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Dante Fonseca

A origem da cidade de Porto Velho e o velho Pimentel


Dante Ribeiro da Fonseca - Gente de Opinião
Dante Ribeiro da Fonseca

Todos sabem que a origem da cidade de Porto Velho coincide com a última tentativa de construção da ferrovia Madeira-Mamoré em 1907. Naquele ano, ao decidir construir o pátio ferroviário em um local abaixo sete quilômetros da povoação Santo Antônio, mas ainda na margem direita do rio Madeira, os norte-americanos criaram uma nova opção para a atração de moradores, inclusive de Santo Antônio, para o redor desse moderno pátio, do que originou a nova povoação. Poucas décadas depois, alguns cidadãos dessa agora cidade iniciaram a buscar informações sobre sua origem.

A História, ao laborar no processo de busca do passado, cria frequentemente mitos, mas também os destrói. Tróia, a cidade grega cantada por Homero, foi durante muito tempo considerada um mito, ou seja, algo que não teve existência real. Mas não se confundam, não ter existência real não significa inexistir, pois muitas coisas possuem existência imaginária, uma delas é o mito. Muitos poderão contrarestar: mas Tróia existia, lá estavam suas ruínas. É correto, mas da mesma forma que as coisas podem existir imaginariamente, também e contrariamente as coisas somente terão existência real se os homens as conhecerem empiricamente. Uma árvore ao cair na floresta produzirá o deslocamento do ar, mas somente existirá o som se houver próximo um ouvido animal para dar-lhe existência. Na ausência do ouvido, quando um homem passar por aquela árvore derrubada na floresta poderá imaginar até com muita fidelidade o som que causou sua queda, caso já tenha ouvido o deslocamento do ar em situação semelhante, mas não terá escutado a queda dessa árvore. Assim, não saberá exatamente como foi o som dessa queda. As coisas constituídas de materialidade podem ter, quando colocadas em relação ao conhecimento humano, dois tipos de existência: em si e para si. Troia tinha existência em si, mas para o homem somente passou a existir quando seus olhos puderam vê-la e suas mãos tocá-la.

Deixou de ser um mito para ter existência real quando um alemão, Heinrich Schliemann, acreditou e seguiu as pistas de Homero. Escavando um dos locais possiveis descobriu as ruínas de Troia onde hoje é a Turquia, provando que existiu realmente aquela cidade. Tudo isso serve para entendermos que o mito deve ser igualmente apropriado e entendido pelos historiadores: seja como uma possibilidade do real, seja como uma derivação do real, ambos devem ser explicados. Podemos dizer que a História cria mitos, mas também pode desmitificá-los. A lição que devemos tomar é que não podemos declarar qualquer afirmação como inverídica antes de examiná-la cuidadosa e exaustivamente e de buscar dados comprobatórios que permitam sua negação ou reconhecimento. A partir de um cuidadoso exame, muitas vezes tudo o que podemos afirmar é que não há provas de sua existência. Tal acontece com a origem de Porto Velho, chamada pelos americanos de Porto Velho de Santo Antônio.

Remonta ao ano de 1950 a publicação do livro de Antônio Cantanhede, “Achegas para a história de Porto Velho”, onde o autor informa sobre a existência de um senhor que habitava esse espaço antes da construção do pátio ferroviário, sem fornecer contudo informação comprobatória, de maneira bastante casual. Apenas diz que ouviu essa informação de um antigo morador do povoado. Por volta de 1950 existiam certamente moradores em Porto Velho, ou Santo Antônio, que por aqui viviam nos idos de 1900, embora estivessem já em idade provecta. Talvez, mesmo esses, tenham ouvido essa história de pessoas mais idosas ainda. Essas informações sempre passam de boca em boca.

Desde então, e creio que até hoje, esse velho, primeiro morador, chamado velho Pimentel, esteve para Porto Velho como a Loba do Capitólio para Roma, um mito fundador. Talvez precisemos desses mitos por diversas razões, pois os encontramos muito amiudadamente na História. Talvez por isso o tenham ensinado nas escolas, e creio que continue a ser ensinado em muitas delas, mesmo sem a evidência cabal de sua existência, o que no mínimo o credencia à condição de mito.

Recentemente, contudo, ao ler o excelente trabalho intitulado “Observações Geográficas sobre o Território do Guaporé” de Antônio Teixeira Guerra e publicado na Revista Brasileira de Geografia em 1953, tive novamente notícia do velho Pimentel. Se essa nova notícia não permite de pronto confirmar sua existência passada, permite-nos, de outro modo, constatar que a informação sobre sua existência é dez anos anterior ao livro de Cantanhede, aquele que se julgava ser o primeiro a informar pelo meio impresso a existência do pioneiro morador dessas plagas. Encontramos então nova gênese do mito.

