Domingo, 21 de março de 2021 - 21h51
“Apenas aqueles que
são muito jovens ou muito ingênuos ignoram que obras de arte, sejam literárias
ou de qualquer outro gênero, não são entidades universais e autônomas, nascidas
do nada ou Nonada (como Guimarães
Rosa inicia sua obra máxima) indiferentes às condições históricas que as
produzem, aos valores das classes sociais que as canonizam e fruem.” (Renato
Rezende- A poesia contemporânea brasileira e sua crítica, Revista virtual
Cronópios).
A
ideia de que a arte literária possui autonomia, no sentido de ser voltada
apenas à beleza e à qualidade da obra, sendo esta livre de
quaisquer propósitos, remonta, grosso modo, à Poética de Aristóteles. Porém,
tal princípio só emergiu e ganhou força a partir da metade do século XVIII. Ao longo do tempo, este pensamento evoluiu ao
conceito de arte pela arte.
É no campo da filosofia
que a ideia da autonomia da arte se começa a delinear na segunda metade do séc.
XVIII, conduzindo, a curto prazo, aos posicionamentos próprios do Romantismo e, a mais longo prazo, à teoria da Arte pela Arte. Baumgarten é
um dos primeiros filósofos a considerar a arte como uma esfera independente da
moral e do próprio prazer, cabendo-lhe o mérito da criação do vocábulo estética em 1750. Kant logo em seguida
aprofundou a questão dizendo que o prazer estético é desinteressado e não visa
outras coisas além de si mesmo, o que encontrou apoio nas ideias de Schelling e Hegel. Em 1804, Benjamin Constant sumarizou o debate
cunhando a expressão "arte pela arte".
Esta teoria propagou-se sobremaneira na França.
Porém, no mesmo país, Théophile Gautier, em prefácio do romance Mademoiselle de Maupin (1835), declara
sua rejeição às finalidades de cunho moral e social para a literatura: arte
pela arte não significa beleza e
utilidade, mas sim beleza e verdade.
A partir de 1860 o conceito de arte pela
arte é relacionado a esteticismo (ênfase à beleza da arte).
No Brasil, a ideia de arte desvinculada de
compromissos morais, sociais e políticos destacou-se no movimento parnasiano,
poética produzida durante o realismo; surge como reação ao sentimentalismo
exacerbado da poesia romântica: a beleza da arte poética deve ser um fim em si
mesmo, ou seja, cabe ao poeta criar beleza. Até que surge o movimento
modernista.
A Semana de Arte Moderna, realizada em São Paulo, no
ano de 1922, consistiu na promoção em nosso país do chamado movimento modernista, um movimento que surge
com força avassaladora; o Modernismo tinha como objetivo romper com o
tradicionalismo que servia de base à produção artística brasileira. Esse
movimento passou por várias fases, porém o pilar que o sustentou (e de certo
modo o perpetuou, na essência) foi a independência e a valorização de nossa
cultura, nas artes.
Antes de adentrarmos no universo da poesia brasileira
contemporânea, consideramos importante esse brevíssimo olhar ao passado, algo
que nos leva à maior compreensão do cenário desta poesia.
Há diversidade de olhares, da parte dos analistas,
sobre a poesia contemporânea brasileira: ela ainda estaria centrada nas
pretensões modernistas?
A diferenciação entre a produção poética contemporânea
e a produção poética modernista, sobretudo quando do surgimento desta, na
primeira metade do século XX, é evidente: enquanto a modernista ansiava por
originalidade, independência e ruptura com a tradição, a contemporânea possui
outros propósitos. Porém, há que se acreditar que esses parâmetros não são
suficientes para delinear a configuração de uma nova Escola.
Do
Modernismo aos dias de hoje, a nossa poesia passou por uma série de mudanças,
algumas efêmeras, outras duradouras, e no caminho percorrido encontram-se, por
exemplo, a Geração de 30, a Geração de 45, a Poesia Práxis, o Concretismo, o
Tropicalismo, a recriação do Sertão por Guimarães Rosa, merecendo destaque a
busca empreendida no sentido de obter-se uma linguagem simples, apoiada no
coloquial e nas coisas triviais (José Geraldo Pires de Melo, Contemporaneidade
e Poesia).
A poesia contemporânea reflete o olhar do homem atual,
um homem que vive em meio à urbe tecnológica, convivendo com a pluralidade de
expectativas impostas pela sobrevivência material e pela sobrevivência
emocional, um mal de seu tempo; seu olhar é a visão de alguém cujo fazer
poético é completamente livre e, com frequência, libertário, tanto no que diz
respeito à temática quanto à forma.
