste ensaio sobre uma amostra da poesia de Marcus Danin, porque, aqui, deparo-me com verdadeira cortina tecida num tear de fadas: subjacentes à candidez dos belíssimos versos, quantas mensagens nesse discurso poético comovente!  

 

PROCURO

 

Procuro

Olhos de chuva,

espreito de lua,

águas de riacho, semeadura,

candura, candura

 

Procuro

Caminhos de aves

Rastros de sonhos,

Epílogo das agruras,

ternura, ternura

 

Procuro

Janelas de alma,

tempestades de calma

placidez de garça, alvura

brandura, brandur

Procuro

Brilho nas vozes

Estribilho, rebrilho

Solfejos de esperança

Bonança, bonança

 

Procuro

Faces risonhas

Pés serelepes

Estórias de infância

Criança, criança

 

Procuro

Palavras gentis, sutis

Acenos de Paz

Homens desarmados

Amados, amados

 

Procuro

A não violência

Carinho às mulheres

Em todas as idades

Amistosidade, amistosidade

 

Procuro

Frestas de florestas,

Asas de arribação

Canções, poesias, amores,

Emoção, coração, coração...

 

Observamos um estado de espírito melancólico no eu-lírico, ao longo de todo este poema; em cada verso, esta melancolia, este desconforto, se faz presente: há uma busca incessante por algo que parece inatingível no mundo real, no mundo urbano, no universo agitado e competitivo, onde os homens (sobre) vivem. A grande busca do eu-lírico tem, como contraponto a este mundo agressivo, a placidez, a Paz existente na natureza, a alegria e a serenidade contidas nas pequenas-grandes coisas: candura, ternura, brandura, bonança, criança, homens desarmados e amados, amistosidade em qualquer idade, a emoção das canções...

 O poema Procuro é constituído de oito quintilhas, estrofes de cinco versos. A construção de belíssimas figuras de linguagem é a marca da poesia de Marcus, especialmente quando sua inspiração está associada a elementos da natureza; no segundo e no terceiro versos, temos “olhos de chuva” / espreito de lua: olhos de chuva teriam o significado de olhos molhados de sensibilidade, olhos embargados, cujas lágrimas podem cair a qualquer instante, assim como a chuva, ou esta metáfora reflete apenas a beleza, a transparência das águas existente nesses olhos?  No terceiro verso, outra figura de estilo que revela a “busca” do eu-lírico: “espreito de lua”; nesta, temos um luar tímido, a lua apenas “espreitando” a escuridão da noite, ou temos a presença escancarada da lua a espreitar, em meio ao céu estrelado, a vida sob o luar? Em ambas as hipóteses, há personificação.

Na segunda estrofe, mais belas metáforas, “rastros de sonhos”, “epílogo das agruras”; bem como na estrofe seguinte, segundo, terceiro e quarto versos: “Janelas de alma,” “tempestades de calma,” “placidez de garça”. Na sequência, quarta estrofe, no segundo e no quarto versos, Brilho nas vozes/Solfejos de esperança”; essas duas últimas nos reportam à música, poderíamos dizer que, para alguns leitores, esses versos soam melodiosos.

Procuro apresenta vários recursos poéticos, possibilidades que a língua oferece ao escritor, para enfatizar a ideia que o eu-lírico quer expressar ao longo dos versos; a anáfora é um desses recursos estilísticos usado neste poema: o título é repetido ao início de cada estrofe; no último verso de cada estrofe há outra  repetição de palavras; quanto maior for o número de repetições  mais intensa será a percepção da ideia que o sujeito lírico pretende expressar.

