Quinta-feira, 7 de dezembro de 2023 - 12h00
Todos
sabem que a origem da cidade de Porto Velho coincide com a última tentativa de
construção da ferrovia Madeira-Mamoré em 1907. Naquele ano, ao decidir
construir o pátio ferroviário em um local abaixo sete quilômetros da povoação
Santo Antônio, mas ainda na margem direita do rio Madeira, os norte-americanos
criaram uma nova opção para a atração de moradores, inclusive de Santo Antônio,
para o redor desse moderno pátio, do que originou a nova povoação. Poucas
décadas depois, alguns cidadãos dessa agora cidade iniciaram a buscar
informações sobre sua origem.
A
História, ao laborar no processo de busca do passado, cria frequentemente
mitos, mas também os destrói. Tróia, a cidade grega cantada por Homero, foi
durante muito tempo considerada um mito, ou seja, algo que não teve existência
real. Mas não se confundam, não ter existência real não significa inexistir,
pois muitas coisas possuem existência imaginária, uma delas é o mito. Muitos
poderão contrarestar: mas Tróia existia, lá estavam suas ruínas. É correto, mas
da mesma forma que as coisas podem existir imaginariamente, também e
contrariamente as coisas somente terão existência real se os homens as
conhecerem empiricamente. Uma árvore ao cair na floresta produzirá o
deslocamento do ar, mas somente existirá o som se houver próximo um ouvido
animal para dar-lhe existência. Na ausência do ouvido, quando um homem passar
por aquela árvore derrubada na floresta poderá imaginar até com muita
fidelidade o som que causou sua queda, caso já tenha ouvido o deslocamento do
ar em situação semelhante, mas não terá escutado a queda dessa árvore. Assim,
não saberá exatamente como foi o som dessa queda. As coisas constituídas de
materialidade podem ter, quando colocadas em relação ao conhecimento humano,
dois tipos de existência: em si e para si. Troia tinha existência em si, mas
para o homem somente passou a existir quando seus olhos puderam vê-la e suas
mãos tocá-la.
Deixou de
ser um mito para ter existência real quando um alemão, Heinrich Schliemann,
acreditou e seguiu as pistas de Homero. Escavando um dos locais possiveis
descobriu as ruínas de Troia onde hoje é a Turquia, provando que existiu
realmente aquela cidade. Tudo isso serve para entendermos que o mito deve ser
igualmente apropriado e entendido pelos historiadores: seja como uma
possibilidade do real, seja como uma derivação do real, ambos devem ser
explicados. Podemos dizer que a História cria mitos, mas também pode desmitificá-los.
A lição que devemos tomar é que não podemos declarar qualquer afirmação como
inverídica antes de examiná-la cuidadosa e exaustivamente e de buscar dados
comprobatórios que permitam sua negação ou reconhecimento. A partir de um
cuidadoso exame, muitas vezes tudo o que podemos afirmar é que não há provas de
sua existência. Tal acontece com a origem de Porto Velho, chamada pelos
americanos de Porto Velho de Santo Antônio.
Remonta
ao ano de 1950 a publicação do livro de Antônio Cantanhede, “Achegas para a
história de Porto Velho”, onde o autor informa sobre a existência de um senhor
que habitava esse espaço antes da construção do pátio ferroviário, sem fornecer
contudo informação comprobatória, de maneira bastante casual. Apenas diz que
ouviu essa informação de um antigo morador do povoado. Por volta de 1950
existiam certamente moradores em Porto Velho, ou Santo Antônio, que por aqui
viviam nos idos de 1900, embora estivessem já em idade provecta. Talvez, mesmo
esses, tenham ouvido essa história de pessoas mais idosas ainda. Essas
informações sempre passam de boca em boca.
Desde
então, e creio que até hoje, esse velho, primeiro morador, chamado velho
Pimentel, esteve para Porto Velho como a Loba do Capitólio para Roma, um mito
fundador. Talvez precisemos desses mitos por diversas razões, pois os
encontramos muito amiudadamente na História. Talvez por isso o tenham ensinado
nas escolas, e creio que continue a ser ensinado em muitas delas, mesmo sem a
evidência cabal de sua existência, o que no mínimo o credencia à condição de
mito.
Recentemente,
contudo, ao ler o excelente trabalho intitulado “Observações Geográficas sobre
o Território do Guaporé” de Antônio Teixeira Guerra e publicado na Revista
Brasileira de Geografia em 1953, tive novamente notícia do velho Pimentel. Se
essa nova notícia não permite de pronto confirmar sua existência passada,
permite-nos, de outro modo, constatar que a informação sobre sua existência é
dez anos anterior ao livro de Cantanhede, aquele que se julgava ser o primeiro
a informar pelo meio impresso a existência do pioneiro morador dessas plagas.