Convivemos com a diversidade no que se refere à
poesia na contemporaneidade; alguns ousam na temática e mantêm a métrica e o
ritmo, como é o caso deste poema de Antônio Cícero, poeta, filósofo e letrista
carioca, que aborda com irreverência a questão da homossexualidade; considero
este poema lindo, a cara da contemporaneidade:
Onda
Conheci-o no Arpoador,
garoto versátil, gostoso,
ladrão, desencaminhador
de sonhos, ninfas e rapsodos.
Contou-me feitos e mentiras
indeslindáveis por demais:
eu todo ouvidos, tatos, vistas,
e pedras, sóis, desejos, mares
E nos chamamos de bacanas
e prometemo-nos a vida:
Comprei-lhe um picolé de manga
e deu-me um beijo de língua
e mergulhei ali à flor
da onda, bêbado de amor.
Comumente nos deparamos com poetas contemporâneos que
diversificam seu fazer poético levando-nos a tradições literárias do passado, seja
na forma do poema, seja no uso de características de determinadas escolas.
José Geraldo Pires de Melo (Contemporaneidade e Poesia), ao citar o soneto Transubstanciação, do poeta mineiro Anderson Braga Horta, ressalta
a forte influência simbolista no referido soneto, aliás, belíssimo. Trata-se de
um poeta da contemporaneidade cujo versejar nos remonta à tradição também na
forma: soneto constituído de versos
decassílabos.
Um dia hei de chorar todo esse pranto,
que arrasará com todas as comportas.
E um mundo de águas más e folhas mortas
escoará, deixando espaço ao canto.
Um dia, imerso em vinho, envolto em
canto,
hei de arrombar estas arcaicas portas
que me confinam nas planícies mortas,
e ascenderei às solidões do espanto.
Galgarei os degraus da etérea altura,
e
acima, acima da terrena vaia,
das amplidões haurindo a linfa pura,
cego de êxtase, e tonto de vertigem,
contemplarei, do alto deste himalaia,
– transfeito em sonho – o vórtice da
origem.
Há que se ressaltar a principal característica do
fazer poético contemporâneo: a diversidade. Com frequência ouvimos a comparação
da poesia contemporânea com a arte do mosaico, arte esta que consiste em reunir
uma gama de pedaços de azulejos das mais variadas estampas, épocas e
procedências, juntá-los de tal modo que surjam novas configurações.
Em Rondônia temos alguns poetas contemporâneos que
retomam aqui e ali características de escolas tradicionais; outros há em cujos
poemas não conseguimos vislumbrar referências a essas escolas.
Cabe ressaltar que este trabalho não tem pretensões
acadêmicas; trata-se de um ensaio literário, portanto, desprovido do cunho e do
rigor acadêmico. Apresentamos aqui apenas alguns poemas de poetas de Rondônia,
conhecidos e não conhecidos dos leitores, dos amantes de poesia: versos que nos
tocam a alma.
MARCUS VINICIUS
DANIN
Marcus Vinicius Danin é autor de uma poesia única!
Sua inspiração é comovente, bem como a construção de belíssimas figuras de estilo,
recursos poéticos que adornam como pequenas flores cada letra de seus versos. Marcus
é um poeta do quotidiano; seu olhar percebe a grandiosidade contida nas coisas
simples da vida, em tudo o que é eterno; a natureza é sua musa maior.
ALMA DE LAGO
minha
alma de lago
se
alaga em algo
que
só no céu há igual
no
amálgama da alga
que
a lágrima salga
no
doce da água
nada
tão desigual
nessas
nuvens que
a
alma galga
o
dia não morre
ele
se incorpora
ao
esplendor lacustre
da
placidez do arrebol!
O
título deste poema remete à serenidade, à mansidão de um lago, eis o que está
subjacente a esta tão bela metáfora, através da qual o sujeito lírico define sua
alma, a natureza de seu ser. Porém, percebe-se certa melancolia na expressão
desse sujeito poético, sentimento este que transparece da subjetividade do
poeta: somente além das nuvens, em um ponto abstrato, o eu lírico pode desnudar
sua alma de águas plácidas e derramá-la em meio às outras, que vivem nesse
ponto celestial? Nesse lugar idealizado pelo eu poético, não existe a morte,
sequer o dia morre; apenas incorpora-se à grandiosidade do crepúsculo.
Este
poema traz várias e belas figuras de linguagem: no título, uma metáfora, alma de
lago; na sequência, hipérbole, exagero
poético intencional: “se alaga em algo que só no céu há igual”, ou seja,
algo tão grandioso que não existe no mundo; segue reportando-nos aos sentidos, sinestesia/ antítese?, “no amálgama da alga que a lágrima salga, no doce da água, nada tão
desigual”; na sequência, temos uma metáfora lindamente construída: “nessas nuvens que a alma
galga”; os últimos versos seguem a mesma linha de construção metafórica; como
um artesão da palavra, alguém familiarizado com sua multiplicidade semântica, o
poeta encerra esse majestoso poema, com a imagem do crepúsculo ao qual o dia
incorpora-se, ou seja, não se trata apenas da ampliação de sentido de um
significado, mas de uma verdadeira tela poética, que permite ao leitor esta
visão mágica.
