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Gente de Opinião

Sandra Castiel

Pistas Sutis


Pistas Sutis  - Gente de Opinião

     Pistas Sutis é o novo livro do escritor e poeta Viriato Moura, escritor cuja produção literária apresenta, a cada obra, uma estética de “vanguarda”, no sentido literal da palavra, algo além dos movimentos vanguardistas europeus que influenciaram o fazer literário em todo o mundo. 

    A leitura de Pistas Sutis, obra constituída de nanocontos (contos minimalistas), proporciona uma incrível viagem para dentro do ser, espécie de mergulho na realidade contundente da própria subjetividade, reconhece-se nas “pistas” que podem trazer à tona sensações, expectativas frustradas, decepções, amarguras, desgastes, enfim, tudo o que está subjacente ao “faz de conta”, às múltiplas máscaras que encobrem o universo  interior de cada ser humano, propiciando ao leitor o difícil encontro com verdades ocultas que vivem nas profundezas de sua alma.  Selecionei alguns nanacontos de PISTAS SUTIS, para comentar:  

 

ATESTADO

Morreu, mas, desta vez,

morreu de verdade.

 

Minha leitura: viver é respirar, levantar de manhã, caminhar, comer, dormir, trabalhar, enfim, cumprir a rotina de todo dia, sem amor, sem poesia, sem paixão, sem tórridos beijos, sem cálidos abraços, sem cumplicidade, sem troca, sem expectativas, sem motivações? Certamente este é um exemplo de alma morta. Quantas vezes já morri (e tantas outras pessoas já morreram) por ausências, comoções, desgostos (coisas assim) ao longo da vida? Impossível mensurar. Porém, a morte só é declarada quando o cartório atesta o óbito.   

 

 

GOZADOR

 

Fazia seus fantasmas

morrerem de rir.

 

Minha leitura: vivências dolorosas do passado habitam definitivamente na mente humana. Neste conto, os personagens criados pelo autor, além do principal, são os fantasmas; neste universo tenebroso, os fantasmas personificam chagas antigas que não cicatrizam; lembranças que machucam desde a infância: mortes, humilhações, arrependimentos, frustrações, perdas, descaminhos, palavras não ditas, coisas assim. Enfim, o conto revela a subjetividade de um sujeito que dialoga com os próprios fantasmas.  Este sujeito apresenta-se ao leitor através do título do conto: Gozador. O gozador seria alguém perseguido pelos fantasmas que moram nas profundezas de sua mente, ou o gozador teria se tornado um piadista da própria vida, ante as amarguras pretéritas? Fico com as duas hipóteses.  Esta leitura não busca traduzir o sentimento literal do autor, não é isto que se busca; porém há pistas de cunho subjetivo, através da atitude dos personagens. A literatura nos proporciona um olhar particular à obra artística: “... É preciso ir além do que o texto diz e como diz” (Vizibelli, 2017).  Para mim, neste contexto, o sentido do título é uma ironia, uma metáfora; o passado ainda incomoda o personagem e provoca risos em seus fantasmas; sinto uma conotação de deboche pela “derrota” do sujeito; demonstração de que os fantasmas estão ali e continuarão no mesmo lugar   para sempre.  

 

IMAGEM

 

Exímio pintor de retratos, menos

do seu, que nunca parecia com ele.

 

Minha leitura:  neste conto, temos a expressão explícita do sentimento do personagem (o pintor), aliás expressão da subjetividade do autor, esta presente no próprio título. Por que o exímio pintor de retratos não consegue identificação com o retrato que faz de si mesmo? Seria a imagem traçada na tela a de um rosto idealizado, por isto não a reconhece como a reprodução de seu rosto, ou seria o autorretrato uma espécie de espelho onde o sujeito enxergaria o próprio eu? Em ambos os casos, o personagem receia e evita confrontar-se com a própria imagem, com o dito eu. Afinal, confrontos podem causar feridas...    

 

ESCURO  

  

A luz que tanto almejava, apagou-o. 