Existe a presença de rimas no poema Procuro: Na primeira estrofe, quarto e quinto versos, semeadura/candura (DD), rimas paralelas; rimas paralelas também na segunda estrofe, agruras/ternuras (DD), no quarto e quinto versos; na terceira estrofe, alma/calma (BB), alvura/brandura (CC), primeiro e segundo versos e terceiro e quarto versos respectivamente; há transposição de rimas em (D) da primeira para a segunda estrofe e destas para a terceira estrofe; na quarta estrofe, temos rimas internas, segundo e terceiro versos (rimas em B), brilho/estribilho/rebrilho, e rimas paralelas no quarto e no quinto versos (DD), esperança/bonança; na sexta estrofe, quarto e quinto versos, rimas paralelas (DD), desarmados/amados; na última estrofe, há a repetição de sons no segundo verso, aliteração (frestas/florestas), e rimas cruzadas no terceiro e no quinto versos, arribação, emoção, coração (CC).

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DADOS BIOGRÁFICOS

Marcus Mendonça Danin é amazônida, do estado de Rondônia, nascido em 14.10.1970, às margens do Rio Madeira, na cidade de Porto Velho. Desde muito cedo teve contato com a Literatura, incentivado por seu pai, Jornalista e Radialista, amante de arte e literatura. Começou a escrever aos 15 anos quando residia na cidade de Cuiabá-MT. Já participou de várias coletâneas e publicou em alguns jornais de sua cidade natal; é integrante do fecundo grupo Poetas de Indaiatuba e do Mundo, agraciado inúmeras vezes com Menção Honrosa, por suas composições poéticas. Recentemente foi homenageado com a publicação de vários poemas seus na conceituada página Lítero-Cultural, do poeta, escritor e jornalista Selmo Vasconcelos, do Jornal Eletrônico Rondônia ao Vivo. Também é músico, compositor e coralista. Ainda não possui livros lançados, porém, em fase de edição.  (Texto de autoria do poeta)

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ABEL SIDNEY

A poesia de Abel Sidney é surpreendente: temas que abrangem tanto as inquietações existenciais do homem de sempre, até as pedras do caminho do homem contemporâneo; sua poesia nos leva à reflexão, de uma forma informal, leve, como se o sujeito-lírico estivesse dialogando com o leitor, e isto é incrível! Abel Sidney é, literalmente, um poeta de seu tempo, independentemente dos temas que inspiram sua produção poética. Penso que o ser humano possui a mesma essência, não importa o século em que tenha vivido ou viva; daí as mesmas angústias, os mesmos temores, os mesmos anseios, as lembranças da infância e da juventude, amores perdidos no tempo, amores presentes, a consciência da finitude, enfim, muda o universo exterior, transformam-se os costumes, transforma-se a vida com os avanços da ciência e da tecnologia, mas a essência humana é imutável. A poesia de Abel nos remete à vanguarda, tanto na irreverência, quanto na estrutura de alguns de seus poemas. Todos belíssimos!

 

EI, PSIU, VAI UM POEMA AÍ?!

 

- Sabe, perdeu-se o encanto e

eu nem sei mais quem sou...

A escuta, a auscultação permite

colar o ouvido direto ao

peito, ao coração.

- Sei lá, parece que perdi o

endereço de mim...

Acolhimento e cuidado exige

preparo e nobre disposição.

- Às vezes penso se não seria

melhor tudo acabar e eu sumir...

O insondável, o mistério bate à porta

exigindo a consulta ao sagrado

humildemente, em oração.

- Só estou aqui porque fui obrigado,

pra mim o problema são eles!

Guia nas descobertas, meio de alívio

e cura, base firme de orientação.

- Agradeço por me contrariar e me

fazer ver o que eu não

queria enxergar!

Eis um poema de gratidão, desses

que valem o esforço de uma

vida toda, a confirmar

minha vocação.

 

Neste poema, o eu-lírico expressa profundo sentimento de solidão. Temos um eu-poético angustiado, em busca da própria identidade; sentimentos que saltam dos versos contundentes, na dor, e leves, na linguagem, através da construção de belas figuras de linguagem.