Alma de lago é um poema contemporâneo; comumente os
poetas contemporâneos não usam esquemas de rimas e de métrica; porém, não
acidentalmente, nos dois primeiros versos temos rimas externas e paralelas (AA)
bem como no quarto e quinto versos, rimas internas e externas; em quatro dos
versos temos rimas internas ou coroadas.
Considero
este uso das rimas e da repetição de palavras, bem como a aliteração em g e l, água, lago, alaga amálgama, alga, galga, recursos poéticos, usados para marcar
o ritmo dos versos; observe que essas palavras são paroxítonas, tonicidade que,
neste caso, imprime aos versos um ritmo
que reporta o leitor ao movimento contínuo e marcado da água, água que invade o
poema e a alma da gente. Lindo!
Selecionamos
para o leitor o poema Pássaro e Flor,
título que, de pronto, nos remete à temática da natureza. Porém os versos de
Marcus trazem um sentido completamente conotativo, é a natureza da pluralidade
literária.
PÁSSARO E FLOR
Ser um
passarinho
despindo tuas manhãs
Alvorecendo
alvoroçado
alvissareiro
Eriçando
tuas pétalas
roçando tuas sépalas
Mitigando
minha
sede
No orvalho
sagrado e
divino
Que a aurora em
tua Inflorescência
aflora
Nesse receptáculo
espetáculo
do belo
Na efemeridade
onde a vida
voa
A grandeza de ser
pássaro
e flor!
Passarinho e flor são na verdade metáforas usadas pelo sujeito lírico
para expressar, poeticamente, o encontro entre homem e mulher: personificação delicada e belíssima
composição, poesia mágica e erótica; através de elementos da natureza, o eu
lírico narra este encontro, “colhido” da subjetividade do poeta.
O
poema é constituído de nove estrofes de três versos (tercetos), todos os versos
são curtos, não acidentalmente; o ritmo reporta-me ao voo e aos movimentos de
um colibri, saltitando aqui e ali. Não há esquema de rimas e de métrica, os
versos são brancos e livres, marca da poesia contemporânea.
Marcus
Vinicius Danin é um poeta cujo olhar é vasto; sua alma sensível enxerga a
poesia contida nas pequenas e grandes coisas da vida, valoriza-as e as eterniza
em versos; é o que veremos neste magnífico poema que certamente toca a alma,
sobretudo dos amantes desta região:
CHEGUEI
Cheguei, trouxe solavanco de estrada
de chão, deslize bucólico de canoa,
balouçar embanzeirado de batelão...
Trouxe mansidão de peixe-boi,
espreito de boiúna, pitiú nas vestes,
tuíra na pele, ferroada de pium...
Trouxe uma fieira de mandi e bico-de-pato,
fiz uma caldeiradinha de fato...
Muito cheiro verde, chicória, farinha
d'água e limão...
Pimenta, odor aguçado, escorrendo
da venta, tucupi
Nada de mágoa, só água que passarinho
não bebe, travo de caju...
Cheguei, do reino das barbatanas, caldos
de cana, beira piscosa de rio, sol e langor
Meus olhos repletos de asas e escamas,
mergulhos de gaivotas, peripécias marotas
de boto, pedras negras, flutuo de flor
Trouxe os pés nus, lama, Calama,
gosma de candiru...
Rio acima, rio abaixo descendo Madeira
Beradeirice e lânguidez que dura a vida inteira...
Cheguei, desbarrancando de amor...
O poema Cheguei
é um hino de amor a sua musa, a Amazônia; o
sujeito lírico está presente na
exaltação de tudo que uma viagem à floresta propicia: solavanco de estrada de
chão, canoa deslizando suavemente na imensidão do (rio) Madeira, batelão
agitando as águas, banzeiros, e alguns dos animais que vivem no rio: peixe-boi, mandi e bico de pato, boto,
candiru.
Este hino de amor à Amazônia traz as
impressões que o eu lírico (narrador da subjetividade do poeta) carrega em si,
na volta do mergulho ao interior da floresta amazônica, algo prazeroso aos
habitantes locais. Através de versos fortes e linguajar caboclo, percebemos a
mata, o rio Madeira, os seres misteriosos de suas águas, os peixes, os insetos
que atacam a pele humana, o cheiro de peixe cru nela entranhado, o trajeto na
estrada de terra e seus solavancos, a refeição que é preparada na volta, os
ingredientes, os temperos... Enfim, tudo
que faz parte do universo dos beradeiros compõe este poema belíssimo, um marco
na poesia amazônida e brasileira sobre esta fascinante e majestosa região.
