Segunda-feira, 17 de janeiro de 2022 - 14h55
O
que é História e o que é Ficção? A questão está baseada no fato de que a
ciência busca definir-se a partir de conceitos rigorosos, que não admitem
contaminação. E a História pretende-se ciência. Sendo assim, contagiar a
História com o mínimo de ficção seria condená-la à morte enquanto ciência. Já a
ficção admite tranquilamente, sendo uma manifestação da arte, as informações
derivadas da História. Contudo, bem contado e bem medido, um pouco do fazer-se
de ambas as atividades contamina-as mutuamente. Creio então que a pergunta pode
ser melhor formulada com a seguinte pergunta: em que medida a História produz
algum grau de Ficção e em que medida a Ficção absorve algum grau de História?
Justifico minha proposição de que há algo em comum entre as duas manifestações
do intelecto recorrendo a: 1) sabedoria popular, que declara “quem conta um
conto acrescenta um ponto”; 2) obras ficcionais do cinema ou da literatura onde
os autores declaram antecipadamente que são “baseadas em fatos reais” ou então
que “qualquer semelhança com fatos reais é mera coincidência”, acusando com
isso exatamente a origem real do trabalho artístico. Mas essa influência ocorre
mesmo estando ausentes os referidos alertas. Há muito os historiadores
abandonaram a pretensão de expressar o passado exatamente como ele foi. Penso então
que a diferença entre uma e outra está não está tanto nas circunstâncias da
história, mas naquilo que costumamos denominar fatos. Quanto ao restante, como
na ciência farmacêutica há uma distância sutil que separa o veneno do remédio, também
com a História e a Ficção isso ocorre.
Abro
aqui um parêntese para declarar que não desconheço a complexidade tremenda que
é definir inequivocamente o que é um “fato histórico”. Grandes historiadores já
o tentaram antes com maior ou menor sucesso, cito para começar pelo francês
Marc Bloch. Ao escrever essas linhas lembrei agora de minhas leituras de
graduando no curso de História, há trinta e oito anos atrás, entre outros de
Adam Schaff, Lucien Goldman e Edward Hallet Carr, pondo-nos a par das dificuldades
do problema. O primeiro, lembrando a historiografia positivista, defensora da
rígida separação dos fatos “duros”, autônomos em relação “interpretação” sempre
duvidosa e subjetiva, diziam eles. Independente da complexa discussão a que
esse tema poderia nos conduzir, aproveitaremos aqui a ideia de fatos duros. O
que seriam eles? Fatos inquestionáveis em sua natureza, empiricamente
observáveis. Fulano nasceu em tal ano e morreu em outro, sicrano comandou o
exército em determinada batalha, são fatos constatáveis, ainda, sua aceitação
ou negação são mais facilmente realizáveis. Já os fatos de natureza analítica
são de mais difícil comprovação. Contudo, sem eles a História se transformaria
em mera descrição, e não um estudo da experiência humana no tempo. Seria um
esqueleto, sem a carne e o sangue, indispensáveis à manifestação da vida.
Também
a Literatura é a expressão da experiência humana no tempo. Em outras palavras,
os fatos da Literatura são os mesmos da História, elaborados, porém, de outra
maneira. Da literatura não se exige a precisão dos fatos duros em sua construção,
nem da argumentação analítica ou lógica, desfruta da liberdade artística. Já da
História exige-se precisão factual e argumentação lógica. De resto, repito, creio
que há um pouco de cada uma nas duas expressões do conhecimento humano. Há sim,
um pouco de ficção na História e muito de História na Literatura. Isso porque é
inevitável acrescentar um ponto a um conto e é inescapável que haja semelhança
entre fatos ficcionais e a realidade. Para exemplificar vou contar uma
história. Se é fato ou ficção, veremos depois. De qualquer forma, a discussão
não se esgota nesses termos, que escolhemos apenas para colocar em relevo a
história que vamos contar.
Na
primeira metade do século passado, vivia no centro de um enorme e verdejante país
um garoto. Era uma região agreste e, portanto, portadora de poucos recurso modernos.
Havia pouco o garoto viera ao mundo, coisa de doze anos, pouco mais ou menos.
Foi em torno dessa época que, estando a mãe do garoto grávida, julgou o pai de melhor
alvitre enviá-la a um lugar onde o parto pudesse ser feito com melhor
assistência. Encarregou então a um carreteiro, homem de sua confiança, para
transportar a esposa a essa localidade. Tomada a decisão, foi destinada uma
carreta para transportar a mulher e o garoto, que a acompanharia. Certamente a
carreta, ou carro de boi, foi equipada com uma tolda, mesmo que rústica, que protegesse
essa mulher e seu pequeno filho das intempéries climáticas. Também víveres e
agasalhos foram providenciados, pois seria uma viagem longa. Então partiram os
três, ou os quatro, se assim quiserem. Imagine-se aqui a lenta evolução da
comitiva por aqueles sertões pobremente habitados por população colonial
(civilizada, alguns dizem). Imaginem as noites estreladas e frescas, o calor
dos dias, as chuvas e os perigos pelos quais passaram naquele trajeto. Tudo transcorria
sob os olhos do garoto que, sabia, iria ao final ser presenteado com um
irmãozinho ou irmãzinha (que naquele tempo não se podia saber antecipadamente).
