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Gente de Opinião

Sandra Castiel

Ensaios Literários sobre Poetas de Rondônia - Parte II


Sandra Castiel - Gente de Opinião
Sandra Castiel

   A proposta deste trabalho é revelar ao público-leitor a beleza da poesia produzida pelos poetas que aqui vivem. Estamos falando sobre pessoas apaixonadas por literatura, pela expressão artística através da escrita. E sabemos que esta expressão torna-se necessária, imperativa mesmo, àqueles cuja arte faz parte de sua humanidade, de seu próprio ser.

Ainda muito jovem, punha-me a pensar nas diferentes formas de arte; como são belas! Então dei-me conta de que a expressão artística que mais me emocionava era a que me chegava à alma através da palavra.

O que diferencia a literatura das outras artes é a matéria -prima com a qual o artista trabalha: a linguagem. Mas não se trata de uma linguagem qualquer; o fazer literário pressupõe escolher cada palavra, trabalhá-la tal qual o joalheiro burila uma pedra preciosa, estudar-lhe a posição no verso, ou na frase, avaliar sua multiplicidade de sentidos, até retratar, através dela, o sentimento que lhe vem à alma. Creio que esse processo é intrínseco à arte de poetizar, sobretudo, seja qual for a forma que tenha o poema.  Mário Quintana define bem o significado dos poemas:  

 

Os poemas

                  Mário Quintana

Os poemas são pássaros que chegam /não se sabe de onde e pousam / no livro que lês. / Quando fechas o livro, eles alçam vôo / como de um alçapão. / Eles não têm pouso/ nem porto / alimentam-se um instante em cada par de mãos /e partem. /E olhas, então, essas tuas mãos vazias, / no maravilhoso espanto de saberes / que o alimento deles já estava em ti...

 

Neste despretensioso Ensaio Literário, apresentaremos alguns poemas de Gesson Alvares Magalhães, um mestre, nome reconhecido por gerações de alunos e professores e pelo meio acadêmico.

Gesson é um poeta clássico, um homem apaixonado pelas letras, com as quais é bastante familiarizado. O fazer poético de Gesson é ricamente elaborado; observa-se o cuidado com as estrofes, com a metrificação dos versos, com as rimas, com a tonicidade das sílabas.

No livro Amor Eterno, todos os versos do poeta têm como tema sua musa inspiradora, o grande amor de sua vida, sua esposa, Ivete.

Gesson é um artista que, através da poesia, expressa de forma singela seus sentimentos mais puros. Gesson desnuda a própria alma na expressão do eu lírico; a lírica amorosa é a tônica de seus poemas nesta obra. Destacamos o poema Ontem e Hoje.

 

ONTEM E HOJE

 

Eras a virgem mais bonita e pura / Que havia no colégio; Eras tão linda, /

Que ao ver-te a vez primeira, fiz a jura / De dedicar-te uma afeição infinda. /

 

Amaste-me também, e a estrutura / Do amor que ali nasceu perdura ainda. /

Depois de trinta anos de ventura, / Tua beleza me é sempre bem-vinda. /

 

Hoje, nossos cabelos estão brancos, / Já sofremos da vida os duros trancos, /

Já temos filhos, netos e uma neta. /

 

Não és mais a mocinha bela e doce, / Mas para mim, é tal qual se ainda fosse /

Aquela Musa que me fez poeta. /

 

O fazer poético de Gesson é diversificado; porém a forma de poema que prevalece em seu trabalho é o soneto. O poema Ontem e Hoje apresenta quatro estrofes isométricas, formadas por versos decassílabos estruturados em duas quadras (ou quartetos) e dois tercetos, constituindo-se de catorze versos: esta é a característica que distingue o soneto, poema tradicionalmente de forma fixa.  

Nas duas quadras, encontramos rimas alternadas (ABAB). Do ponto de vista morfológico, as rimas da primeira quadra, pura/jura (adjetivo e substantivo), linda/infinda (adjetivo e adjetivo) são rimas ricas e pobres respectivamente; na segunda quadra, temos rimas pobres e ricas estrutura/ventura (substantivo e substantivo); ainda/benvinda (advérbio e adjetivo). Todas as rimas apresentadas são rimas chamadas graves ou femininas, assim denominadas, quando as palavras, de acordo com a acentuação tônica, são paroxítonas.