Há figuras de estilo (linguagem) ricamente construídas ao longo do poema;
destacamos algumas, para comentar: Cheguei, trouxe solavanco de estrada/ de chão,
deslize bucólico de canoa,/ balouçar embanzeirado de batelão.../Trouxe mansidão
de peixe-boi,/ espreito de boiúna, pitiú nas vestes,/tuíra na pele, ferroada de
pium.../ Esses versos nos reportam a um misto de sensações expressas pelo
eu lírico; um ajuntamento de sentidos, que nos remetem à metonímia e à sinestesia;
“Meus olhos repletos de asas e escamas”,
figura de estilo elaborada com mãos de artesão, nesta sinédoque, belíssima: (parte
pelo todo) asas e escamas, para descrever aves e peixes; “Muito cheiro verde, chicória, farinha/d'água e limão.../Pimenta, odor
aguçado, escorrendo da venta, tucupi...”/; figura de linguagem que nos remete aos
sentidos: sinestesia; “peripécias
marotas de boto,”: temos aqui outra figura de linguagem, a personificação, pois o sujeito lírico
atribui comportamento humano ao boto, animal aquático; “Cheguei,
desbarrancando de amor...”. Clímax da expressão poética neste último verso: o eu lírico compara a intensidade de
seu amor pela região, com os barrancos ribeirinhos, desmoronados pelo impacto
da vigorosa força d’água. Realmente, há
que se deter nesse emocionante exagero poético intencional: hipérbole.
Mergulhando mais profundamente na leitura desses
versos, entendemos que esse poema é uma grande metáfora: o eu lírico colheu a essência da floresta amazônica,
depositou-a em um frasco com cheiro de peixe no tucupi e a trouxe consigo. Tudo
isso está impregnado em sua alma.
Cheguei é um poema
completamente modernista-contemporâneo; traz a valorização da brasilidade
contida no sotaque caboclo, na flora, na fauna existente nos caudalosos rios e
na cultura amazônica. Não possui esquema de rimas e métrica, é constituído de
estrofe única.
ORAÇÃO PRA ASAS
Ave Maria
Cheia de
Graça
Protegei
As árvores
Cheias de
Garças...
Jesus menino
Filho da luz
Abençoai
Os sagrados
Ninhais...
Os cabeças-secas
Os colhereiros
Os tuiuiús...
Salvai as
Araras-azuis...
Através da temática deste poema, o sujeito lírico revela a
subjetividade, os sentimentos colhidos da sensibilidade e da alma do poeta;
transparece aqui a religiosidade e o amor infinito pela natureza, a preocupação
com as aves e com os pássaros que habitam as florestas brasileiras e vivem à
mercê da ignorância, do descaso e da crueldade humana, muitos deles ameaçados
de extinção.
Observamos o uso de figuras de linguagem usadas com maestria para
enfatizar a ideia, como no título, Oração
pra Asas. O poema, na verdade é uma prece poética, o título identifica o
tema; logo no título temos uma figura de estilo, a metonímia; aqui, a parte (asas) representa o todo: pássaros; em seguida, nos versos: “Cheia de/ Graça” / “Cheia de Garças...”/
temos o uso da anáfora, a repetição
da palavra Cheia, no início de dois
versos, e de letras ,nas palavras g- a- r- ç –a-s / g- r –a- ç- a-s; no
verso /Filho da luz/, sagrados ninhais /temos metáforas.
Oração Pra
Asas é um poema de estrofe única e versos curtos, estrutura poemática bastante
usada na poesia contemporânea; neste caso, não por modismo ou tradição;
trata-se de um recurso poético para acelerar o ritmo dos versos, assim como no
título: porque não usou oração para asas,
ao invés de Oração pra Asas? Acredito
que isto se deu, também para conferir rapidez ao verso, ao número de sílabas
métricas; tudo reporta o leitor à brevidade do momento em que se vê um pássaro
em pleno voo. O poema não apresenta esquema de rimas nem de métrica: os versos
são quase todos brancos e livres; contudo, observamos alguns aspectos a
ressaltar: a homogeneidade de alguns sons em versos distintos, Graça e Garças, Jesus e luz, tuiuiús e azuis
(nestes dois últimos, rimas ricas com
as quais o poeta encerra esta pérola poética).
Escolhi o poema PROCURO para encerrar a leitura deste ensaio sobre uma amostra da
poesia de Marcus Danin, porque, aqui, deparo-me com verdadeira cortina tecida
num tear de fadas: subjacentes à candidez dos belíssimos versos, quantas
mensagens nesse discurso poético comovente!
