Domingo, 10 de abril de 2022 - 10h49
Notas prévias.
O Real Forte Príncipe da Beira é uma majestosa obra de
arquitetura militar situada na margem direita do rio Guaporé. Esse rio desliza
de sua nascente na serra dos Parecis, em Mato Grosso, em direção ao rio Mamoré,
do qual é um dos formadores ao juntar-se ao rio Madre de Dios, que corre do
interior da Bolívia. Continuando em direção ao norte, o rio Mamoré junta-se ao
rio Beni, que igualmente nasce no interior da Bolívia, formando o rio Madeira,
que deságua na ribeira esquerda do rio Amazonas, no estado de mesmo nome. Essa
rede fluvial compôs o referencial de parte das fronteiras estabelecidas pelo
Tratado de Madri (1750), o qual dividia as terras de Portugal e da Espanha
nesse trecho da América do Sul. Em 1769 foi esse acordo anulado pelo Tratado de
El Pardo. A fortificação foi construída ao tempo do Tratado de Santo Ildefonso
(1777), que novamente reconstituiu diplomaticamente as fronteiras coloniais das
potências ibéricas naquela área.
A fortificação foi construída entre os anos de 1776 e
1783. Dirigia então a Capitania de Mato Grosso (1772 e 1789) o governador e
capitão-general Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres. Quando de sua
construção, situavam-se nesse trecho da fronteira: no lado espanhol as
províncias de Chiquitos e Mojos, integrantes da audiência de Charcas, e do lado
português a capitania do Mato Grosso e a capitania de São José do Rio Negro
(subalterna à capitania do Grão-Pará). A fortificação situava-se na Capitania
do Mato Grosso. Tinha por objetivo defender o território colonial português das
pretensões territoriais espanholas em sua fronteira interna. Foi elo de uma
cadeia de fortificações, erigidas ao longo dos diversos rios que correm pelas
fronteiras interiores do Brasil. Situa-se na hoje Região Norte do Brasil
(Amazônia), no estado de Rondônia.
Até aqui as informações são referendadas pelas fontes
históricas. Ainda, consta em diversas obras, que tratam da história do forte, a
informação de que a direção do início das obras foi realizada pelo italiano Domingos
(Domenico) Sambuceti. Consta também que, tendo o mesmo falecido em 1780, foi
substituído pelo coronel Ricardo Franco de Almeida Serra, que concluiu a obra.
É do conjunto de informações sobre o forte, constantes no presente parágrafo,
que se ocupa o escrito seguinte a essas notas prévias.
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Foi Adido de Defesa junto da Embaixada de Portugal em Brasília, o que estimulou o seu interesse pela história militar luso-brasileira, temática sobre a qual tem proferido numerosas conferências em Universidades e reuniões científicas ligadas à História, em Portugal e no Rio de Janeiro, no Recife e em Brasília. É autor do livro "Campanha de Montevidéu: a ocupação portuguesa do Uruguai 1816-1823". Possuí variadas condecorações portuguesas e foi honrado, pelo Governo do Brasil, com a Ordem de Mérito Militar, a Ordem de Mérito Aeronáutico, a Ordem de Mérito Forças Armadas, todas no grau comendador, e a Medalha "Mérito Tamandaré". É académico de mérito da Academia Portuguesa da História, membro efetivo do Conselho Científico da Comissão Portuguesa de História Militar e sócio correspondente do Instituto de Geografia e História Militar do Brasil.
O breve currículo acima apresentado, creio, é suficiente para atestar as marcantes capacidades intelectuais do remetente. Na correspondência anexa ao correio eletrônico, o ilustre missivista procurou alertar sobre algumas inconsistências existentes nas publicações que tratam da construção do Forte Príncipe da Beira. Tais inconsistências, especificamente, situam-se nas datas e nos personagens que participaram na direção da sua construção.
Devo confessar que, já naquele ano de 2014, considerei esses reparos de enorme importância para a História Regional da Amazônia e de Rondônia. No seu conjunto, os reparos colocados nos devidos termos têm o condão de modificar as informações presentes em grande parte dos livros sobre o assunto, corrigindo-as.