No primeiro terceto, encontramos rimas emparelhadas e ricas (CCD) brancos/trancos (adjetivo e substantivo). O mesmo ocorre no segundo terceto, rimas emparelhadas e ricas (EED), doce/fosse (adjetivo e verbo). Há transposição de rima do primeiro ao segundo terceto; neste caso, temos rima interpolada em D.

No poema ONTEM E HOJE, observa-se o rigor métrico, rítmico e rimático, características do soneto clássico.

A temática do soneto  ONTEM E HOJE está evidente na primeira quadra:  o amor profundo que a musa desperta no poeta, desde que este  a vê, vez primeira,  na adolescência. E segue, desenvolvendo o tema, na segunda quadra.

Nas duas últimas estrofes (tercetos), temos a conclusão  da ideia inicial: o tempo (trinta anos) e as dificuldades da vida não diminuíram o sentimento de ambos;  o amor perpetuou-se, deu frutos, e  o poeta expressa e reitera a grandiosidade desse amor pela mulher amada. No último verso, a chave de ouro.  A história de amor do poeta com sua amada está plenamente contida em catorze versos. Lindo!

Destaco neste espaço quão rica é a obra literária de Gesson Alvares Magalhães. No soneto ONTEM E HOJE, o poeta nos encanta com sua lírica amorosa, versos que expressam com maestria sua subjetividade, seus sentimentos mais puros. Porém, somos surpreendida por outra habilidade de Gesson, habilidade e talento evidentes no livro PARÓDIAS & PERFIS, publicado este em passado recente (2019).

O livro foi ordenado em duas partes distintas: a primeira apresenta  paródias de poemas clássicos da língua portuguesa; a segunda, apresenta perfis; este último trata de  pessoas, familiares, tipos, coisas, livros, eventos, enfim, pluralidade de  pessoas, objetos e acontecimentos que fazem parte da vida e inspiraram o autor: há que se ler para que se possa ter a dimensão do múltiplo talento e da perspicácia de Gesson, de seu aguçado senso de observação da realidade e de sua elevada capacidade de análise crítica. Esses aspectos são imprescindíveis sobretudo à paródia; no caso específico da literatura, este gênero se constitui em um recurso da intertextualidade, ou seja, o autor descontrói um texto já existente (normalmente clássico bastante conhecido) e o reescreve, respeitando-lhe a estrutura, porém modificando-o sob à sua ótica.  Cabe mencionar que, falar sobre paródia, leva-me, de pronto, à sátira.  

Fazem parte da sátira: zombaria, escárnio, achincalho, malícia, ridicularização, crítica, enfim, tudo isso existe nos poemas satíricos de Gregório de Matos, poeta brasileiro (1636-1696) que difundiu este gênero de poesia.   No rastro da sátira (e com ela de mãos dadas), surge a paródia.

Destacamos do livro Paródias & Perfis, de Gesson Alvares Magalhães, um dos sonetos de Raimundo Correia, importante poeta da literatura brasileira, que formou com Alberto de Oliveira e Olavo Bilac a famosa Tríade Parnasiana. Apresentaremos, na sequência, a paródia de autoria de Gesson Alvares Magalhães.

 

 

Mal secreto

                                             Raimundo Correia

 Se a cólera que espuma, a dor que mora / N’alma e destrói cada ilusão que nasce;/ Tudo o que punge, tudo o que devora / O coração, no rosto se estampasse; /

Se se pudesse o espírito que chora / Ver através da máscara da face, / Quanta gente talvez que inveja agora / Nos causa, então, piedade nos causasse! /

Quanta gente que ri, talvez consigo /Guarda um atroz, recôndito inimigo / Como invisível chaga cancerosa! /

Quanta gente que ri, talvez existe, / Cuja ventura única consiste / Em parecer aos outros, venturosa! /