Enfim, a viagem durou vários meses. Chegados à cidade de destino, a mulher
pariu um menino. Para evitar as dificuldades e privações do caminho de ida,
decidiu a mulher voltar ao lar de navio. Deslocou-se então ao povoado portuário
fluvial mais próximo, onde aguardaria a embarcação. O périplo escolhido para o
retorno exigiria deslocar-se pelos rios até encontrar a enorme costa marítima
do país, pela qual seguiriam até encontrar o início de um percurso ferroviário
e, ao final desse, tomar novamente o rio, em cuja ribeira encontrariam os
viajantes seu lar. O destino, porém, reservava-lhe novos contratempos. Debalde,
esperaram por longo tempo a ansiada embarcação, mas ela demorava. Os recursos
que levaram iam se esgotando, ao mesmo tempo que as necessidades aumentaram,
pois a mãe agora além do garoto conduzia o recém-nascido e já não contava mais
com o apoio do carreteiro Foi então informada que atravessando a fronteira, em
uma cidade no país vizinho, encontraria aeronaves de passageiros, que facilitariam
seu retorno ao lar. Seguindo por terra um caminho de boiadas chegou à tal
cidade. De fato, lá era parada de aviões que seguiam para a fronteira de seu
país, mais próxima de sua morada. Mas a aeronave também demorava a chegar e os
recursos continuavam minguando. Finalmente, chegou um avião que seguiria para a
fronteira. A mulher, já sem recursos, pediu ao garoto que fosse pagar o hotel,
no qual esperaram o avião, com as joias que levara consigo. No momento em que o
garoto entregou as joias para que o dono do hotel calculasse com elas o
pagamento da dívida entrou na sala um cidadão, natural daquele país
estrangeiro. Reconhecendo no garoto o filho de seu conhecido, interferiu na
transação. Disse ao garoto que guardasse as joias de sua mãe que ele pagaria a
dívida. Depois acertaria as contas com o seu pai. Foram então os três para o
aeródromo, dois deles esperançosos e ansiosos por rever, depois de tantos imprevistos
e desconfortos, o lar. Mas ainda um último incidente os esperava. Era carnaval
naquele país e o piloto e copiloto alemães, entusiasmados pela festa puseram-se
a beber e a fantasiarem-se de mulher para melhor desfrutar da ébria folia.
Brincando assim o carnaval, esqueceram do avião e, principalmente, dos seus
passageiros. Já bem passada a hora da decolagem, para o espanto e apreensão dos
passageiros, entraram os dois tedescos, ainda com vestes femininas e visivelmente
embriagados. Tomaram seus assentos na cabine de comando e levantaram voo. O voo
transcorreu normalmente, na medida do possível, dadas as circunstâncias nas
quais se encontravam os pilotos. Desembarcando da bêbada aeronave, tomaram os
nossos viajantes o percurso fluvial, através do qual chegaram ao lar. Uma
aventura inesquecível para um garoto.
Poderá
o leitor afirmar se a história que contei acima é ficção? Da forma como foi
escrita não podemos decidir, senão agregando a ela o núcleo dos “fatos duros”.
Poderíamos ainda afirmar no início da narrativa que a mesma é “baseada em fatos
reais”, dotando-a de alguma historicidade. Ainda, se temêssemos eventual processo
das pessoas que a viveram ou de seus descendentes, diríamos que “qualquer
semelhança com fatos e pessoas é mera coincidência”. Nesse último caso vai aqui
uma hipocrisia da ficção, pois qualquer semelhança não é mera coincidência e,
assim, o fato descrito foi real. De qualquer dessas maneiras o leitor ficaria
prevenido de que a história aconteceu, embora a forma como foi contada não
fosse muito próxima de como ocorreu, além de não fornecer nomes, datas e locais
reais onde esses fatos aconteceram.
Enfim,
a história relatada acima poderia ser ficção, foi descrita como um conto, mas
não é. É História. Contou-me essa história várias vezes um participante do episódio,
o “garoto”, já então um nonagenário, mas ainda bastante lúcido e com boa
memória. Depois da primeira vez que me contou, sempre que ouvia novamente dele a
história não informava àquele senhor que já a havia relatado a mim, deixando
que contasse de novo pelo mero prazer de ouvir uma história tão fantástica que
parecia ficcional e ao mesmo tempo tão inacreditavelmente real. Creio também
que o nonagenário tinha prazer em contar aquela história. Vamos então cobrir o
esqueleto ficcional dessa história com os “fatos duros”, para transformá-la em
História. De qualquer forma, quase cedi à tentação de transformá-la em ficção
(baseada em fatos reais), acrescentando aqui e ali algumas pitadas de invenção:
a passagem de um curso d’água, o perigo das feras bravias, algum ataque de
nativos, a descrição das noites enluaradas, enfim, tudo o que pudesse trazer à
história a graça e a beleza, que são as obrigações primárias da arte.