PROCURO
Procuro
Olhos de chuva,
espreito de lua,
águas de riacho,
semeadura,
candura, candura
Procuro
Caminhos de aves
Rastros de sonhos,
Epílogo das agruras,
ternura, ternura
Procuro
Janelas de alma,
tempestades de calma
placidez de garça, alvura
brandura, brandur
Procuro
Brilho nas vozes
Estribilho, rebrilho
Solfejos de esperança
Bonança, bonança
Procuro
Faces risonhas
Pés serelepes
Estórias de infância
Criança, criança
Procuro
Palavras gentis, sutis
Acenos de Paz
Homens desarmados
Amados, amados
Procuro
A não violência
Carinho às mulheres
Em todas as idades
Amistosidade,
amistosidade
Procuro
Frestas de florestas,
Asas de arribação
Canções, poesias, amores,
Emoção, coração,
coração...
Observamos um estado de espírito melancólico no eu-lírico, ao longo de
todo este poema; em cada verso, esta melancolia, este desconforto, se faz
presente: há uma busca incessante por algo que parece inatingível no mundo
real, no mundo urbano, no universo agitado e competitivo, onde os homens
(sobre) vivem. A grande busca do eu-lírico tem, como contraponto a este mundo
agressivo, a placidez, a Paz existente na natureza, a alegria e a serenidade contidas
nas pequenas-grandes coisas: candura, ternura, brandura, bonança, criança,
homens desarmados e amados, amistosidade em qualquer idade, a emoção das
canções...
O poema Procuro é constituído de oito quintilhas, estrofes de cinco
versos. A construção de belíssimas figuras de linguagem é a marca da poesia
de Marcus, especialmente quando sua inspiração está associada a elementos da
natureza; no segundo e no terceiro versos, temos “olhos de chuva” / espreito de lua: olhos de chuva teriam o
significado de olhos molhados de sensibilidade, olhos embargados, cujas
lágrimas podem cair a qualquer instante, assim como a chuva, ou esta metáfora reflete apenas a beleza, a
transparência das águas existente nesses olhos? No terceiro verso, outra figura de estilo que revela a “busca” do eu-lírico: “espreito de lua”; nesta, temos um luar tímido, a lua apenas “espreitando”
a escuridão da noite, ou temos a presença escancarada da lua a espreitar, em
meio ao céu estrelado, a vida sob o luar? Em ambas as hipóteses, há personificação.
Na segunda estrofe, mais belas metáforas, “rastros de sonhos”, “epílogo das agruras”; bem
como na estrofe seguinte, segundo,
terceiro e quarto versos: “Janelas de
alma,” “tempestades de calma,”
“placidez de garça”. Na sequência,
quarta estrofe, no segundo e no quarto versos, “Brilho nas vozes “/
“Solfejos de esperança”; essas duas
últimas nos reportam à música, poderíamos dizer que, para alguns leitores,
esses versos soam melodiosos.
Procuro apresenta vários recursos poéticos, possibilidades
que a língua oferece ao escritor, para enfatizar a ideia que o eu-lírico quer expressar
ao longo dos versos; a anáfora é um
desses recursos estilísticos usado neste poema: o título é repetido ao início
de cada estrofe; no último verso de cada estrofe há outra repetição de palavras; quanto maior for o
número de repetições mais intensa será a
percepção da ideia que o sujeito lírico pretende expressar.
Existe a presença
de rimas no poema Procuro:
Na primeira estrofe, quarto e quinto versos, semeadura/candura (DD), rimas paralelas; rimas paralelas também na segunda
estrofe, agruras/ternuras (DD), no
quarto e quinto versos; na terceira estrofe, alma/calma (BB), alvura/brandura
(CC), primeiro e segundo versos e terceiro e quarto versos respectivamente; há
transposição de rimas em (D) da primeira para a segunda estrofe e destas para a
terceira estrofe; na quarta estrofe, temos rimas internas, segundo e terceiro
versos (rimas em B), brilho/estribilho/rebrilho,
e rimas paralelas no quarto e no quinto versos (DD), esperança/bonança; na sexta estrofe, quarto e quinto versos, rimas
paralelas (DD), desarmados/amados; na
última estrofe, há a repetição de
sons no segundo verso, aliteração (frestas/florestas), e rimas cruzadas no
terceiro e no quinto versos, arribação,
emoção, coração (CC).