 

O tema do soneto Mal secreto, de Raimundo Correia, trata da verdade oculta que mora no recôndito d’alma de cada ser humano; quantas dores ou aflições as pessoas carregam consigo, sem deixar que esses males ou outras emoções lhes transpareçam na face? Como desvelar os verdadeiros sentimentos que estão no coração do outro, se este usa sempre uma máscara de felicidade? Ou seja, quais as chagas que vivem escondidas por detrás dessa usual aparência? O poeta conclui seu pensamento no último terceto: há pessoas cuja única felicidade (ventura) é aparentar aos outros que é de fato feliz.    

O tema deste clássico da literatura brasileira inspirou nosso poeta Gesson Alvares Magalhães a compor uma de suas paródias. Assim, destacamos Mal concreto.

 

 

     MAL concreto

                                                                          Gesson Alvares Magalhães

           

Se corrupção, mentira, safadeza, / E qualquer outro que não foi citado, / Tudo o que atinge, “quase” com certeza, / Prefeito, Senador ou Deputado. /

Se se pudesse colocar na mesa, / O caráter do “privilegiado”, / Quanta sujeira a exigir limpeza, / E quanto podre a ser extirpado! /

Quando chega o período da eleição, / Quantos se mostram como a salvação, / proclamando a maior honestidade.../

Mas depois, no exercício do mandato, / Demonstram-se piores do que rato; / Fraudam o povo e faltam com a verdade. /

 

Este soneto de Gesson Alvares Magalhães reporta-nos de imediato à poesia satírica. A sátira literária pode estar presente na paródia, através da crítica, da ridicularização, do achincalho.

A paródia de Gesson começa subvertendo o título do soneto de Raimundo Correia: Mal secreto (um mal que reporta a sentimentos ocultos, ao que está por trás das aparências e refere-se ao ser humano de modo geral). Gesson o parodia com Mal concreto, ou seja, o Mal é evidente e sabemos onde ele está “quase” com certeza. Nesta paródia, há crítica escancarada, escárnio, achincalho, ridicularização e ironia (vide título); o humor faz parte da essência da paródia.

O fio condutor do poema original (Mal secreto), evidentemente parodiado, está presente ao longo de todo o soneto de Gesson: na apresentação do tema, no desenvolvimento e na conclusão. O último verso encerra o soneto-paródia com chave de ouro: Fraudam o povo e faltam com a verdade.

A estrutura poemática do soneto de Raimundo Correia foi mantida pelo autor de Mal concreto; a paródia de Gesson utiliza figuras de linguagem presentes no soneto de Raimundo Correia: anáfora, antítese, metáfora.

A segunda parte do livro de Gesson Alvares Magalhães é constituída do que o autor denomina Perfis (Pessoas, Familiares, Tipos, Coisas, Livros e Eventos).  Considerei oportuno destacar, entre tão belos poemas, o Perfil de um Soneto, talvez por uma questão de veneração literária.

 

Perfil de um Soneto

                                                           Gesson Alvares Magalhães

 

Leia estes versos, bem devagarinho, / Sem ver a forma, sem olhar a rima, / São versos feitos com muito carinho, / Só para conquistar a sua estima. /

 

Leia...Não pare! Siga este caminho, /Embora, pra você, ladeira acima, / Chegando ao topo, haverá outro clima, / E então verá, que não há tanto espinho. /

Catorze versos só, nos quais, com jeito, / Procuro dizer tudo o que eu quero, / Num esforço para tudo ser perfeito. /

 

Em duas quadras e mais dois tercetos, / Eis, de você, o que mais eu espero: /Que aprenda, assim, a gostar de sonetos. /

 

O tema do poema é óbvio, pelo título. Na apresentação, o poeta convida o leitor, provavelmente refere-se a um leitor que não está habituado a esta estrutura poemática, à leitura do poema; como recusar um convite feito tão amorosamente? Porém, se a tarefa for árdua “ladeira acima”, cansativa, que não desista, pois, ao chegar ao topo, aí sim, encontrará um clima ameno, ou seja, atingirá a compreensão plena do poema, as dificuldades iniciais da linguagem poética ficarão para trás, são os espinhos, e o leitor finalmente aprenderá a gostar de sonetos, a magia que acontece em apenas catorze versos, distribuídos em dois quartetos e dois tercetos. Lindo! 

