Sexta-feira, 8 de julho de 2011 - 07h30
Interessante como algumas imagens que guardamos de pessoas, lugares e momentos de nossa vida permanecem inalteradas em nós ao longo do tempo. Nós, mulheres, aprendemos cedo a preservar objetos queridos, coisas que nos são caras.
Menina ainda, eu costumava arrumar cuidadosamente pequenos pertences em uma caixinha forrada com desbotado tecido floral: um anel de pedrinha vermelha, uma florzinha seca, um crucifixo de madrepérola, um papel de sonho de valsa, um lencinho com as iniciais bordadas em ponto cheio, uma pulseira de pau d’Angola, uma caderneta com pensamentos e o item mais valioso do acervo de importâncias: um par de brincos bolivianos. Isso mesmo.
Todas as meninas que viviam em Porto Velho, nas décadas de 60 e 70, se não possuíam brincos bolivianos, sonhavam com isso. No meu caso, depois de uma longa espera, consegui realizar aquele sonho de consumo. O ouro boliviano, apesar de leve, era valiosíssimo. Em forma de triângulo e com quatro pingentes na base, os brincos adornavam o rosto e imprimiam um ar exótico a nós, mocinhas, que, orgulhosas, desfilávamos pela cidade, exibindo a arte dos artesãos de Guayaramerim. Joia ali era tratada como artesanato.
Naquela fronteiriça cidadezinha, lindas peças em ouro, prata (ou os dois juntos, numa composição belíssima), eram vendidas em casinhas de barro ou madeira cobertas de palha, com uma plaquinha tosca pendurada na parede externa, onde se lia: Vende-se Ouro, ou, se me falha a memória, um anúncio mais ou menos assim. E todas as joias eram trabalhadas em torno de um tema. A lhama era o mais recorrente.
Para nós, que vivíamos em Porto Velho, passear de lambreta na garupa dos bolivianos pelas ruelas esburacadas de Guayaramerim era uma transgressão. Cabe esclarecer que as lambretas eram usadas como taxis. Geralmente, saíamos de Porto Velho em um grande grupo de jovens com destino a Guajará Mirim. Os rapazes que integravam a excursão (como costumávamos chamar essas viagens) participavam de torneios esportivos com os times de Guajará e quase sempre perdiam. E nós, as moças, compúnhamos uma espécie de torcida organizada.
Que ninguém pense que tornar realidade a excursão era tarefa fácil. Primeiro, era necessário convencer a direção da Escola Normal Carmela Dutra e a direção do Ginásio Castelo Branco (onde a maioria estudava) da magnitude de nossa intenção: promover um intercâmbio cultural com a juventude da cidade vizinha. A tentativa podia levar meses. Permissão concedida, a direção do Carmela Dutra encarregava uma professora da casa para acompanhar o grupo. Geralmente a encarregada era a professoraBasília.
Carismática e dona de um sorriso enorme, a professora de Didática, Basília, acompanhava a tropa com grande entusiasmo, desde o encontro de madrugada, para o embarque, na estação da Madeira Mamoré, até a hospedagem nas residências de famílias conhecidas de Guajará Mirim. Os rapazes, como era costume, ficavam abrigados no quartel local (certamente para assegurar um teto e três refeições por dia).
Não dá para esquecer a euforia que tomava conta do grupo na hora da partida do trem da estação de Porto Velho: era uma festa! Durante o trajeto, havia as paradas obrigatórias. Almoçava-se em Jaci Paraná. O jantar, assim como o pernoite, era em Abunã, no hotel do simpático Sr. Simplício: um casarão de madeira, com um ruidoso assoalho de tábuas. A dormida em Abunã significava longas horas, madrugada adentro, lutando contra os mosquitos; o carapanã era o mais comum e chegava até a ser considerado inofensivo, diante da exótica diversidade que nos atacava até o amanhecer (aliás, ao longo de toda a viagem).
Na manhã seguinte, continuávamos a longa jornada, lanchando guaraná com bolachas que comprávamos nas várias paradas (o guaraná não era gelado, era morno; e as bolachas de água e sal eram velhas e duras como pedras). Quando enfim chegávamos a Guajará Mirim, no meio da tarde, nossa aparência era a de quem combatera um incêndio: o traje que usávamos na viagem – calça Lee (com plaquinha) e camiseta - se transformara em uma roupa surrada, chamuscada pelas fagulhas de lenha que invadiam o vagão. Porém, nada disso importava; o desembarque era um momento mágico.
De vez em quando, as travessias diárias de catraia, à esburacada e acanhada Guayaramerim, onde se comia uma saltenha e uma tortilhainesquecíveis, terminavam mal: quando a Bolívia entrava em estado de sítio (e isso acontecia com frequência), os estrangeiros que ali estavam iam presos, ou seja, os rapazes de Porto Velho permaneciam horas literalmente atrás das grades, passando fome e sede. O porto era fechado; ninguém entrava, ninguém saía. Uma curiosidade: os bolivianos não prendiam as moças. Felizmente, o desespero costumava durar apenas algumas horas. E nada abalava o entusiasmo do grupo.
Interessante é que a rivalidade entre Porto Velho e Guajará Mirim nos idos de 1960 e 1970 era grande. Nos esportes, os times de Guajará pareciam estar bem mais preparados, mesmo que a torcida de Porto Velho, exaltada, entoasse uma cantiga cruel, que deixava enfurecidos, e com toda razão, os rondonienses de Guajará Mirim:
É ou não é? / Piada de salão/ Time boliviano/ Querer ser campeão?
Coisas assim representavam uma provocação inocente, rixa entre duas cidades de poucos recursos, cravadas em meio à selva amazônica, convivendo com o isolamento e com as dificuldades inerentes a seus contextos geográficos.
Daquelas longínquas aventuras, tanto tempo depois, ainda guardo uma certeza: a última coisa que nós, jovens estudantes de Porto Velho, pensávamos, quando saíamos em excursão para a querida cidade de Guajará Mirim, era fazer intercâmbio cultural. A gente queria mesmo era se divertir!
E não é que toda aquela diversão gerava mesmo um intercâmbio cultural? E a turma nem sabia disso...
Fonte: Fonte: Sandra Castiel - sandracastiell@gmail.com
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