Guerra, afirma que Bohemundo Álvares Affonso, na época prefeito de Porto Velho, escreveu um trabalho intitulado “Elementos para a organização de uma monografia histórico-corográfica de Pôrto Velho”, ao que sabemos nunca publicado, destinada a colaborar com o Recenseamento de 1940. A seguir Guerra informa:

 

A este propósito o prefeito, BOEMUNDO ÁLVARES AFONSO, em sua monografia histórico-geográfica, preparada para o Serviço Nacional de Recenseamento, em 1940, também invoca o mesmo argumento, dizendo que a origem dêste nome se deve à corruptela da expressão "pôrto do velho", referente à barraca de um velho, situado num dos melhores e mais preferidos pontos de atracação sôbre o rio, logo abaixo de Santo Antônio (hoje Alto Madeira) Desta expressão ligou-se o nome ao lugar e, mais tarde, ao município.

 

Abro aqui um parêntese para afirmar minha ignorância sobre esse melhor e preferencial ponto de atracação abaixo de Santo Antônio. Que eu saiba, tanto antes quanto depois da navegação à vapor as embarcações atracavam em Santo Antônio, cujo porto ficava a mais ou menos mil e duzentos metros abaixo da igrejinha ainda existente ali, que se situava defronte às pedras da cachoeira. Fala-se também em um antigo ponto (ou porto) dos militares na Guerra do Paraguai. Ocorre porém que esse também ficava próximo ao porto acima mencionado. De fato, não tenho notícia de nenhum porto entre Santo Antônio e Porto Velho existente até 1907 onde moraria o velho Pimentel.

A notícia do velho é de antes da criação do Território, em 1943. Resta então encontrar essa  monografia de Bohemundo Álvares Afonso para examinar se ela contém pistas, ou mesmo a prova da existência desse famoso velho. Apesar de busca-la intensamente, não a encontrei, até agora. Digo até agora para que vejam vocês que uma das lições da História, que pode ser seguida na nossa vida, é que nada é definitivo. Nesse caso a História é a mestra da vida. Se alguém tiver notícia dessa monografia, por favor, comunique-me, ela é ansiosamente procurada.

De qualquer modo temos que considerar a sabedoria popular, porque sendo popular ainda assim é alçada à condição de igualdade no olímpico lugar da filosofia, creio que com justa razão. Diz então essa chã sabedoria que: “Quem conta um conto acrescenta um ponto”. Talvez por esse mesmo processo dizem que uma pomba branca com uma mancha preta, depois de transmissões de pessoa para pessoa ao longo do tempo se transformará  em uma pomba preta com uma mancha branca. Muito do que sabemos hoje sobre o velho Pimentel foi criado após a informação dada por Bohemundo Affonso. Ganhou uma esposa, fornecia comidas àqueles que aventuravam caçadas e pescarias naquela parte, fornecia madeira para os vapores que por ali transitavam.  Tudo isso já foi estudado pelo Antônio Cândido (ACLER), que concluiu pela “construção” em camadas imaginárias superpostas, como placas geológicas diria Machado de Assis, de um velho Pimentel sobre o qual nenhum vestígio documental resta senão de um ouvir falar. Não me detenho mais sobre o assunto, exceto para acrescentar que essa natureza maleável, cambiante, que dispensa a empiria, faz parte dos mitos.

Para finalizar, e antecipando aos críticos que espantarão por ver-me ocupado por assunto tão prosaico aos seus olhos, direi que, nunca saberemos, senão no futuro, a real utilidade de qualquer conhecimento. Disso resulta que para o historiador não há problema valorativamente menor ou maior, mas apenas problemas, que tenta resolver.

Segundo Platão e Aristóteles, o filósofo grego Tales de Mileto nascido em  558 a.C , certa vez, ao caminhar passou a observar o céu, não vendo o chão em que caminhava tropeçou e caiu em um buraco, sendo seu aparente comportamento lunático objeto do escárnio de uma escrava da Trácia. Não sabia essa escrava, nem Tales na verdade, que esse conhecimento astronômico nos conduziria a viajar pelo espaço sideral.

Assim, nesse, como em outros casos, importa buscar a verdade mesmo sabendo de sua intangibilidade derivada de sua condição de provisória, pois não podemos saber quando ela nos servirá. Trata-se aqui do mesmo dilema do descarte de documentação de caráter histórico, sabemos que os papéis descartados não nos servem hoje, mas não sabemos se poderão servir no futuro.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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