Este soneto apresenta o seguinte esquema de rimas nos quartetos e nos tercetos respectivamente: ABAB (rimas alternadas), ABBA (rimas interpoladas e emparelhadas), CDC (alternadas), CDC (alternadas). Na primeira quadra, há rimas ricas, devagarinho/carinho (advérbio e substantivo) e rimas pobres rima/estima (substantivo e substantivo); na segunda quadra, há rimas pobres, caminho/espinho (substantivo e substantivo) e rimas ricas, acima/ clima (advérbio e substantivo. Nos tercetos, há rimas ricas, jeito / perfeito (substantivo e adjetivo) e pobres, tercetos / sonetos (substantivo e substantivo). O poeta demonstrou sua maestria e familiaridade com este gênero de poesia, ao combinar três rimas, transpondo-as do primeiro ao segundo terceto.

 

Da segunda parte do livro, Perfis, no quesito Pessoas, destacamos outro soneto, este satírico, para demonstrar ao leitor a versatilidade do talento de Gesson Alvares Magalhães. O poeta utilizou algarismos romanos para identificar os poemas no que se refere a Perfis.

 

IV

 

Arrogante, vaidoso, prepotente, / De verborreia fluente e rebuscada, / A pose de jurista “inteligente”, / Que fala, fala, mas nunca diz nada. /

 

Com seu falar enganou muita gente, / Da política fez a sua estrada, / Chegou a Senador, como suplente, / Depois, eleito, fez sua escalada. /

 

É que, com muito poucas exceções, / Políticos comparam-se a feijões: / Se postos n’água, todos, por inteiro, /

 

O que não presta, o chocho, o vagabundo, / Flutua, sobe, enquanto, lá no fundo,/ Só fica o bom, o cheio, o verdadeiro./

 

Este soneto impecável, decassílabo, com rimas alternadas nas duas quadras, ABAB; rimas emparelhadas nos dois tercetos, CCD, EED, e transposição de rima (interpolada) em D, do primeiro ao segundo terceto, eterniza a crítica do poeta à arrogância, à enganação e à escalada social dos políticos que integram o parlamento brasileiro. Através da descrição de um deles, o poeta utiliza uma metáfora, para conduzir o leitor à realidade: todos os políticos, com raras exceções, são como feijões na água: os que flutuam (os imprestáveis) são os que galgam elevados postos, funções relevantes na sociedade; porém, aqueles que são verdadeiramente úteis à nação permanecem na base da pirâmide social. Há que se ressaltar e enaltecer esta bela crítica social feita pelo autor. Cabe lembrar que um soneto desse nível pode provocar no leitor importantes mudanças em seu olhar sobre o panorama social e político de seu país, de seu estado, de seu município.   

  DADOS SOBRE O AUTOR:

Ensaios Literários sobre Poetas de Rondônia -  Parte II - Gente de Opinião

Gesson Alvares Magalhães nasceu em Santana dos Brejos, estado da Bahia, em 12 de outubro de 1934. Graduado em Língua Portuguesa, pela Faculdade de Ciências e Letras de Jandaia do Sul, no Paraná, possui cursos de Pós-Graduação, realizados na PUC – Belo Horizonte e UNIR – Rondônia, respectivamente.

Em Rondônia, além de professor universitário e Assessor Parlamentar na Assembleia Legislativa de Rondônia, onde ocupou cargos de grande relevância, exerceu outras funções de destaque no serviço público estadual.

Gesson Alvares Magalhães é Membro Fundador da Academia de Letras de Rondônia, escritor, poeta, professor de Língua Portuguesa. Vive em Rondônia desde a década de 1980.

