Sexta-feira, 17 de junho de 2022 - 12h01
Pistas
Sutis é o novo livro do escritor e poeta Viriato Moura, escritor
cuja produção literária apresenta, a cada obra, uma estética de “vanguarda”, no
sentido literal da palavra, algo além dos movimentos vanguardistas europeus que
influenciaram o fazer literário em todo o mundo.
A leitura de Pistas Sutis, obra constituída de nanocontos (contos minimalistas),
proporciona uma incrível viagem para dentro
do ser, espécie de mergulho na realidade contundente da própria
subjetividade, reconhece-se nas “pistas” que podem trazer à tona sensações,
expectativas frustradas, decepções, amarguras, desgastes, enfim, tudo o que
está subjacente ao “faz de conta”, às múltiplas máscaras que encobrem o
universo interior de cada ser humano,
propiciando ao leitor o difícil encontro com verdades ocultas que vivem nas
profundezas de sua alma. Selecionei
alguns nanacontos de PISTAS SUTIS,
para comentar:
Morreu, mas, desta vez,
morreu de verdade.
Minha
leitura: viver é respirar, levantar de manhã, caminhar, comer,
dormir, trabalhar, enfim, cumprir a rotina de todo dia, sem amor, sem poesia,
sem paixão, sem tórridos beijos, sem cálidos abraços, sem cumplicidade, sem
troca, sem expectativas, sem motivações? Certamente este é um exemplo de alma
morta. Quantas vezes já morri (e tantas outras pessoas já morreram) por
ausências, comoções, desgostos (coisas assim) ao longo da vida? Impossível
mensurar. Porém, a morte só é declarada quando o cartório atesta o óbito.
Fazia seus fantasmas
morrerem de rir.
Minha
leitura: vivências dolorosas do passado habitam definitivamente na
mente humana. Neste conto, os personagens criados pelo autor, além do
principal, são os fantasmas; neste universo tenebroso, os fantasmas
personificam chagas antigas que não cicatrizam; lembranças que machucam desde a
infância: mortes, humilhações, arrependimentos, frustrações, perdas,
descaminhos, palavras não ditas, coisas assim. Enfim, o conto revela a
subjetividade de um sujeito que dialoga com os próprios fantasmas. Este sujeito apresenta-se ao leitor através
do título do conto: Gozador. O gozador seria alguém perseguido pelos fantasmas que moram nas profundezas de
sua mente, ou o gozador teria se
tornado um piadista da própria vida, ante as amarguras pretéritas? Fico com as
duas hipóteses. Esta leitura não busca
traduzir o sentimento literal do autor, não é isto que se busca; porém há
pistas de cunho subjetivo, através da atitude dos personagens. A literatura nos
proporciona um olhar particular à obra artística: “... É preciso ir além do que
o texto diz e como diz” (Vizibelli, 2017).
Para mim, neste contexto, o sentido do título é uma ironia, uma
metáfora; o passado ainda incomoda o personagem e provoca risos em seus
fantasmas; sinto uma conotação de deboche pela “derrota” do sujeito; demonstração
de que os fantasmas estão ali e continuarão no mesmo lugar para sempre.
Exímio pintor de retratos, menos
do seu, que nunca
parecia com ele.
Minha
leitura: neste conto, temos
a expressão explícita do sentimento do personagem (o pintor), aliás expressão
da subjetividade do autor, esta presente no próprio título. Por que o exímio
pintor de retratos não consegue identificação com o retrato que faz de si mesmo?
Seria a imagem traçada na tela a de um rosto idealizado, por isto não a
reconhece como a reprodução de seu rosto, ou seria o autorretrato uma espécie
de espelho onde o sujeito enxergaria o próprio eu? Em ambos os casos, o
personagem receia e evita confrontar-se com a própria imagem, com o dito eu. Afinal, confrontos podem causar
feridas...
A luz que tanto
almejava, apagou-o.