DADOS
BIOGRÁFICOS
Marcus Mendonça
Danin é amazônida, do estado de Rondônia, nascido em 14.10.1970, às margens do
Rio Madeira, na cidade de Porto Velho. Desde muito cedo teve contato com a
Literatura, incentivado por seu pai, Jornalista e Radialista, amante de arte e
literatura. Começou a escrever aos 15 anos quando residia na cidade de
Cuiabá-MT. Já participou de várias coletâneas e publicou em alguns jornais de
sua cidade natal; é integrante do fecundo grupo Poetas de Indaiatuba e do Mundo, agraciado inúmeras vezes com Menção Honrosa, por suas composições
poéticas. Recentemente foi homenageado com a publicação de vários poemas seus
na conceituada página Lítero-Cultural,
do poeta, escritor e jornalista Selmo Vasconcelos, do Jornal Eletrônico Rondônia ao Vivo. Também é músico,
compositor e coralista. Ainda não possui livros lançados, porém, em fase de
edição. (Texto de autoria do poeta)
ABEL SIDNEY
A poesia de Abel
Sidney é surpreendente: temas que abrangem tanto as inquietações
existenciais do homem de sempre, até as pedras do caminho do homem
contemporâneo; sua poesia nos leva à reflexão, de uma forma informal, leve,
como se o sujeito-lírico estivesse dialogando com o leitor, e isto é incrível! Abel Sidney é, literalmente, um poeta de seu
tempo, independentemente dos temas que inspiram sua produção poética. Penso que
o ser humano possui a mesma essência, não importa o século em que tenha vivido
ou viva; daí as mesmas angústias, os mesmos temores, os mesmos anseios, as
lembranças da infância e da juventude, amores perdidos no tempo, amores
presentes, a consciência da finitude, enfim, muda o universo exterior,
transformam-se os costumes, transforma-se a vida com os avanços da ciência e da
tecnologia, mas a essência humana é imutável. A poesia de Abel nos remete à
vanguarda, tanto na irreverência, quanto na estrutura de alguns de seus poemas.
Todos belíssimos!
EI, PSIU, VAI UM
POEMA AÍ?!
- Sabe,
perdeu-se o encanto e
eu nem sei
mais quem sou...
A escuta, a
auscultação permite
colar o
ouvido direto ao
peito, ao
coração.
- Sei lá,
parece que perdi o
endereço de
mim...
Acolhimento
e cuidado exige
preparo e
nobre disposição.
- Às vezes
penso se não seria
melhor tudo
acabar e eu sumir...
O
insondável, o mistério bate à porta
exigindo a
consulta ao sagrado
humildemente,
em oração.
- Só estou
aqui porque fui obrigado,
pra mim o
problema são eles!
Guia nas
descobertas, meio de alívio
e cura,
base firme de orientação.
- Agradeço
por me contrariar e me
fazer ver o
que eu não
queria
enxergar!
Eis um
poema de gratidão, desses
que valem o
esforço de uma
vida toda,
a confirmar
minha
vocação.
Neste poema, o eu-lírico expressa profundo
sentimento de solidão. Temos um eu-poético angustiado, em busca da própria
identidade; sentimentos que saltam dos versos contundentes, na dor, e leves, na
linguagem, através da construção de belas figuras de linguagem.
Encontramos, aqui, uma metáfora pura: “perdi o endereço de mim”: esta construção poética pode significar:
estou entre estranhos? tornei-me um
deles? e o encantamento? não me reconheço! Na sequência, vemos um sujeito
lírico pessimista com relação ao que percebera, “auscultando” o próprio
coração: “... seria melhor tudo acabar e
eu sumir”; aqui está implícita a ideia de fim (fim de uma relação amorosa,
ou até da própria vida), suavizada pelo eufemismo;
o próximo passo é a consulta ao sagrado, algo que acalma o espírito deste
eu-poético; mais uma metáfora pura:
“Guianas descobertas” (pode
significar que o sagrado, através da oração, trouxe-lhe a compreensão de suas
angústias). O poema termina com a expressão de um sentimento de gratidão, pela
confirmação de seus propósitos na existência, algo ao qual se dedicou ao longo
da vida. Belíssimo poema!
Ei, Psiu,
vai um poema aí? Este poema apresenta estrutura
poemática contemporânea: estrofe única, versos brancos e livres, ou seja, não
há esquema de rimas e os versos são heterométricos; porém, reconheço ritmo
intencional na repetição de palavras terminadas em –ão (aliteração),ao
longo do poema: auscultação, coração, disposição, oração, orientação, gratidão,
vocação, todas com a tonicidade na última sílaba. No título do poema transparece
a marca vanguardista do fazer poético de Abel Sidney: a irreverência. Neste título, o eu- lírico revela-se um
entregador de poesia, ou, talvez, um vendedor de sonhos. Fiquei comovida!
Dentre tantos outros, selecionei este poema, tanto pela temática, quanto
pela forma contemporânea da expressão poética:
EM TEMPO... BREVE
CONFISSÃO
Não vivo nos tempos idos
nas terras de outrora...
Tantos passados, porém,
insistem em me viver!
Vivo neles, ao sabor das
lembranças, parte delas
ternas, sentimentais.
O certo é que me importo
mais com as pessoas
do que elas comigo.
Daí trazê-las, puxá-las
pelo fio da memória,
sem pedir licença.