  

Minha leitura: através de apenas duas orações, este conto contém algumas das mais fortes angústias do homem moderno, o homem do século XXI. No mundo em que vivemos, educamos meninos e meninas (estas recém-abrangidas neste conceito), para tornarem-se vencedores, aqueles que conseguem chegar ao topo da pirâmide social; a sociedade nos impõe que eduquemos nossos filhos para fazerem-se admirados, reconhecidos pela mesma sociedade, alvo dos holofotes, onde quer que vivam. Só que este mundo que conhecemos distancia-se cada vez mais da razão da vida propriamente dita; estariam nossos cérebros originalmente preparados para tantas opções, tantas buscas, tantas maneiras de viver? Noutro dia ouvi que tudo que existe na natureza tem uma finalidade; a finalidade do sol é manter a vida no planeta, por exemplo, por isto ele nasce todos os dias e não uma vez ou outra; a finalidade de uma laranjeira é dar laranjas e não maçãs, bananas etc. Enfim, tudo que é natural está na Terra com um único propósito, e tal conceito se aplica, evidentemente, a cada um dos animais. Isto me faz pensar que o animal mais inteligente do planeta desconhece sua finalidade, porque esta finalidade se perdeu ao longo de sua evolução. Talvez o cérebro humano tenha dificuldade de lidar com a pluralidade dos desafios, dos sentimentos e emoções que se impõem ao homem neste universo de hoje. Daí as angústias. O animal-homem pode perder-se de sua essência: __ Conquistei tudo que almejei na vida. E agora?  

   Volto à leitura do conto e ponho-me a pensar que a angústia do personagem pode estar relacionada também à “iluminação” no sentido filosófico; a luz que o sujeito tanto almejava pode significar revelação, no sentido da compreensão máxima da vida e de sua finitude. Depois de longa busca, ao alcançar a luz, não conseguiu sobreviver à realidade tão dura, realidade esta incompatível com a fragilidade dos sentimentos humanos. Destarte, apagou-se sua própria luz. Belo conto.   

 

  

 

  

PSICOSE  

  

Enquanto a mulher se banhava,

ele assistia a um filme de Hitchcock.

Então, teve uma ideia.

  

Minha leitura: gostei bastante deste conto. Eu o considero um toque de humor inteligente, algo que nos reporta à diversidade dos temas presentes nesta obra. PSICOSE é um dos mais conhecidos filme de Alfred Hitchcock, diretor e produtor cinematográfico britânico, gênio do cinema nos anos sessenta. No conto, o personagem sugere que poderia esfaquear a própria mulher (ou outra com quem estivesse), enquanto ela se banhava, tal como ocorre no filme PSICOSE, em que um jovem psicopata, que dirige uma espécie de hotelzinho de beira de estrada, esfaqueia dramaticamente uma linda “hóspede-passante” no momento em que ela estava no banho, protegida apenas pela cortina de plástico do box.  A trilha sonora é marcante, o filme é inesquecível.  O autor do conto nos provoca risos no primeiro momento, mas em seguida reflexão. No meu entendimento, o que está subjacente à ideia do personagem é certa saturação da convivência com a mulher mencionada no conto.  

 

 

BLOQUEADA  

  

Odiava a velhice, por isso a matou

antes de ela chegar. 

 

  

    Minha leitura: este conto cujo título é uma expressão bastante usada na linguagem contemporânea refere-se a um dos instrumentos utilizados pelos usuários das redes sociais. Bloquear alguém significa mantê-lo distante, afastá-lo definitivamente de qualquer interação ou contato, enfim, de certo modo, extirpá-lo de sua vida. É o que o personagem deste conto faz com a iminente chegada do envelhecimento, algo que abomina e repudia. Por isso decide bloquear a velhice antes que ela chegue. Conclusão: ou mata o próprio corpo, ou resolve viver como se fosse jovem para sempre.

 

 

Autoria: Sandra Castiel*

Membro efetivo da Academia de Letras de Rondônia

sandracastiell@gmail.com 

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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