Sexta-feira, 17 de dezembro de 2021 - 11h18
Caros leitores, desde
muito tempo sabemos que de todos os fatos do passado é tarefa do historiador
selecionar aqueles que farão parte da História. Significa dizer então que, por
eliminação, ficam condenados os demais ao esquecimento. Antes de continuar,
devo esclarecer dois pontos, com o intuito de sanar a controvérsia que a frase inaugural
do presente artigo possa suscitar. O primeiro é que o historiador não realiza a
seleção dos fatos, que julga principais, e também não deixa de lado os demais,
a partir de um capricho de sua escolha, de determinada inclinação pessoal para
essa ou aquela dimensão da vida. Em outras palavras, a escolha do historiador
não é guiada por predisposições de sua individualidade, ao contrário, é
socialmente orientada. É a pauta política ou social predominante no momento da
seleção que orienta a escolha dos temas, dos problemas de pesquisa, das
hipóteses de trabalho, do paradigma e, finalmente, dos “fatos” com os quais vai
trabalhar. Há então uma interação dialética nessas escolhas, que vincula o
historiador ao passado e simultaneamente ao seu tempo. Destarte, os fatos são
constituídos a priori, e a posteriori, pois conduzem sua própria constituição
as operações intelectuais de seu selecionador. Em outras palavras, algo que
ocorreu no passado é apropriado pelo presente. Explica-se: o fato nunca é
matéria bruta, mas constitui-se a partir de determinada teoria. Em segundo
lugar, o que acontecerá com os fatos desprezados? Ficarão esquecidos
eternamente como não relevantes para a História? A resposta é: não
necessariamente. Como a História é reescrita indefinidamente, há sempre a
possibilidade de resgatar fatos anteriormente desprezados quando se revelarem
importantes para o estudo de novos objetos ou dimensões analíticas.
Um bom exemplo disso é
a questão do papel da mulher na História. Absolutamente desprezado nos séculos
anteriores ao XX, a pouca atenção dada à mulher pela História revelava um
estado de desigualdade desta em relação ao homem no que se refere à
participação feminina nos eventos externos ao lar. À mulher pertencia a esfera
privada da família, enquanto ao homem a esfera pública, para onde convergem majoritariamente
as atenções quando se trata de conformar os principais fatos da História. É
claro que existiram mulheres notáveis ao longo da História: governantes (Cleópatra,
Vitória, Catarina), cientistas (Curie) e até mesmo militares (Maria Quitéria),
mas eram exceções. É quando a mulher passa a cotidianamente dividir as
responsabilidades da esfera pública com o homem que se torna objeto coletivo da
História, tanto para diminuir os laços de subalternidade quanto para explicar
uma série de fenômenos nos quais se ausentava o feminino.
Assim, dados os objetos
centrais de minha atenção como historiador, tenho escrito sobre pessoas e fatos
que fizeram a História de Rondônia, em geral pessoas do sexo masculino e que já
passaram da idade madura ou já faleceram. Ocorre que o tempo da História não é
somente o passado. Na verdade o objeto da História não é o passado, como muitos
equivocadamente pensam, o objeto da História é a humanidade em sociedade no
tempo. Assim sendo, tomar uma cidadã contemporânea jovem e descrever um aspecto
da sua ainda curta História de Vida, revela muito do passado, de como se
operaram transformações e de como elas se manifestam no presente. De que
tratamos aqui? Tratamos de uma jovem mulher, que desde muito tenra idade viveu
em um pequeno e novo estado da Federação, cuja família não era rica. Mas
tratamos também de como evoluiu a participação da mulher na sociedade. Apesar
dessas aparentes dificuldades, esta jovem conseguiu superar suas condições de
vida e penetrar uma área da atividade militar, que até poucas décadas atrás era
exclusivamente masculina.