Sabemos todos nós, que nos profissionalizamos na árdua profissão de historiador, que a exatidão factual não é mérito, mas obrigação do pesquisador. Sua ausência pode condenar ao erro conclusões de estudos, aferição de hipóteses ou mesmo a validação de teorias. É evidente que toda a ciência somente existe porque há o erro ou o conhecimento insuficiente de determinada matéria. Assim, a constante revisão do conhecimento adquirido deve ser praticada (como em outras ciências) pelo historiador, inclusive no sentido de corrigir equívocos factuais.
Mas é hábito entre nós muitas vezes acreditarmos em fontes de segunda mão, seja pelo crédito que concedemos aos seus autores, seja pela quase unanimidade de sua divulgação. Essa confiança nos conduz a não conferirmos nas fontes documentais a precisão dessas informações contribuindo, quando é o caso, para a propagação do erro. É certo que o volume de informações, que um historiador tem a manipular, é normalmente tão grande que a conferência da exatidão de todos os dados tornaria mais difícil ainda o seu trabalho. Assim, confiamos em alguns casos que não houve erro no trabalho dos que nos antecederam. Confiados então, transmitimos essas informações para o futuro. Fica sendo uma daquelas verdades provisórias, as quais o epistemólogo Karl Popper[1] se referiu. São provisórias, porque há nelas a possibilidade de sua refutação, desde que se busquem as referências mais seguras. Esse é o nosso caso. Ocorre que naquele já longínquo ano de 2014 a refutação foi feita, mas o texto da missiva ficou esquecido, quando deveríamos tê-lo divulgado. Uma falha imperdoável de todos nós, que reproduzimos os equívocos apontados pelo general Curado e que agora procuraremos divulgá-los em sua correção.
Devo alertar, antes de informar sobre as refutações das quais tratamos, que o general Curado publicou um estudo sobre o mesmo tema no “O Tuiuti”. É um estudo mais extenso que o artigo infra divulgado e está disponível na internet[2]. No mesmo número de “O Tuiuti” encontramos outro também interessante artigo intitulado “Ricardo Franco de Almeida Serra - apontamentos para a biografia de um herói”, do lisboeta, engenheiro mecânico e Delegado em Portugal da Federação de Academias de História Militar Terrestre do Brasil (FAHIMTB) Rui Santos Vargas.
Vamos então à questão: após o falecimento de Domingos Sambuceti, primeiro diretor da construção do Real Forte Príncipe da Beira, é atribuída a direção da conclusão dos trabalhos ao engenheiro militar Ricardo Franco de Almeida Serra. Com base em suas pesquisas, que encontram sólido apoio documental, apresenta-nos o general Curado a seguinte cronologia:
[2] CURADO, Silvino da Cruz (gal). O Real Forte do Príncipe da Beira: entre
os mitos e a verdade possível. O Tuiuti.
Órgão de divulgação das atividades da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil/Rio Grande do Sul (AHIMTB/RS) - Academia General Rinaldo Pereira da
Câmara - e do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS),
ano 2014 janeiro n° 106, pp. 6 a 20
Ø 1775, meados de abril: Sambuceti
chegou ao local das obras do Real Forte Príncipe da Beira.
Ø 1776, 20 de junho: foi lançada a pedra fundamental da
fortificação.
Ø 1777, 8 de janeiro: registro
da última carta de Sambuceti dirigida ao Governador do Mato Grosso.
Ø 1777, março: faleceu Domingos
Sambuceti (não em 1780, conforme algumas fontes afirmam).
Ø 1777, antes de 10 de
setembro: José Pinheiro de Lacerda é nomeado pelo governador do Pará, a pedido
do seu colega de Mato Grosso e passou a dirigir a construção do forte até o ano
de 1797.
Ø 1778: José Pinheiro de
Lacerda elabora as primeiras plantas do Forte, indicando o que estava feito.
Ø 1780, 26 de fevereiro:
aportam em Belém do Pará os componentes da 3ª Partida de Demarcação de Limites
na América, relacionada ao Tratado de 1777, dentre eles Ricardo Franco de
Almeida Serra.
Ø 1781, 1 de setembro: Ricardo Franco parte de Barcelos
(AM), desce o rio Negro, entra no Amazonas, e chega no dia 9, à boca do
Madeira.
Ø 1782, 17 de janeiro:
pernoita no Real Forte do Príncipe da Beira, já em fase de conclusão.
Ø 1782, 28 de fevereiro:
Ricardo Franco chegou a Vila Bela (capital da capitania do Mato Grosso)
Ø 1783: o essencial do
Forte foi concluído e para ele se mudou a guarnição e o armamento do arruinado
Forte Bragança.