Minha
leitura: através de apenas duas orações, este conto contém algumas
das mais fortes angústias do homem moderno, o homem do século XXI. No mundo em
que vivemos, educamos meninos e meninas (estas recém-abrangidas neste
conceito), para tornarem-se vencedores, aqueles que conseguem chegar ao topo da
pirâmide social; a sociedade nos impõe que eduquemos nossos filhos para
fazerem-se admirados, reconhecidos pela mesma sociedade, alvo dos holofotes,
onde quer que vivam. Só que este mundo que conhecemos distancia-se cada vez mais
da razão da vida propriamente dita; estariam nossos cérebros originalmente
preparados para tantas opções, tantas buscas, tantas maneiras de viver? Noutro
dia ouvi que tudo que existe na natureza tem uma finalidade; a finalidade do
sol é manter a vida no planeta, por exemplo, por isto ele nasce todos os dias e
não uma vez ou outra; a finalidade de uma laranjeira é dar laranjas e não
maçãs, bananas etc. Enfim, tudo que é natural está na Terra com um único
propósito, e tal conceito se aplica, evidentemente, a cada um dos animais. Isto
me faz pensar que o animal mais inteligente do planeta desconhece sua
finalidade, porque esta finalidade se perdeu ao longo de sua evolução. Talvez o
cérebro humano tenha dificuldade de lidar com a pluralidade dos desafios, dos
sentimentos e emoções que se impõem ao homem neste universo de hoje. Daí as
angústias. O animal-homem pode perder-se de sua essência: __ Conquistei tudo
que almejei na vida. E agora?
Volto à leitura do
conto e ponho-me a pensar que a angústia do personagem pode estar relacionada
também à “iluminação” no sentido filosófico; a luz que o sujeito tanto almejava
pode significar revelação, no sentido da compreensão máxima da vida e de sua
finitude. Depois de longa busca, ao alcançar a luz, não conseguiu sobreviver à
realidade tão dura, realidade esta incompatível com a fragilidade dos
sentimentos humanos. Destarte, apagou-se sua própria luz. Belo conto.
Enquanto a mulher se banhava,
ele assistia a um filme de
Hitchcock.
Então, teve uma ideia.
Minha
leitura: gostei bastante deste conto. Eu o considero um toque de
humor inteligente, algo que nos reporta à diversidade dos temas presentes nesta
obra. PSICOSE é um dos mais conhecidos filme de Alfred Hitchcock, diretor e
produtor cinematográfico britânico, gênio do cinema nos anos sessenta. No
conto, o personagem sugere que poderia esfaquear a própria mulher (ou outra com
quem estivesse), enquanto ela se banhava, tal como ocorre no filme PSICOSE, em
que um jovem psicopata, que dirige uma espécie de hotelzinho de beira de
estrada, esfaqueia dramaticamente uma linda “hóspede-passante” no momento em
que ela estava no banho, protegida apenas pela cortina de plástico do box. A trilha sonora é marcante, o filme é
inesquecível. O autor do conto nos
provoca risos no primeiro momento, mas em seguida reflexão. No meu
entendimento, o que está subjacente à ideia do personagem é certa saturação da
convivência com a mulher mencionada no conto.
Odiava a velhice, por isso a matou
antes de ela chegar.
Minha leitura: este conto cujo título é uma expressão bastante usada na linguagem contemporânea refere-se a um dos instrumentos utilizados pelos usuários das redes sociais. Bloquear alguém significa mantê-lo distante, afastá-lo definitivamente de qualquer interação ou contato, enfim, de certo modo, extirpá-lo de sua vida. É o que o personagem deste conto faz com a iminente chegada do envelhecimento, algo que abomina e repudia. Por isso decide bloquear a velhice antes que ela chegue. Conclusão: ou mata o próprio corpo, ou resolve viver como se fosse jovem para sempre.
Autoria: Sandra Castiel*
Membro efetivo da Academia de Letras de
Rondônia
sandracastiell@gmail.com
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