Num segundo ei-las
de novo nas telas
da recordação.
Gosto
delas, doutros tempos
e
tenho o controle do filme
nas
mãos...
Dou-me
o direito de gostar
daquele
tempo, das pessoas
sem
que elas sequer suspeitem.
Neste outro poema, Em Tempo... Breve Confissão, o
sujeito lírico conduz o leitor ao universo de lembranças que vivem na
subjetividade do poeta: “... passados que
insistem em me viver “, ou seja, a
viver permanentemente em mim; para descrever a intensidade de suas memórias, o
eu-lírico expressou-se através de
figuras de linguagem: “sabor das
lembranças/ parte delas/ ternas,
sentimentais/”: sinestesia
e metonímia; “... me importo mais com as pessoas do que elas
comigo”, comparação; “daí trazê-las, puxá-las/ pelo fio da
memória, catacrese; ...” num segundo ei-las/ de novo nas
telas /da recordação/” : as
lembranças das pessoas do passado vivem
na memória desse eu-poético e,
em um segundo, surgem como se
fossem projetadas em telas, as telas das recordações, metáfora; “e tenho o controle do filme nas mãos...” Interessantíssima
construção metafórica: as
recordações são como um filme, e o
“controle” (aqui, talvez, associado ao objeto controle remoto) dos momentos que
serão exibidos (ou lembrados) está nas mãos do sujeito lírico. “gostar daquele tempo, das pessoas /sem que elas sequer suspeitem”:
aqui a presença de zeugma (gostar
das pessoas).
O poema Em Tempo... Breve
Confissão traz no título, ao exemplo do anterior, um tom
irreverente, marca do autor. Ainda não havia visto a expressão Em Tempo
(expressão esta que se costumava usar depois do final de uma carta manuscrita,
para mencionar algo que não fora dito na carta) em um poema; nas cartas de
outrora, tal expressão era escrita de forma abreviada: E.T. Não por acaso, essa
expressão intitula este poema: o eu-lírico faz um mergulho em terras de
outrora, tempos idos, quando ele próprio escrevia ao pé da carta: Em Tempo.
O fazer poético de Abel Sidney revela
a inquietude, a curiosidade, a urbanidade do homem contemporâneo; ora o
eu-lírico, narrador de sua expressão poética, “define-o” como um vendedor de
sonhos, alguém que distribui poemas aos motoristas nos semáforos das
metrópoles, ora o enxerga como alguém que anseia deixar registros de suas
confissões, mesmo que sejam breves, enquanto há tempo.
Encontro aqui, entre os escritos de Abel, este poema visual: acho lindo!
O poema visual tem a cara da contemporaneidade; nele, há várias
linguagens, estas subjacentes à linguagem poética tradicional: o modo como as
palavras são distribuídas no poema, os vários discursos ali existentes, a
imagem ou imagens que constituem o poema, enfim, uma gama de possibilidades de
leitura e interpretação.
No caso em pauta, temos um poema cujo título é Amar-se Traz Alforria: uma
homenagem à mulher cuja história propiciou a criação da lei Maria da Penha, a
primeira lei brasileira voltada a proteger a mulher da violência doméstica, e a
primeira lei que leva parceiros violentos à cadeia. O título sugere que a
conquista da liberdade plena requer amor próprio, amar-se a si mesma, o que
significa não aceitar imposições de caráter machista; o sujeito lírico usa a
palavra alforria, fazendo uma
analogia entre a liberdade do escravo que conseguia a carta de alforria, e a
libertação da mulher que vive “presa” a uma relação abusiva.
O poema está configurado em três
colunas de versos; os pilares são constituídos de palavras fortes, significantes
que carregam consigo a pluralidade dos significados, quando se trata de
linguagem conotativa, a linguagem poética. Acredito que a leitura seja
vertical, mas nada impede que o leitor faça outros tipos de leitura entre as
colunas que apresentam os versos, ou seja, que busque novos sentidos, formando
frases com palavras de diferentes “colunas”, por exemplo: “cabelos presos,
soltos, cacheados”, etc.
O poema Versões reitera a
modernidade, a informalidade e a irreverência da poesia de Abel Sidney:
VERSÕES
Descobri que
só quero
ser euzinho
mesmo
um pouco mais
melhorado.
Mais pé no
chão, a despeito
dos voos que
a poesia
me permite
sem
muito risco.
Isso inclui
voltar para casa
todos os dias
para curtir a
vidinha bo(b)a que muitos
descobrem
tardiamente...
Bem, se eu
aprender um novo truque,
desses de
melhorar a estética da alma
- de clarear
sorriso e de esquecer mais
rápido as
mágoas, hei de ensiná-lo.
Então é isso!
O título deste poema sugere pluralidade de perfis, pluralidade de
personas, pluralidade de preferências, pluralidade filosóficas, no sentido de
diferentes olhares sobre o mundo e sobre a existência.