Encontramos, aqui, uma metáfora pura: perdi o endereço de mim”: esta construção poética pode significar: estou entre estranhos? tornei-me um deles? e o encantamento? não me reconheço! Na sequência, vemos um sujeito lírico pessimista com relação ao que percebera, “auscultando” o próprio coração: “... seria melhor tudo acabar e eu sumir”; aqui está implícita a ideia de fim (fim de uma relação amorosa, ou até da própria vida), suavizada pelo eufemismo; o próximo passo é a consulta ao sagrado, algo que acalma o espírito deste eu-poético; mais uma metáfora pura: “Guianas descobertas” (pode significar que o sagrado, através da oração, trouxe-lhe a compreensão de suas angústias). O poema termina com a expressão de um sentimento de gratidão, pela confirmação de seus propósitos na existência, algo ao qual se dedicou ao longo da vida. Belíssimo poema!

Ei, Psiu, vai um poema aí? Este poema apresenta estrutura poemática contemporânea: estrofe única, versos brancos e livres, ou seja, não há esquema de rimas e os versos são heterométricos; porém, reconheço ritmo intencional na repetição de palavras terminadas em –ão (aliteração),ao longo do poema:  auscultação, coração, disposição, oração, orientação, gratidão, vocação, todas com a tonicidade na última sílaba. No título do poema transparece a marca vanguardista do fazer poético de Abel Sidney: a irreverência.   Neste título, o eu- lírico revela-se um entregador de poesia, ou, talvez, um vendedor de sonhos. Fiquei comovida!

Dentre tantos outros, selecionei este poema, tanto pela temática, quanto pela forma contemporânea da expressão poética:

 

EM TEMPO... BREVE CONFISSÃO

 

Não vivo nos tempos idos

nas terras de outrora...

Tantos passados, porém,

insistem em me viver!

Vivo neles, ao sabor das

lembranças, parte delas

ternas, sentimentais.

O certo é que me importo

mais com as pessoas

do que elas comigo.

Daí trazê-las, puxá-las

pelo fio da memória,

sem pedir licença.

Num segundo ei-las

de novo nas telas

da recordação.

Gosto delas, doutros tempos

e tenho o controle do filme

nas mãos...

Dou-me o direito de gostar

daquele tempo, das pessoas

sem que elas sequer suspeitem.

 

Neste outro poema, Em Tempo... Breve Confissão, o sujeito lírico conduz o leitor ao universo de lembranças que vivem na subjetividade do poeta: “... passados que insistem em me viver  , ou seja, a viver permanentemente em mim; para descrever a intensidade de suas memórias, o eu-lírico expressou-se através de  figuras de linguagem: “sabor das lembranças/ parte delas/ ternas, sentimentais/”:   sinestesia e  metonímia; “... me importo mais com as pessoas do que elas comigo”, comparação; “daí trazê-las, puxá-las/ pelo fio da memória, catacrese; ...” num segundo ei-las/ de novo nas telas /da recordação/” : as lembranças das pessoas do passado  vivem na  memória desse  eu-poético e,  em um segundo, surgem  como se fossem projetadas em telas, as telas das recordações, metáfora; e tenho o controle do filme nas mãos...” Interessantíssima construção metafórica: as recordações são como um filme,  e o “controle” (aqui, talvez, associado ao objeto controle remoto) dos momentos que serão exibidos (ou lembrados)  está nas  mãos do sujeito lírico. “gostar daquele tempo, das pessoas /sem que elas sequer suspeitem”: aqui a presença de zeugma (gostar das pessoas).

O poema Em Tempo... Breve Confissão traz no título, ao exemplo do anterior, um tom irreverente, marca do autor. Ainda não havia visto a expressão Em Tempo (expressão esta que se costumava usar depois do final de uma carta manuscrita, para mencionar algo que não fora dito na carta) em um poema; nas cartas de outrora, tal expressão era escrita de forma abreviada: E.T. Não por acaso, essa expressão intitula este poema: o eu-lírico faz um mergulho em terras de outrora, tempos idos, quando ele próprio escrevia ao pé da carta: Em Tempo.