Encontramos então nova gênese do mito.
Guerra,
afirma que Bohemundo Álvares Affonso, na época prefeito de Porto Velho,
escreveu um trabalho intitulado “Elementos para a organização de uma monografia
histórico-corográfica de Pôrto Velho”, ao que sabemos nunca publicado,
destinada a colaborar com o Recenseamento de 1940. A seguir Guerra informa:
A
este propósito o prefeito, BOEMUNDO ÁLVARES AFONSO, em sua monografia
histórico-geográfica, preparada para o Serviço Nacional de Recenseamento, em
1940, também invoca o mesmo argumento, dizendo que a origem dêste nome se deve
à corruptela da expressão "pôrto do velho", referente à barraca de um
velho, situado num dos melhores e mais preferidos pontos de atracação sôbre o
rio, logo abaixo de Santo Antônio (hoje Alto Madeira) Desta expressão ligou-se
o nome ao lugar e, mais tarde, ao município.
Abro aqui
um parêntese para afirmar minha ignorância sobre esse melhor e preferencial
ponto de atracação abaixo de Santo Antônio. Que eu saiba, tanto antes quanto
depois da navegação à vapor as embarcações atracavam em Santo Antônio, cujo
porto ficava a mais ou menos mil e duzentos metros abaixo da igrejinha ainda
existente ali, que se situava defronte às pedras da cachoeira. Fala-se também
em um antigo ponto (ou porto) dos militares na Guerra do Paraguai. Ocorre porém
que esse também ficava próximo ao porto acima mencionado. De fato, não tenho
notícia de nenhum porto entre Santo Antônio e Porto Velho existente até 1907
onde moraria o velho Pimentel.
A notícia
do velho é de antes da criação do Território, em 1943. Resta então encontrar
essa monografia de Bohemundo Álvares
Afonso para examinar se ela contém pistas, ou mesmo a prova da existência desse
famoso velho. Apesar de busca-la intensamente, não a encontrei, até agora. Digo
até agora para que vejam vocês que uma das lições da História, que pode ser
seguida na nossa vida, é que nada é definitivo. Nesse caso a História é a
mestra da vida. Se alguém tiver notícia dessa monografia, por favor,
comunique-me, ela é ansiosamente procurada.
De
qualquer modo temos que considerar a sabedoria popular, porque sendo popular
ainda assim é alçada à condição de igualdade no olímpico lugar da filosofia,
creio que com justa razão. Diz então essa chã sabedoria que: “Quem conta um
conto acrescenta um ponto”. Talvez por esse mesmo processo dizem que uma pomba
branca com uma mancha preta, depois de transmissões de pessoa para pessoa ao
longo do tempo se transformará em uma
pomba preta com uma mancha branca. Muito do que sabemos hoje sobre o velho
Pimentel foi criado após a informação dada por Bohemundo Affonso. Ganhou uma
esposa, fornecia comidas àqueles que aventuravam caçadas e pescarias naquela
parte, fornecia madeira para os vapores que por ali transitavam. Tudo isso já foi estudado pelo Antônio
Cândido (ACLER), que concluiu pela “construção” em camadas imaginárias
superpostas, como placas geológicas diria Machado de Assis, de um velho
Pimentel sobre o qual nenhum vestígio documental resta senão de um ouvir falar.
Não me detenho mais sobre o assunto, exceto para acrescentar que essa natureza
maleável, cambiante, que dispensa a empiria, faz parte dos mitos.
Para
finalizar, e antecipando aos críticos que espantarão por ver-me ocupado por
assunto tão prosaico aos seus olhos, direi que, nunca saberemos, senão no
futuro, a real utilidade de qualquer conhecimento. Disso resulta que para o
historiador não há problema valorativamente menor ou maior, mas apenas
problemas, que tenta resolver.
Segundo
Platão e Aristóteles, o filósofo grego Tales de Mileto nascido em 558 a.C , certa vez, ao caminhar passou a
observar o céu, não vendo o chão em que caminhava tropeçou e caiu em um buraco,
sendo seu aparente comportamento lunático objeto do escárnio de uma escrava da
Trácia. Não sabia essa escrava, nem Tales na verdade, que esse conhecimento astronômico
nos conduziria a viajar pelo espaço sideral.
Assim, nesse,
como em outros casos, importa buscar a verdade mesmo sabendo de sua
intangibilidade derivada de sua condição de provisória, pois não podemos saber
quando ela nos servirá. Trata-se aqui do mesmo dilema do descarte de documentação
de caráter histórico, sabemos que os papéis descartados não nos servem hoje,
mas não sabemos se poderão servir no futuro.
O ensaio que segue foi elaborado para ser apresentado na cerimônia de abertura do Seminário Integrado de Ensino e Pesquisa e a Semana de História –
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