O
grande país da história é o Brasil. A região era o estado do Mato Grosso (hoje
dividido nos estados do Norte e do Sul). Os personagens: o “garoto”, o
empresário e jornalista de Rondônia Euro Tourinho Filho, sua mãe dona Eulália
Malheiros Tourinho e o nascituro, sr. Luiz Tourinho. Euro Tourinho nasceu em
Corumbá em 17 de janeiro de 1922, onde o pai, Homero Tourinho, administrava a
fazenda Puraputanga, herdada pela mãe. O sr. Luiz Tourinho nasceu em 29 de maio
de 1934 em Campo Grande (MS). Tinha o “garoto” então 12 anos, quando da viagem
de Santa Fé, no rio Guaporé, onde a família então residia, a Campo Grande, onde
foi parir sua mãe. No retorno da viagem esperaram um navio em Cáceres,
deslocando-se depois para Trinidad (talvez outra localidade) em busca do
transporte aéreo que os conduziu até a fronteira do Brasil (talvez Riberalta ou
Guayaramerin) de onde tomaram o curso do Guaporé até Santa Fé. Bem, muita
pesquisa têm ainda que ser feita para reconstituir essa história mais fielmente
e em sua integridade, mas com maior ou menor fidelidade a reproduzi aqui o que
ouvi do sr. Tourinho. No futuro essa história poderá ser contada sob a forma de
História ou de Ficção.
É
esta, certamente, uma história ainda incompleta, embora suficiente para retratar
as dificuldades de se viver na hinterlândia brasileira naqueles anos de 1930.
Ainda nos anos de 1930 a família se transferiu para Santo Antônio do Rio
Madeira (MT), então vizinha a Porto Velho. O “garoto” ficou assim conhecido,
segundo informou-me o próprio sr. Tourinho, por ocasião do falecimento do seu pai,
quando ainda era muito novo. Foi então chamado a administrar o seringal que a
família adquirira na região que viria a conformar Rondônia. Nas reuniões dos
seringalistas era o que possuía menor idade, cabendo então a ele a alcunha de
“garoto”.
O
garoto cresceu, formou com seus irmãos uma grande família, tornou-se empresário
e jornalista. Em 1970 adquiriu dos Diários Associados o jornal Alto Madeira,
que conduziu até o encerramento de suas atividades em 2017, ao cem anos de
existência.
Hoje
o sr. Euro Tourinho faria, se vivo estivesse, 100 anos. Resta-nos o conforto de
que está espiritualmente vivo, através dos números do Alto Madeira e da legião
de amigos e colaboradores que soube conquistar. Embora tivesse conhecido o sr.
Tourinho em 1985, tive o privilégio de conviver com ele apenas nesses últimos
anos de sua vida: como colaborador do Alto Madeira, na Academia Rondoniense de
Letras (ACLER) e na Confraria do Buraco do Candiru, na qual, segundo as
palavras de Marco Danin: “Foi é será nosso eterno presidente de honra”. Teve o
sr. Tourinho uma vida longa e produtiva, faleceu aos noventa e sete anos, tendo
contribuído para o progresso de Rondônia e vivenciado ativamente as diversas
fases de sua História. Durante essa convivência de poucos anos ouvi dele muitas
histórias de sua vida, todas muito interessantes, mas a que acabei de contar
foi a que deixou-me mais impressionado e parece ser aquela da qual ele mais
gostava. Decidi então contar essa história aqui em memória ao seu centésimo
aniversário. Consola-me o fato de que se ele já não está mais aqui para a
contar, outros poderão saber dela através desse escrito. Ao sr. Tourinho e
família minhas sinceras homenagens, pelo transcurso dessa data. Deus certamente
continuará guardando sua alma e os amigos a sua memória.
Referências
BLOCH,
Marc. Apologia da História ou o ofício do historiador: Rio de Janeiro:
Zahar, 2001.
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Edward Hallet. O que é história? 7. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
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Beth. Para vovó Laláia. ALTO MADEIRA, Porto Velho [Periódico]. Ano LXXI, nº
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GOLDMANN,
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Rio de Janeiro. Difel, 1979.
PERSIVO,
Silvio. Euro Tourinho, a samaúma da
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SCHAFF,
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1983.
TOURINHO,
Euro; PERSIVO, Silvio. Cem Anos do Alto
Madeira (Paixão 100 Limites). Porto Velho. Imediata, 2018.
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