Falo aqui de uma pessoa
que, com sua trajetória de vida fez brilhar Rondônia, pois o fulgor de um
estado é reflexo do brilho de seus cidadãos. O testemunho que aqui presto, tem
como objetivo incentivar a todos os jovens a lutar por seus sonhos e ideais. A
perceberem que não importa onde você nasce, onde você é educado, mas se
souberem valorizar os bons ensinamentos adquiridos dentro do lar, da escola e
da sociedade serão bem sucedidos. Meu testemunho é sobre uma moça que, como
tantos de nossos jovens, chegou bebê ainda em Rondônia e aqui se educou,
reconhecendo essa terra como sua. Não estudou nas excelentes, e dispendiosas,
escolas particulares disponíveis aos filhos dos mais abastados. Foi aluna das
escolas Marcelo Cândia e o Colégio Tiradentes.
Tendo ficado órfã aos
dois anos de idade, com o falecimento sua mãe Carmen Lucia Spirlandeli, sua
família nuclear ficou reduzida ao pai Washington Nunes da Silva, que quando
conheci há mais de vinte anos exercia a profissão de serralheiro, no conjunto 4
de Janeiro, e a sua irmã Hitala.
Falo hoje de uma pessoa
que, apesar da adversidade dos anos iniciais e do socialmente modesto
nascimento nasceu rica, porque teve um pai que soube orientá-la, apesar da
falta do concurso da esposa, e não abdicou desse dever. Falo de Hingrid
Spirlandeli Nunes da Silva, que saindo de Rondônia cursou a Academia da Força
Aérea Brasileira (AFA) em Pirassununga. Tendo iniciado seus estudos na AFA em
25/01/2010, pela mesma instituição concluiu os cursos de Bacharel em
Administração e em Ciências Aeronáuticas (2013). Nos anos seguintes serviu em
Natal (2014), Florianópolis (2015/2016) e Canoas (2017/2018). Nesse período
atuou na Aviação de Patrulha e Busca Marítimas da Força Aérea Brasileira de
2015 a 2018 e como chefe da Seção Administrativa do Esquadrão Phoenix da Força
Aérea Brasileira em 2017 e 2018.
Foi a primeira moça da
região norte a pilotar os aviões da Força Aérea Brasileira. Mas não parou por
aí, especializou-se em Análise do Ambiente Eletromagnético (2018) pelo
Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), em São José dos Campos, prestigiosa
instituição militar de ensino e pesquisa. Na mesma instituição cursou o metrado
em Guerra Eletrônica e Sensoriamento Remoto entre os anos de 2019 e 2021. Mas,
sua atividade profissional não a impediu de viver outras dimensões da vida,
casou-se com Denys Soares e possui dois filhos Anna e Matteo.
Hoje, quando vermos
nossas aeronaves militares cruzarem os céus de Rondônia em datas como a comemoração
ao Sete de Setembro, lembremo-nos que em algum lugar do Brasil uma moça,
conterrânea nossa poderá ser a única da região Norte a estar pilotando uma
dessas aeronaves. Se é fato que a História não nos permite prever o futuro, é
fato também que permite vislumbrar suas possíveis paisagens. Assim, esperamos
que esse monopólio já se tenha rompido, ou vá se quebrar em breve, mas o papel
de “destemida pioneira”, Hingrid nunca
perderá. Quem sabe, no futuro, a sorte lhe caberá o retorno a Rondônia, para
comandar alguma unidade militar. Quem sabe, no futuro, teremos a primeira
Brigadeiro do Ar (ou Brigadeira) com raiz em Rondônia.
Eis então, os exemplos
valem mais que as palavras. Nesse país tão difícil há ainda espaço para
realizações. Lutem, e quanto mais modestos forem vossos recursos maior será
vossa luta, mas também a vitória será mais exultante. Sigam o exemplo dessa
jovem lutadora. O progresso se dá pela pela luta de cada geração, então não nos
esqueçamos que o Brasil se constrói, principalmente, pelo esforço dos pais e
mães em ocasionarem melhores condições de vida a seus filhos. Assim, se a
fortuna vos reservou o empenho de pais dedicados, aproveitem, porque sem eles o
fardo fica mais pesado. Para finalizar, devo dizer que embora essas palavras
pareçam apenas uma homenagem à nossa oficial aviadora são, sobretudo, uma
homenagem ao seu dedicado e orgulhoso pai, cuja luta para educar sozinho as
filhas acompanhei de longe.
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