Ø 1782 e 1783: Ricardo Franco estava ocupado em missões diversas mais para sul de Vila Bela.
Ø 1775, meados de abril: Sambuceti
chegou ao local das obras do Real Forte Príncipe da Beira.
Ø 1776, 20 de junho: foi lançada a pedra fundamental da
fortificação.
Ø 1777, 8 de janeiro: registro
da última carta de Sambuceti dirigida ao Governador do Mato Grosso.
Ø 1777, março: faleceu Domingos
Sambuceti (não em 1780, conforme algumas fontes afirmam).
Ø 1777, antes de 10 de
setembro: José Pinheiro de Lacerda é nomeado pelo governador do Pará, a pedido
do seu colega de Mato Grosso e passou a dirigir a construção do forte até o ano
de 1797.
Ø 1778: José Pinheiro de
Lacerda elabora as primeiras plantas do Forte, indicando o que estava feito.
Ø 1780, 26 de fevereiro:
aportam em Belém do Pará os componentes da 3ª Partida de Demarcação de Limites
na América, relacionada ao Tratado de 1777, dentre eles Ricardo Franco de
Almeida Serra.
Ø 1781, 1 de setembro: Ricardo Franco parte de Barcelos
(AM), desce o rio Negro, entra no Amazonas, e chega no dia 9, à boca do
Madeira.
Ø 1782, 17 de janeiro:
pernoita no Real Forte do Príncipe da Beira, já em fase de conclusão.
Ø 1782, 28 de fevereiro:
Ricardo Franco chegou a Vila Bela (capital da capitania do Mato Grosso)
Ø 1783: o essencial do
Forte foi concluído e para ele se mudou a guarnição e o armamento do arruinado
Forte Bragança.
Ø 1782 e 1783: Ricardo Franco estava ocupado em
missões diversas mais para sul de Vila Bela.
A cronologia e a documentação que serve de base a ela
permitem afirmar que quem dirigia a construção do forte quando da instalação da
guarnição nele (considerado momento de sua conclusão) foi José Pinheiro de Lacerda
e não Ricardo Franco de Almeida Serra.
Em livro publicado no ano de 1869, encontramos uma
informação que, de certa forma, inverte a cadeia de equívocos que seria
publicada posteriormente. É que a direção da construção do forte nessa
publicação é atribuída exclusivamente a José Pinheiro de Lacerda. De fato, no
lançamento da pedra fundamental, em 1776, a construção da fortificação estava a
cargo de Sambuceti. Em que pese o erro, essa é a única publicação que conheço,
afora a do general Curado, que insere o nome de Lacerda como dirigente da conclusão
do forte, como segue:
Forma
um quadrado de quatro baluartes, e fronteia a Nordeste. Tem 56 canhoneiras.
Seus alicerces forão lançados a 20 de Junho de 1776 pelo general Luiz de
Albuquerque Pereira e Caceres, sendo director das obras o official de
engenheiros José Pinheiro de Lacerda.[3]
[3] MOUTINHO, Joaquim Ferreira. Noticia sobre a provincia de Matto Grosso seguida d'um roteiro da viagem da sua capital a São Paulo. São Paulo: H. Schroeder, 1869, p. 161.
Abaixo divulgamos um resumo da pesquisa do general
Silvino Curado feito pelo mesmo e a quem agradecemos a amável concessão para
sua publicação. É o anexo do correio eletrônico de 2014. Devo ainda deixar o
alerta de que no texto que segue mantivemos a grafia tal como praticada em
Portugal. Ainda, que acrescentei alguns rodapés no texto, para melhor
inteligência do leitor.
Porto
Velho (Rondônia), 10 de abril de 2022
Dante
Ribeiro da Fonseca
Contribuição para a
correcção de alguns escritos sobre Ricardo Franco de Almeida Serra e o Real
Forte do Príncipe da Beira
Silvino
da Cruz Curado
Início da carreira
Convém ser prudente na comparação da formação e carreira dos oficiais dos tempos atuais com os da época de Ricardo Franco. A Academia Militar da Corte limitava-se a dar aulas a civis e militares, tal como qualquer outra escola. Destinava-se, fundamentalmente a formar engenheiros militares. A formação dos oficiais de infantaria era feita nas respetivas unidades e a artilharia, passou, por essa época, a ter uma aula em cada regimento respetivo, com programas e livros estabelecidos pelo Conde de Lippe. Não havia, ainda unidades de engenharia, assim designadas. Havia, apenas, em cada Regimento de Artilharia, uma companhia de mineiros e sapadores[4] e outra de artífices e pontoneiros[5].
