Sábado, 29 de outubro de 2011 - 12h22
Algumas lembranças da infância e da juventude tornam-se mais ricas quando se chega ao outono da vida. No meu caso, vivencio de novo o burburinho da família grande na casa antiga e espaçosa da Rua Afonso Pena, o movimento dos pratos fumegantes à mesa do jantar, as grandes cirandas na rua à luz do luar, as aulas no grupo escolar... O grupo escolar! ... Este, sem dúvida, é o campeão no item de minhas lembranças.
De manhã cedo, lá íamos nós para a escola, de azul e branco, carregando pasta e merendeira, seguindo a pé um caminho aberto no meio da mata nativa, pois assim eram as ruas em Porto Velho. No trajeto, brincávamos com o mato rasteiro cuja folha, orvalhada, se fechava ao mais leve toque: mari-a-fe-cha-por-ta-que-teu pai-mor-reu!
No grupo escolar, o sino era disciplinador. Todos se reuniam no pátio. Cada professora organizava sua turma na fila e fazia-se um silêncio sepulcral. Era hora do hino. Na sala de aula, os alunos postavam-se ao lado das respectivas carteiras de madeira, esperando autorização da professora para sentar, o que acontecia apenas depois da oração. Vivia-se um tempo em que a professora era quase santificada. Aliás, ouvíamos com frequência que a mestra era nossa segunda mãe, daí o respeito absoluto, inquestionável às crianças da época, que, àquele tempo, veneravam a figura materna.
Lembro-me do material escolar: três cadernos Bandeirantes (brochuras que apresentavam, na contracapa, o Hino Nacional, o Hino da Independência ou o Hino da Bandeira), uma caixa de lápis de cor com seis lápis grandes, uma borracha e dois lápis nº 1. Ainda havia o caderno de desenho, item importantíssimo, pelo menos para a criança que eu fui - uma criança metida a desenhar, porém com única inspiração: um céu estrelado, uma árvore com passarinhos e um jardim florido. Algumas escolas também forneciam o caderno de caligrafia, pois ter boa letra era fundamental. Contudo, o objeto de maior relevância de toda a lista era, sem dúvida alguma, o livro de leitura.
Meu Tesouro. Este era o nome do livro que recebíamos anualmente. A chegada do livro ao grupo escolar era esperada com ansiedade. A professora o entregava, e nós, as crianças, tratávamos de observar-lhe todos os detalhes.
Vivendo em uma cidade isolada das grandes capitais do país, sem televisão e sem telefone, ter um livro nas mãos representava tornar-se guardiã de uma verdadeira relíquia. Em casa, completamente seduzidas pelo Meu Tesouro, levávamos horas - minhas irmãs, as amiguinhas da vizinhança e eu - devorando os textos ali compilados para a escola primária da época. Havia prosa e verso. Os textos em prosa comumente referiam-se a figuras históricas. Lembro-me do que contava a história de Sóror Joana Angélica, religiosa brasileira assassinada por um soldado cujo pelotão tentava invadir o convento onde ela era diretora. “- Para trás, vândalos!” - gritara com voz enérgica a Sóror. - “Respeitai a casa de Deus! Antes de conseguirdes vossos infames desígnios, passareis sobre o meu cadáver!”- Estas foram as suas últimas palavras, antes de tombar, ensanguentada, com um golpe certeiro de baioneta que lhe atravessou o frágil peito.
O ato sanguinolento da morte de Sóror Joana Angélica povoou muito tempo meus pesadelos e minha imaginação infantil, tanto que, em casa, vivíamos representando a cena num teatrinho improvisado, ocasião em que colocávamos um lençol na cabeça para viver a freira.
Outros textos contidos no Meu Tesouro também marcaram minha infância. Porém, nada foi mais impactante em minha vida escolar do que os versos de Olavo Bilac. Alguns ficaram na memória para sempre:
Tal como a chuva caída/ Fecunda a terra no estio/Para fecundar a vida/O trabalho se criou/ Feliz quem pode orgulhoso/ Dizer: nunca fui vadio/ E se hoje sou venturoso/ Devo ao trabalho o que sou.
Certamente tais versos produziam um efeito educativo nas crianças, numa época em que não se tinha vergonha de educá-las, seja na escola ou em casa.
Ouvimos nos cursos de Letras que não deve a literatura para criança ser explicitamente educativa, trazer lições de moral, posto que é arte e, como tal, tem obrigação de ser sutil, sem induções. Será que os teóricos não esqueceram de que crianças são apenas crianças e precisam ser educadas? Talvez isto sim signifique respeitá-las.
Como nos fazia bem o poema Ave Maria, de Olavo Bilac, que líamos diariamente, aos nove anos de idade, no Meu Tesouro...
Meu filho! Termina o dia/ A primeira estrela brilha/ Procura a tua cartilha/ E reza a Ave Maria /... Hoje pratiquei o bem/Não tive um dia vazio/Trabalhei/Não fui vadio/E não fiz mal a ninguém
Olavo Bilac escreveu uma série de poemas para a infância. Tratou, inclusive, do respeito aos animais, com seu Pássaro Cativo, em um tempo que não havia a mínima consciência ecológica, não se falava em meio-ambiente ou em preservação de flora e fauna.
Uma amiga de minhas irmãs maiores, que se chamava Dorinha, não perdia a oportunidade de recitar, com seu fortíssimo sotaque nordestino - a família dela era proveniente daquela maravilhosa região -, o Pássaro Cativo, evidentemente, descoberto no Meu Tesouro. Em plena festinha de aniversário, todos paravam para ouvi-la declamar, compenetrada, fazendo movimentos com ambas as mãos:
Armas num galho de árvore um alçapão/ E em breve, uma avezinha descuidada/ Batendo as asas cai na escravidão...
Quando adulta, o poeta de minha infância foi-me revelado como um dos parnasianos mais duramente criticados pelos modernistas de 22. Críticas ardorosas e oposição acirrada do movimento modernista ao parnasianismo acabaram provocando uma espécie de aversão do leitor brasileiro aos poetas desse período. Uma pena...
Hoje, tanto tempo depois, percebo que aprendi muito mais com Meu Tesouro e com Olavo Bilac, nos singelos anos do Barão do Solimões, do que com os densos volumes que percorri ao longo da vida.
A propósito, o material que recebíamos na escola trazia também uma tabuada. Era tempo de se estudar...
Fonte: Fonte: Sandra Castiel - sandracastiell@gmail.com
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