 

A POESIA DE JÚLIA TRINDADE

 

 

Destaco a poesia de Júlia Trindade pela forma moderna, com traços de contemporaneidade, através da qual se expressa. No fazer poético da autora, há predominância da lírica amorosa: quanto sentimento contido nos versos livres e brancos de Júlia!

Existem conceitos simplistas sobre a literatura brasileira contemporânea, destacando-a sob uma perspectiva meramente cronológica. Certamente a literatura brasileira contemporânea carrega em seu bojo um conjunto de várias escolas literárias; esta característica transparece em contos, crônicas, poemas e romances. Porém, há que se ressaltar que existem alguns aspectos, além da forma e do conteúdo, que identificam a contemporaneidade nas produções artísticas. O filósofo italiano Giorgio Agamben (O que é contemporâneo e outros ensaios, Argos, 2009) centra sua opinião sobre o tema em dois pilares: dissociação e anacronismo.

A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela.

A poética de Júlia é inspirada no passado, em suas vivências; isto fica bastante claro ao longo de seu fazer poético, como se o eu lírico afirmasse: Meu ser é o conjunto de todas essas vivências! Não obstante as lembranças, há a presença da reflexão do ponto de vista da mulher madura, que vive seu próprio tempo, e do olhar analítico e poético sobre sua vida, seus amores, suas paixões, suas alegrias, suas decepções, seu sentimento de abandono; e isto significa uma dissociação, um corte entre passado e presente. Ao mesmo tempo em que se reporta ao passado, o sujeito lírico toma distância dele.

Júlia lançou apenas um livro de poesias:  Canto... por enquanto canto. Porém, sua produção literária é vasta, continua escrevendo poemas, contos e crônicas.

Coletamos deste seu primeiro livro de poesia alguns poemas, dentre tantos que nos enlevaram a alma:

 

 

 

Febre

                                                                                   Júlia Trindade

 

Primeira estrofe:  Hoje eu pensei /naquele meu vestido verde, /no moço de rosto afogueado, / no som do bolero num fim de ano. / Eu tinha febre e dançava. / A cabeça doía, /mas me esquecia da dor nos braços dele. /

 

Segunda estrofe: Quando ele saiu do meu mundo / com outra vestida de noiva, / fiz um piquenique / comi “hamburger” com lágrimas, / bebi “cuba libre” como veneno. /

 

Terceira estrofe:  Ah! O reencontro... / Sua cabeça baixa, / seu crespo cabelo louro, / o banho no regato... / E eu rindo, rindo, / dele, do vestido verde, / do bolero num fim de ano, / da noiva, da febre que afundavam.

 

Este poema transporta literalmente o leitor ao cenário bordado por Júlia, através de seus lindos versos: homem e mulher, jovens, ela em seu belo vestido verde, rostos colados, corpos unidos, tudo isso em meio à penumbra de um salão e ao som de um bolero. Pura magia!

O eu lírico faz-se presente na expressão do sentimento de dor, dor esta física e emocional, de mágoa contida, do grande amor que salta dos versos. A autora construiu metáforas, remetendo ao contemporâneo e ao antigo:  comi hamburger com lágrimas, bebi cuba libre como veneno; este é outro traço da contemporaneidade de Júlia. A estrutura poemática de Febre é constituída de três estrofes: a primeira com sete versos; a segunda com cinco versos e a terceira com oito versos: versos livres e brancos. Na última estrofe, a conclusão: anáfora na repetição das palavras (rindo, rindo) para enfatizar o tom da melancólica ironia com a qual Júlia encerra seu poema. Lindo!

Na sequência, do livro Canto... por enquanto canto, destacamos o poema Clamor, poema este que, de pronto, nos remete ao sentimentalismo exacerbado dos poetas românticos. É uma composição poética que trata de um clamor infinito, pela volta do amado, ao mesmo tempo que expressa um misto de saudade, tristeza e desilusão. Clamor é constituído de quatro estrofes, e, de certa forma, eu o considero quase minimalista: como um poema com estrutura tão “frágil” pode conter tema e versos tão fortes? Percebe-se a delicadeza feminina nesta composição de Júlia Trindade; apesar do tema, forte, o clamor ao amado é feito em versos curtos e delicados. Na primeira estrofe, temos dois versos; na segunda, temos três versos; na terceira, cinco versos; na quarta, apenas um verso.