Os engenheiros, iniciavam a carreira como ajudantes de
infantaria com exercício de engenheiro, não eram arregimentados e começavam a
projetar, dirigir ou executar trabalhos nas fortificações, na cartografia e
medições de terrenos, na regularização de rios e portos, em arquitetura civil,
etc. Ainda durante muitos anos, foram os únicos engenheiros existentes, fazendo
trabalhos civis e militares ou sendo, por exemplo, os técnicos quer na defesa,
quer no ataque a fortificações.
Os partidistas eram os discípulos que preenchiam, por
mérito, um número limitado de vagas, tendo direito ao partido, isto é, um
prémio que já constituía um vencimento. Já contavam, por isso, tempo de
serviço, desde a obtenção do partido. Não se podendo afirmar que tenha sido o
caso, é possível que Ricardo Franco já tivesse frequentado a Academia, pelo
menos durante um ano, antes de conseguir ser partidista. Parece difícil
transmitir todos os conhecimentos necessários em dois anos. Tinha estudado
aritmética, desenho, artilharia, álgebra, arquitetura civil, geometria,
medições, fortificação de praça e de campanha, hidráulica, trigonometria plana,
orçamentos, estereotomia e tática militar. Falava francês.
Ricardo Franco foi partidista de 9 de Setembro de 1766 a
14 de Novembro de 1768, sendo promovido a ajudante de infantaria com exercício
de engenheiro a 15 de Novembro de 1768 (de acordo com documento do Arquivo
Histórico Militar Português, mencionado no livro do general Raul Silveira de
Mello, Um homem do dever, Coronel Ricardo Franco de Almeida Serra (Rio de
Janeiro, Biblioteca do Exército, 1964, p. 359)[6].
[4] Encarregados
de abrir fossos, trincheiras e tuneis.
[5] Militar de
engenharia especializado na construção de pontes ou pontões.
[6] Há também um resumo desse livro, apresentado sob a forma de conferência no Instituto Militar de Engenharia (IME) em 2 de agosto de 1988, no transcurso da primeira comemoração festiva do Dia do Quadro de Engenheiros Militares (QEM). A referida palestra foi publicada em: MELLO, Luiz Gonzaga de. Coronel Ricardo Franco de Almeida Serra - o soldado, o engenheiro e suas obras. A Defesa Nacional, n. 741. Rio de Janeiro, Biblioteca do Exército - BIBLIEX, 1989, pp. 7- 41.
Atividades em Portugal
Passou a ser um dos oficiais que coadjuvavam Guilherme
Elsden, tenente-coronel de infantaria com exercício de engenheiro e quartel
mestre general do Exército, não num Alto Comando, mas nas “muitas e diversas
diligências” de que foi encarregado, tais como mapas, plantas e, durante vários
anos nos “projetos, inspeção, construção, cálculos e medições dos edifícios que
novamente se edificaram na Universidade de Coimbra “, como consta da atestação
de serviços muito elogiosa, passada pelo referido Elsden, em 25 de outubro de
1777, e confirmada, no que respeita à Universidade, pelo Bispo reformador
reitor da mesma, em 25 de novembro de 1777. (Conforme documentos transcritos a
páginas 361 e 362, do livro acima mencionado).
Em 1777, com a queda do marquês de Pombal, a “sua”
Universidade correu riscos, devido à “Viradeira” e, possivelmente, as obras
foram suspensas ou limitadas. Ricardo Franco achou que era altura de requerer a
sua promoção a capitão, para o que tinha que juntar ao requerimento as
atestações dos seus serviços atrás mencionadas e a do tempo de serviço
prestado. O requerimento recebeu como despacho “Só poderá atender quando houver
promoção no seu corpo”. Veio para Lisboa, não para um Regimento, mas para
continuar as suas atividades de engenheiro.