 

   Ensaios literários sobre poetas de Rondônia IV - Gente de Opinião

O fazer poético de Abel Sidney revela a inquietude, a curiosidade, a urbanidade do homem contemporâneo; ora o eu-lírico, narrador de sua expressão poética, “define-o” como um vendedor de sonhos, alguém que distribui poemas aos motoristas nos semáforos das metrópoles, ora o enxerga como alguém que anseia deixar registros de suas confissões, mesmo que sejam breves, enquanto há tempo.

Encontro aqui, entre os escritos de Abel, este poema visual: acho lindo!

O poema visual tem a cara da contemporaneidade; nele, há várias linguagens, estas subjacentes à linguagem poética tradicional: o modo como as palavras são distribuídas no poema, os vários discursos ali existentes, a imagem ou imagens que constituem o poema, enfim, uma gama de possibilidades de leitura e interpretação.

No caso em pauta, temos um poema cujo título é Amar-se Traz Alforria: uma homenagem à mulher cuja história propiciou a criação da lei Maria da Penha, a primeira lei brasileira voltada a proteger a mulher da violência doméstica, e a primeira lei que leva parceiros violentos à cadeia. O título sugere que a conquista da liberdade plena requer amor próprio, amar-se a si mesma, o que significa não aceitar imposições de caráter machista; o sujeito lírico usa a palavra alforria, fazendo uma analogia entre a liberdade do escravo que conseguia  a carta de alforria, e a libertação da mulher que vive “presa” a uma relação abusiva. 

O poema está configurado em três colunas de versos; os pilares são constituídos de palavras fortes, significantes que carregam consigo a pluralidade dos significados, quando se trata de linguagem conotativa, a linguagem poética. Acredito que a leitura seja vertical, mas nada impede que o leitor faça outros tipos de leitura entre as colunas que apresentam os versos, ou seja, que busque novos sentidos, formando frases com palavras de diferentes “colunas”, por exemplo: “cabelos presos, soltos, cacheados”, etc.

O poema Versões reitera a modernidade, a informalidade e a irreverência da poesia de Abel Sidney:

VERSÕES

Descobri que só quero

ser euzinho mesmo

um pouco mais

melhorado.

Mais pé no chão, a despeito

dos voos que a poesia

me permite sem

muito risco.

Isso inclui voltar para casa

todos os dias para curtir a

vidinha  bo(b)a que muitos

descobrem tardiamente...

Bem, se eu aprender um novo truque,

desses de melhorar a estética da alma

- de clarear sorriso e de esquecer mais

rápido as mágoas, hei de ensiná-lo.

Então é isso!

 

O título deste poema sugere pluralidade de perfis, pluralidade de personas, pluralidade de preferências, pluralidade filosóficas, no sentido de diferentes olhares sobre o mundo e sobre a existência.

Consigo vislumbrar neste poema a expressão de um lírico jovial, leve, urbano, universitário com a mochila nas costas, usando jeans e camiseta, calçando tênis, rabiscando versos no celular, enquanto espera o metrô: este perfil vive e viverá eternamente na alma, na subjetividade deste poeta interpretada pelo sujeito-lírico.” Só quero ser euzinho mesmo”, ou seja, gosto de mim como sou, gosto da minha “vidinha”, (pequena, talvez para outros, para aqueles que ainda não atingiram a maturidade, não valorizam a vida, o agora!), mas para mim (lírico) é uma vida boa, não boba,  porque aprendi desde cedo a enxergar a grandiosidade contida nas pequenas coisas da existência, na rotina do dia a dia, como voltar para casa, para a convivência com as pessoas que amo, por exemplo.  