Consigo vislumbrar neste poema a expressão de um lírico jovial, leve,
urbano, universitário com a mochila nas costas, usando jeans e camiseta,
calçando tênis, rabiscando versos no celular, enquanto espera o metrô: este
perfil vive e viverá eternamente na alma, na subjetividade deste poeta
interpretada pelo sujeito-lírico.” Só quero ser euzinho mesmo”, ou seja, gosto
de mim como sou, gosto da minha “vidinha”,
(pequena, talvez para outros, para
aqueles que ainda não atingiram a maturidade, não valorizam a vida, o agora!),
mas para mim (lírico) é uma vida boa, não boba,
porque aprendi desde cedo a enxergar a grandiosidade contida nas
pequenas coisas da existência, na rotina do dia a dia, como voltar para casa,
para a convivência com as pessoas que amo, por exemplo.
A partir daí o eu-poético apresenta a capacidade madura de reflexão
também colhida da subjetividade do poeta: no mesmo tom irreverente, o lírico
revela ao leitor sua busca filosófica, uma busca que engrandece a alma e
torna-a mais bela: esquecer as mágoas, de pronto, e sorrir (com um sorriso
claro e bonito) mais amiúde para o próximo; isto não impede que esta bela alma
alce voo (sem risco?) para o infinito, lugar onde vive a poesia. VERSÕES é um
poema contemporâneo, constituído de estrofe única, versos brancos e livres.
Considero deliciosa a leitura do
poema Cardápio Variado:
CARDÁPIO VARIADO
Ao moço,
carne
ao velho,
sopa
à criança,
fruta.
Almoço para
todos?!
Banana da
terra frita
cuscuz com
ovos
suco de açaí.
Para evitar
males sem fim
castanha-do-brasil todos os dias.
Para as dores da saudade
um retrato 3
x 4 de pegar
com a mão e
sentir
com o
coração...
Temática leve e irreverente, marca da poesia de
Abel Sidney, aliás, leitura prazerosa, toque de humor presente na lista desse
cardápio poético: alimentos considerados adequados para as diferentes faixas
etárias. Achei interessante e divertido o modo como o sujeito lírico expressou
as representações sociais do poeta nesse quesito; os costumes, os ensinamentos,
enfim, a tradição no que se refere à alimentação em nosso país, no meio em que
o poeta viveu ou vive. Gostei, sobremaneira, do almoço (para todos) que integra
o cardápio: banana da terra frita
(aqui, conhecemos como banana comprida), cuscuz
com ovos (comida mineira?), suco de
açaí (no Norte, tomamos açaí no prato ou na tigela), este último (suco)
hábito de passado recente. Para garantir males de todas as naturezas, castanha do brasil (do Pará, como chamamos na região).
O item do cardápio que me emocionou e levou-me a
mergulhar nos sentimentos do eu-lírico foi o alimento que cura as dores
provocadas pela saudade: um retrato 3 x 4 de pegar/ com a mão e sentir/ com o
coração.../. Enfim, esses versos revelam ao leitor que esse cardápio nasceu de
lembranças da juventude, quem sabe, até da infância longínqua, lembranças da
casa dos pais, dos irmãos, de si próprio quando vivia a inocência dos que
ignoram as maldades do mundo. Tudo isso parece leve e bem-humorado na poesia de
Abel Sidney. Lindo!
DADOS BIOGRÁFICOS
Abel Sidney nasceu em Apucarana, norte do Paraná, no dia 11 de janeiro
de 1964. Quando estava com cinco anos de idade, a família mudou-se para a
cidade de Pacaratu, em Minas Gerais; chegou a Rondônia com doze anos. Mais
tarde, sua jornada de estudante levou-o a morar em São Paulo e no Rio Janeiro,
onde cursou Ciências Sociais e Administração de Empresas na UFRJ e UFF,
respectivamente. Em Porto Velho, voltou-se à educação, ao serviço público e à
edição de livros. Atualmente, Abel Siney continua à frente da Temática Editora,
casa que tem produzido relevantes obras regionais. Além dos poemas, Abel Sidney
é autor de vários livros, um deles de contos para crianças e jovens. Abel é
membro fundador da Academia Rondoniense de Letras.
* Sandra
Castiel é professora de Literatura Brasileira e Língua Portuguesa, com formação
na Universidade Santa Úrsula, RJ. Pós Graduada em Língua Portuguesa (SOMLEI,
RJ) e em Didática do Ensino Superior, pela Faculdade da Cidade, RJ. Mestre em
Educação e Cultura Contemporânea, pela Universidade Estácio de Sá, RJ. Membro
Efetivo da Academia de Letras de Rondônia. Escritora de contos e crônicas
literárias.
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