Nomeação para as
demarcações de limites
Com vista às nomeações, em 14 de Novembro de 1779, foi
organizada, pelo Coronel aposentado Filipe Rodrigues de Oliveira, durante
muitas décadas lente da Academia Militar, uma relação de todos os engenheiros
existentes com indicação do local onde estavam, dos seus conhecimentos de
matemática e desenho (risco) e se tinham encargos de família. Tem junto um
borrão anónimo que completa as informações dos 7 pré-selecionados. De Ricardo
Franco refere, entre outros elementos, que risca bem, tem boas qualidades,
viveza e capacidade; encontra-se a trabalhar em Alcântara e é muito expedito e
desembaraçado no trabalho. O informante considera-o o segundo melhor dos 7 e a,
Joaquim José Ferreira, o quarto. (documento 6863, do Arquivo Histórico
Ultramarino, Brasil – Pará). O melhor tinha sido formado pelo pai, Carlos
Mardel, que dirigiu a reconstrução de Lisboa e, depois da morte deste, por
Ângelo Blasco, engenheiro mor do Reino. Não deve ter sido nomeado por ter a seu
cargo um irmão cego e três irmãs. O terceiro melhor tinha sido lente da aula
militar do Rio de Janeiro e foi nomeado para a 4.ª Divisão das Demarcações.
Parece poder concluir-se que Ricardo Franco já era muito
conceituado quando seguiu para o Brasil. Tal não significa que tenha sido
expressamente nomeado para chefiar a 3ª Divisão, tarefa que pertencia ao
Governador. Os engenheiros e matemáticos atribuídos à divisão, dois de cada,
permitiam atuar com duas subdivisões, cada uma chefiada por um comissário,
encarregado de estabelecer os entendimentos com o correspondente espanhol. Para
o efeito, o Governador ainda nomeou 1.º comissário, ao tenente-coronel António
Filipe da Cunha, e 2.º, ao sargento mor José Manuel Cardoso da Cunha, os quais
não chegaram a atuar por não ter havido demarcações.
Entretanto, o Governador determinou o reconhecimento e
mapeamento do território fronteiriço. Sendo mais antigo e, por isso, o mais
graduado dos militares, Ricardo Franco comandou as expedições organizadas para
o efeito, em que tomou parte.
Construtores do Forte
Príncipe da Beira
Salvo se for apresentada documentação em contrário,
Ricardo Franco de Almeida Serra, merecedor da nossa admiração e respeito pelas
suas virtudes militares, pela sua capacidade e competência técnica de
engenheiro, pela sua extrema dedicação ao serviço e pela heroicidade de que deu
inexcedíveis provas, não terá tido qualquer intervenção no projeto e construção
da imponente fortificação, levada a cabo nas mais adversas condições.
Mas o mito impôs-se e está espelhado em numerosas
publicações, incluindo oficiais.
Está associado a um outro erro também muito difundido, o
qual consiste em se escrever que Domingos Sambuceti, que iniciou a construção
do Forte, faleceu em 1780, quando, de facto, se finou em Março de 1777, deixando
a fortificação no início. É o que se conclui da carta do Governador Luís de
Albuquerque, de 12 de setembro de 1777: “A casualidade de terem falecido de
doença os dois únicos oficiais engenheiros que eu tinha nesta Capitania, a
saber, o capitão Salvador Franco da Mota e o ajudante Domingos Sambuceti de que
também dei conta na Real Presença (…) Até ao presente não tem vindo do Pará o
novo engenheiro ou engenheiros que pedi (…)” (AHU, doc. 1167 de Brasil – Mato
Grosso). Em 10 de Setembro de 1777 já o Governador do Pará informava Lisboa de
ter nomeado um engenheiro para o efeito.
Gilberto Freire, depois de uma estadia na Casa da Ínsua,
escreveu um livro pouco conhecido sobre Luís de Albuquerque[7],
servindo-se dos documentos ali existentes que passado algum tempo foram
consumidos num incêndio, salvando-se, contudo, um excecional conjunto de mapas
e plantas. Felizmente, o livro transcreve a correspondência de Sambuceti para o
Governador, verificando-se que a última carta tem a data de 8 de janeiro de
1777. Quanto às plantas do Forte, a primeira de José Pinheiro de Lacerda é já
datada de 1778, indicando o que estava feito. Na cartela de outra planta pode
ler-se: Planta do novo methodo das acomodações interiores do Forte do Príncipe
da Beira; Projéctado pelo Ajud. Engenheiro Diréctor José Pinheiro de Lacerda no
ano de 1780. Uma outra apresenta o estado das obras em 14 de outubro de 1781.