A partir daí o eu-poético apresenta a capacidade madura de reflexão também colhida da subjetividade do poeta: no mesmo tom irreverente, o lírico revela ao leitor sua busca filosófica, uma busca que engrandece a alma e torna-a mais bela: esquecer as mágoas, de pronto, e sorrir (com um sorriso claro e bonito) mais amiúde para o próximo; isto não impede que esta bela alma alce voo (sem risco?) para o infinito, lugar onde vive a poesia. VERSÕES é um poema contemporâneo, constituído de estrofe única, versos brancos e livres.

Considero deliciosa a leitura do poema Cardápio Variado:

 

CARDÁPIO VARIADO

Ao moço, carne

ao velho, sopa

à criança, fruta.

Almoço para todos?!

Banana da terra frita

cuscuz com ovos

suco de açaí.

Para evitar males sem fim

castanha-do-brasil todos os dias.

Para as dores da saudade

um retrato 3 x 4 de pegar

com a mão e sentir

com o coração...

   Ensaios literários sobre poetas de Rondônia IV - Gente de Opinião

Temática leve e irreverente, marca da poesia de Abel Sidney, aliás, leitura prazerosa, toque de humor presente na lista desse cardápio poético: alimentos considerados adequados para as diferentes faixas etárias. Achei interessante e divertido o modo como o sujeito lírico expressou as representações sociais do poeta nesse quesito; os costumes, os ensinamentos, enfim, a tradição no que se refere à alimentação em nosso país, no meio em que o poeta viveu ou vive. Gostei, sobremaneira, do almoço (para todos) que integra o cardápio: banana da terra frita (aqui, conhecemos como banana comprida), cuscuz com ovos (comida mineira?), suco de açaí (no Norte, tomamos açaí no prato ou na tigela), este último (suco) hábito de passado recente. Para garantir males de todas as naturezas, castanha do brasil (do Pará, como chamamos na região).

O item do cardápio que me emocionou e levou-me a mergulhar nos sentimentos do eu-lírico foi o alimento que cura as dores provocadas pela saudade: um retrato 3 x 4 de pegar/ com a mão e sentir/ com o coração.../. Enfim, esses versos revelam ao leitor que esse cardápio nasceu de lembranças da juventude, quem sabe, até da infância longínqua, lembranças da casa dos pais, dos irmãos, de si próprio quando vivia a inocência dos que ignoram as maldades do mundo. Tudo isso parece leve e bem-humorado na poesia de Abel Sidney. Lindo!

   Ensaios literários sobre poetas de Rondônia IV - Gente de Opinião
   Ensaios literários sobre poetas de Rondônia IV - Gente de Opinião

DADOS BIOGRÁFICOS

Abel Sidney nasceu em Apucarana, norte do Paraná, no dia 11 de janeiro de 1964. Quando estava com cinco anos de idade, a família mudou-se para a cidade de Pacaratu, em Minas Gerais; chegou a Rondônia com doze anos. Mais tarde, sua jornada de estudante levou-o a morar em São Paulo e no Rio Janeiro, onde cursou Ciências Sociais e Administração de Empresas na UFRJ e UFF, respectivamente. Em Porto Velho, voltou-se à educação, ao serviço público e à edição de livros. Atualmente, Abel Siney continua à frente da Temática Editora, casa que tem produzido relevantes obras regionais. Além dos poemas, Abel Sidney é autor de vários livros, um deles de contos para crianças e jovens. Abel é membro fundador da Academia Rondoniense de Letras.

* Sandra Castiel é professora de Literatura Brasileira e Língua Portuguesa, com formação na Universidade Santa Úrsula, RJ. Pós Graduada em Língua Portuguesa (SOMLEI, RJ) e em Didática do Ensino Superior, pela Faculdade da Cidade, RJ. Mestre em Educação e Cultura Contemporânea, pela Universidade Estácio de Sá, RJ. Membro Efetivo da Academia de Letras de Rondônia. Escritora de contos e crônicas literárias.

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