Clamor

 

Primeira estrofe: Ah! Amado meu, /encontra o caminho de volta! /

 

Segunda estrofe: Retrocede o tempo / Ao dia de tua despedida / e deixa tudo continuar como dantes! /

 

Terceira estrofe:  Ah! Amado meu, / me traz de volta o teu sorriso, /a tua ternura, / tua presença forte, / o teu amor! /

 

Quarta estrofe: Traz de volta a minha vida! /

O poema Clamor transborda sentimentos doridos, sentimentos estes que apresentam traços dos poemas da segunda geração do Romantismo. A autora utilizou recursos de figuras de linguagem, para enfatizar a veemência com a qual o sujeito lírico clama pela volta do amado. Encontramos repetição (anáfora, aliás, belíssima) no primeiro verso da primeira estrofe e no primeiro verso da terceira estrofe: Ah! Amado meu; encontramos repetição de sons (aliteração em d) na segunda estrofe: dia, despedida, deixa, dantes; na terceira estrofe, aliteração em t: traz, teu, tua, ternura, tua. A autora prossegue, no verso final, com aliteração em t: traz, e em v: volta, vida; esta última bastante sugestiva, enfatizando a veemência da declaração poética: sem você, não há vida! 

 O poema que selecionamos, na sequência, é uma demonstração da contemporaneidade na poesia de Júlia:

 

Codificação

Para não mais entrares/ em minha vida, / vou me codificar. / Quero te ver sofrer / por não decifrares / minha senha. /

 

O texto por si só remete o leitor à modernidade da tecnologia: a senha é comumente usada para que se possa acessar determinado arquivo, informações, coisas do gênero; através desta metáfora, em apenas seis versos curtos, a autora nos conduz à conclusão da relação de amor que inspirou o poema.

Como é de seu estilo, Júlia utiliza a leveza da linguagem coloquial-criativa, versos livres e brancos, aliás, simples e belos como água cristalina.

 

Conceito

Primeira estrofe: Conheço tua manha, / tua sanha, tua trama. /

 

Segunda estrofe: Conheço teu jeito, / teu feito, teu leito. /

 

Terceira estrofe: Conheço teu enredo, / teu medo, teu segredo. /

 

Quarta estrofe: Só não conheço teu coração! /

 

Destacamos este poema, porque, além da beleza do conteúdo, ele apresenta um diferencial: a presença de rimas; nas duas primeiras estrofes, rimas encadeadas, ou seja, as palavras que rimam se situam no fim de um verso e no início de outro: manha/sanha; jeito/feito; enredo/medo; ainda na segunda estrofe, há rimas emparelhadas, jeito/leito.

Para conferir força aos versos e relacioná-los ao título (Conceito), a autora utilizou a mesma palavra para começar o primeiro verso das três estrofes, compostas estas de dois versos cada uma; isto é um recurso estilístico denominado anáfora:    Conheço tua manha, / Conheço teu jeito, / Conheço teu enredo, /. A última estrofe é constituída de apenas um verso.

 

  DADOS SOBRE A AUTORA: 

Ensaios Literários sobre Poetas de Rondônia -  Parte II - Gente de Opinião

Júlia Trindade nasceu em Manaus- AM. Seus pais, amazonenses, radicaram-se em Porto Velho no ano de 1959. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Amazonas, Júlia tornou-se Auditora Fiscal do Governo do Estado de Rondônia, tendo ocupado, ao longo de trinta e cinco anos, várias funções de destaque nessa área. Júlia, hoje aposentada, vive em Porto Velho, onde continua a produzir sua literatura.   

 

Sandra Castiel: Professora de Literatura Brasileira e Língua Portuguesa, Pós- Graduada nas duas áreas de atuação, Mestre em Educação e Cultura Contemporânea. Membro efetivo da Academia de Letras de Rondônia.

 

 

 

 

 

 

 

 

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