Ainda em Dezembro de 1791, o então Governador atestava: O
ajudante engenheiro José Pinheiro Lacerda serve S.M. nesta Capitania para que
veio do Pará no mesmo posto desde o ano de 1777 (…). (AHU, doc. 1633,
Brasil-Mato Grosso)
Quanto a Ricardo Franco, só chegou a Vila Bela em 28 de fevereiro de 1782. O Governador Luís de Albuquerque estava preocupado com os limites, no trecho da boca do rio Jauru ao rio Guaporé, em terreno mal conhecido. E, ainda que pertencesse à 2.ª Divisão de Demarcações, era à Capitania de Mato Grosso que interessava afastar a linha divisória de Vila Bela. Por isso, logo em Junho, partiu com os engenheiros e matemáticos, ainda convalescentes das doenças com que tinham chegado, para reconhecimento e cartografia do território próximo de Vila Bela. Depois,
[7] FREYRE, Gilberto. Contribuição para uma sociologia da biografia: o exemplo de Luiz de Albuquerque, governador do Mato Grosso no fim do século XVIII. Cuiabá. FCMT, 1978.
Ricardo Franco comandou expedições para o mesmo fim, mais
para sul, em 1782 e 1783. A 2 de novembro de 1783, num destes trabalhos, foi
salvo de morrer afogado por um auxiliar, quando o cavalo que montava afocinhou
na travessia de um ribeirão. No dia 17 de Dezembro de cada um destes anos,
recitou poesias em Vila Bela, na festa comemorativa do aniversário da Rainha,
conforme referem os Anais da pequena capital.
Todos os factos referidos estão documentados e parecem
demonstrar que Ricardo Franco não esteve no Forte do Príncipe da Beira em 1782
e 1783, a não ser a caminho de Vila Bela.
Nem o seu consciencioso biógrafo, general Raul Silveira
de Melo, nem o respeitado investigador, Virgílio Correa Filho, relacionaram o
engenheiro com a construção do Forte.
Em 1929, numa atitude conciliadora, António Leôncio
Pereira Ferraz[8], escreveu: “O principal
técnico de que dispôs Luís de Albuquerque, no seu projeto de edificação do
forte, foi o ajudante de infantaria Domingos Sambuceti, conquanto tenha sido
ouvido a respeito Ricardo Franco. O director de obras, porém, foi o capitão
José Pinheiro de Lacerda [...]” (p. 510). Anos mais tarde, em 1938[9],
referiu: “Na escolha do local, entre outros técnicos, foi ouvido Ricardo Franco
[...]” (142). Ora, em 1774-76, o nosso herói estava bem longe de supor que
viria a pisar terras brasileiras.
Mas a História nunca está concluída. Caso exista
documentação da época que, efetivamente, confirme a ligação de Ricardo Franco à
conclusão das obras do Forte, convém que seja publicada ou mencionada a fonte
onde pode ser encontrada. Até lá, estaremos em presença de um mito e os mitos
são difíceis de combater.
[8] FERRAZ, Antônio
Leôncio Pereira. Memoria sobre as fortificações de Matto Grosso. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro – RIHGB. Tomo 102, vol. 156 (2º. De 1927), Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1929, pp. 501-566.
[9] FERRAZ,
Antônio Leôncio Pereira. Real Forte do príncipe da Beira. In: Revista do Serviço do Patrimonio Histórico e
Artístico Nacional. No. 2. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde,
1938.
O ensaio que segue foi elaborado para ser apresentado na cerimônia de abertura do Seminário Integrado de Ensino e Pesquisa e a Semana de História –
Nota introdutória: Catalina o pássaro de aço nos céus da Amazônia
Nesses tempos, quando a população de Rondônia se vê ameaçada pela suspensão de alguns voos e mudanças de rota das companhias aéreas que nos servem,
Todo boato tem um fundo de verdade: o Ponto Velho, o Porto do Velho e Porto Velho
O último artigo que publiquei aqui tratou da figura do “velho Pimentel”, um personagem que, apesar de seu caráter até agora mítico, parece estar ind
A origem da cidade de Porto Velho e o velho Pimentel
Todos sabem que a origem da cidade de Porto Velho coincide com a última tentativa de construção da ferrovia Madeira-Mamoré em 1907. Naquele ano, ao